Analfabetismo Funcional: “O ponto mais crítico está no Fundamental II”
A coordenadora do principal indicador que mede o alfabetismo funcional no Brasil diz que os anos finais têm feito pouca diferença na melhora das habilidades de leitura da população
Por: Pedro Annunciato
É difícil não ficar preocupado quando se observam os números do Indicador de Alfabetismo Funcional (Inaf), divulgados a cada dois ou três anos. A pesquisa, feita desde o início dos anos 2000 pelo Instituto Paulo Montenegro e pela ONG Ação Educativa, por meio do Ibope Inteligência, vem mostrando avanços lentos nos níveis de proficiência da população em leitura e compreensão de texto.
Os resultados de 2018, divulgados no início de 2019, confirmam esse ritmo: 3 em cada 10 brasileiros são considerados analfabetos funcionais e apenas 12% da população está no nível “proficiente”, o mais alto da escala. E tem mais: o número de analfabetos subiu de 4%, em 2015, para 8%, em 2018, diferença que, do ponto de vista estatístico, aponta mais para uma estagnação do que para um crescimento.
Uma boa notícia é que o analfabetismo funcional já é muito menor entre os mais jovens do que entre os mais velhos.
Segundo a coordenadora do estudo, Ana Lúcia Lima, os números da pesquisa mostram que o gargalo está, principalmente, nos anos finais do Ensino Fundamental.
Foi o que a economista de formação, que atua na área de gestão de pesquisas desde 1985, explicou em uma entrevista concedida por telefone a NOVA ESCOLA.
NOVA ESCOLA Como você analisa os resultados do Inaf 2018?
ANA LÚCIA LIMA O grande destaque aparece na observação da série histórica, que vem desde 2001. Consolidou-se uma tendência de queda do nível de analfabetismo absoluto, e isso se dá graças à universalização do Ensino Fundamental. Como o estudo só olha uma faixa da população de 15 a 64 anos, as pessoas mais velhas, que tiveram menos acesso à escola, saem da observação, e vão entrando na pesquisa os que já pertencem a uma geração cujo acesso à educação formal foi muito maior. Outro dado que chama atenção é a oscilação do número de analfabetos. O levantamento de 2018 mostra que a queda que vinha ocorrendo estancou, ou ao menos desacelerou. Os programas de redução do analfabetismo funcionaram bem, mas esse modelo já se esgotou. Esses programas estão no Ministério dos Direitos Humanos, como uma espécie de assistencialismo.
NE Desde 2011, o Inaf subdividiu o grupo dos funcionalmente alfabetizados em três níveis, e não mais em dois. Por quê?
ALL Até 2011, nós tínhamos quatro níveis: analfabeto e rudimentar (que compunham o grupo dos analfabetos funcionais), e básico e pleno (que formavam o grupo dos funcionalmente alfabetizados). O problema é que, entre os níveis rudimentar e básico, havia diferenças de desempenho importantes que estavam ocultadas por essa classificação. Pessoas com níveis superiores ao rudimentar, mas ainda distantes do pleno, estavam “emboladas” nesse meio de campo e acabavam na mesma cesta. Então, o que fizemos foi inserir uma nova gradação no nível básico, diferenciando os componentes entre elementar e intermediário. A régua é a mesma, só passamos a reportar em cinco níveis para deixar a classificação mais precisa.
NE Apenas 12% dos brasileiros estariam no nível mais alto. Esse resultado é tão ruim quanto parece ou esse último nível é para poucos mesmo?
ALL O resultado é preocupante, sim. A prova do Inaf é feita para que alguém que tenha cursado um Ensino Médio competente seja considerado proficiente. O problema é que as próprias aprendizagens do Ensino Médio, em todas as disciplinas, não acontecem por falta de conhecimentos estruturantes, que vêm dos anos anteriores.
NE O que os resultados indicam sobre a Educação Básica?
