Analise Ainda estou aqui
Eron Duarte Fagundes analisa Ainda estou aqui

AS SUTILEZAS DE CLASSE DE WALTER SALLES
Um letreiro abre o filme, objetivamente: “Rio de Janeiro, 1970”. Depois vemos a imagem duma mulher que nada numa praia do cenário carioca, vemos passar um helicóptero com seu barulho e seu voo sempre ameaçadores, observamos o olhar sério, sombrio e fixo voltado tanto para o helicóptero que se vai sumindo na paisagem quanto para a beira da praia onde, veremos na imagem seguinte, a garotada joga bola. O espectador brasileiro reconhece no mar o rosto da atriz Fernanda Torres e já sabe dos rumos da narrativa, que não lhe guardará novidades em seus episódios.
Ainda estou aqui (2024), o novo filme do brasileiro Walter Salles, agraciado com o Oscar de Melhor Filme Internacional na edição de 2025, é extraído do livro de memórias homônimo de Marcelo Rubens Paiva: trata da maneira como uma família da classe média alta do Rio viveu o desaparecimento de um de seus membros, o político e ativista Rubens Paiva, no período mais violento de nossa ditadura militar (a ditadura durou de 1964 a 1985, mas o regime tornou-se mais furioso a partir de 1968, com o AI-5). As características cariocas, em sotaques, modismos e coloridos, se evidenciam na realização de Salles; o que confere a seu filme uma capacidade de dialogar com o público de outras plagas, no país e fora do país, é o dom dum cineasta como Salles, que domina a sensibilidade de um ofício como o do cinema para atingir o íntimo de suas personagens.
Alguns observadores tentaram simplificar as coisas: segundo eles, Ainda estou aqui é um filme da tradição cinematográfica, clássico, com todas as convenções do classicismo de filmar. Definir as coisas pelos estereótipos da linguagem, longe de simplificar, complica a compreensão.
Ainda estou aqui tem uma estrutura clássica, mas não no sentido convencional do cinema americano, de William Wyler, por exemplo. A linguagem cinematográfica de Ainda estou aqui é muito mais moderna que clássica, embora misture as duas coisas. Salles não é um experimentador ou um inquieto estilístico, como o Julio Bressane de Capitu e o capítulo (2021). Mas seu trabalho não adota a linearidade narrativa ipis litteris, como aduziram alguns diante da aparência. Objetivamente, enveredaria pelos caminhos dum filme-denúncia duma época brasileira de autoritarismo militar.
Mas a arte da sutileza de Salles (nem sempre bem assimilada) faz a objetividade crítica mergulhar na subjetividade de sua história, que nasce do olhar mnemônico de Marcelo, o menino que em adulto escreve sobre o episódio crucial de sua família no início dos anos 70. O filme de Walter Salles não entrega a narrativa à voz de Marcelo, embora parta dela: utiliza a câmara neutra do cinema clássico (clássico no sentido do francês Jean Renoir) para fazer a crônica, sensível e precisa, com todas as modas regionais de reconstituição de um tempo datado, a crônica de algumas pessoas deste tempo.
O panfleto político passa longe da forma de fazer cinema de Walter Salles. Suas inspirações não parecem ser o greco-francês Constantin Costa-Gavras ou o italiano Elio Petri.
A violência é mais interna que externa num filme de Salles. Sem truculências, o realizador erige seu filme em torno duma sociedade perigosa: daí, ainda que retrate coisas antigas, sua atualidade, ou urgência. Ainda estou aqui tem sua primeira meia hora narrada numa montagem saltitante, algo próximo de alguns filmes de Federico Fellini, criando uma certa alacridade em sua estética para captar o que seria a alegria de viver duma família, especialmente dos jovens desta família, que dançam, namoram, se soltam, vão à praia.
Passados os momentos iniciais, a montagem se adensa, torna-se concentrada, quando os rumos das coisas trazem a tragédia do desaparecimento. Ainda assim, nos instantes mais duros, se lembra que para resistir, além de disposição, é preciso usar a alegria como resistência; quando o fotógrafo duma revista pede a Eunice e a seus filhos um ar mais sério, sem sorrisos, para uma foto da matéria, ela rejeita, “vamos sorrir, meus filhos”. A seriedade das ações pode conviver com o riso, com o humor.
É pena somente que Fernanda Torres não tenha recebido seu Oscar. Merecia. É sua melhor interpretação desde os tempos de sua juventude, onde estão seus desempenhos mais profundos. Mas o que fez mesmo pasmar, ao cabo do filme, foi a grandeza da interpretação de Fernanda Montenegro, vivendo Eunice na extrema velhice, uma Montenegro muda, significativa e única, talvez a maior atriz de todas as grandes que já tivemos.
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