ALL O ponto mais crítico está no Ensino Fundamental II. Os dados mostram que os primeiros anos do Fundamental têm feito diferença no desempenho. Mas o salto de quem fez o Fundamental II em relação a quem parou no Fundamental I não é grande coisa. Esse nó vai tendo consequências no Ensino Médio e no Superior. Os garotos entram nessas etapas e não conseguem acompanhar.
NE Por que os alunos param de avançar no Fundamental II?
ALL Ainda existe uma ideia, difícil de desconstruir no senso comum, que entende a alfabetização como um processo binário: ou você é alfabetizado ou não é. Se você sabe codificar e decodificar a escrita, é alfabetizado, e, portanto, podemos começar a ensinar história, geografia etc. Isso não é verdade. A escola não deve assumir que está letrado quem é alfabetizado. A competência leitora é algo que precisa ser desenvolvido durante toda a vida escolar, de forma sistemática. Esse desenvolvimento só acontece à medida que o aluno é exposto a novos gêneros, novos tipos de texto... Isso tudo tem de ser ensinado. Do contrário, os meninos vão ficar limitados.
NE O que o Brasil precisa fazer para sair dessa situação?
ALL Acho que temos que ter duas grandes bandeiras. A primeira é de que a escola não produza mais analfabetos funcionais. Não faz sentido a pessoa investir 10, 12 anos da sua vida nos estudos e não conseguir ler e escrever com competência. Isso é um desperdício da nação. E aí, nesse ponto, tem uma questão forte que é a garantia da equidade. É fácil melhorar a Educação para os melhores. O desafio está nos contextos mais frágeis, nos lugares onde os indicadores são piores. A segunda bandeira é a revitalização da Educação de Jovens e Adultos (EJA). Como eu disse, o modelo esgotou-se. Geralmente, ainda se tem na cabeça sobre a EJA a ideia do Mobral (Movimento Brasileiro de Alfabetização, implementado pela Ditadura Militar a a partir de 1968), que era algo limitado à alfabetização. Hoje esse segmento está muito esquecido. O Plano Nacional de Educação (PNE) mal trata disso e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC) praticamente ignora essa parte. Mas a realidade hoje é outra, inclusive porque o público da EJA tem ficado cada vez mais jovem, recebendo aqueles que por alguma razão não conseguiram seguir o curso “normal”. Precisamos de um projeto de nação em que a empregada doméstica semianalfabeta seja vista como um sujeito de direito.
NE É possível comparar nosso resultado com o de outros países?
ALL O Inaf nasceu exatamente porque não havia um estudo comparativo entre a nossa situação e a de outros países, mas ainda está na nossa agenda construir esses termos de comparação. No mundo, a Unesco é que costuma fazer pesquisas sobre esse assunto e tem algumas medições semelhantes voltadas para populações muito menos escolarizadas, ou estudos em países bem mais avançados com o intuito de identificar alguns nichos da população desfavorecidos pelas políticas de Educação. Ao longo dos últimos 18 anos, a Unesco criou testes mais padronizados e ofereceu a metodologia para vários governos, inclusive o brasileiro, que acabou não aderindo.
NE O Inaf traz alguma boa notícia?
ALL O questionário socioeconômico faz um aprofundamento interessante sobre a questão digital. Como se pode imaginar, a frequência de uso de aplicativos aumentou muito. As pessoas estão no Facebook e no WhatsApp utilizando a leitura e a escrita, e isso pode estar contribuindo para uma melhora no desempenho. Antigamente, muita gente não usaria mais essas habilidades depois de sair da escola. Aí existe um potencial interessante: como aproveitar esses novos letramentos para melhorar a nossa situação?
Outro indicador que aponta para algo positivo é o recorte do analfabetismo funcional por idade. Se você olha para quem tem mais de 50 anos de idade, quase a metade dos pesquisados pode ser classificada como de analfabetos funcionais. Por outro lado, entre a população de 15 a 24 anos, esse índice cai para 20%.
LONGE DO IDEAL
O Inaf 2018 mostrou que 3 em cada 10 brasileiros são analfabetos funcionais:
Fotos: Sidinei Lopes/NOVA ESCOLA