Análise do Decreto Educação Especial
Análise do Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, que institui a Política Nacional de Educação Especial
NOTA TÉCNICA AMPID N°01/2020
Análise do Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, que institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, à luz dos instrumentos constitucionais e legais em vigor no Brasil.
A Associação Nacional dos Membros do Ministério Público de Defesa dos Direitos das Pessoas com Deficiência e Idosos – AMPID expede a presente Nota Técnica após a análise do Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, que institui a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, com base nos dispositivos constitucionais e legais que foram identificados como violados pelo Decreto e o rompimento com os compromissos internacionais assumidos por ocasião da ratificação da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD).
1. O princípio da progressividade do direito ou do não retrocesso em matéria de direitos humanos: o direito humano da pessoa com deficiência à educação inclusiva
O Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, ao criar uma nova Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, Inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, fere o princípio da progressividade do direito ou o princípio do não retrocesso. Embora nomine a política de “equitativa” e “inclusiva”, ela não está assentada na educação inclusiva como a anterior Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, de 2008, já sedimentada nos Estados e Municípios brasileiros.
O princípio da progressividade do direito ou o princípio do não retrocesso está internalizado em nosso sistema jurídico, obrigando ao Brasil o dever de incluir, quando da adoção de medidas e leis internas, mecanismos que garantam o pleno exercício dos direitos. O princípio da progressividade do direito consta em dois Pactos ratificados pelo Brasil: i) o Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais, da Organização das Nações Unidas (ONU), Decreto n° 591, 6/julho/1992, e o ii) Protocolo Adicional à Convenção Americana sobre Direitos Humanos em matéria de Direitos Econômicos, Sociais e Culturais “Protocolo de São Salvador”, da Organização dos Estados Americanos (OEA), Decreto n° 3.321, 30/dezembro/1999.
O Brasil também se submete, no âmbito da OEA e por força do compromisso assumido com a ratificação da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), Decreto nº 678, 6/11/1992, ao controle de convencionalidade de todos os atos do Poder Executivo pela Corte Interamericana de Direitos Humanos. Dentre as normas às quais está obrigado o Estado brasileiro consta a Convenção Interamericana para a Eliminação de todas as formas de discriminação contra as Pessoas com Deficiência, Decreto nº 3.956, 8/outubro/2001, que é clara ao determinar o comprometimento com medidas para eliminar a discriminação contra as pessoas com deficiência e proporcionar a sua plena participação na sociedade, incluídas as de caráter educacional.
Em 2008, o Brasil se vincula aos valores e princípios de direitos humanos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto Legislativo nº 186/2008 e Decreto nº 6.949/2009), assumindo-os e os aprovando com esse caráter. A adoção e a incorporação desses princípios e regramentos ao sistema jurídico ocorreram de forma qualificada com status de norma equivalente às emendas constitucionais. Observe-se que o preâmbulo “d” da CDPD relembra, dentre outros documentos internacionais, o Pacto Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, o que reforça a imposição de não retrocesso em direitos.
A balizada doutrina de Flávia Piovesan (2006, p. 92) demonstra que as disposições em tratados internacionais de direitos humanos, quando integrados à ordem jurídica, são determinantes ao legislador, que neles deverá se orientar e também ajustar as normas internas:
A reprodução de disposições de tratados internacionais de direitos humanos na ordem jurídica brasileira não apenas reflete o fato de o legislador nacional buscar orientação e inspiração nesse instrumental, mas ainda revela a preocupação do legislador em equacionar o direito interno, de modo a ajustá-lo, com harmonia e consonância, às obrigações internacionalmente assumidas pelo Estado brasileiro. Nesse caso, os tratados internacionais de direitos humanos estarão a reforçar o valor jurídico de direitos constitucionalmente assegurados, de forma que eventual violação do direito importará em responsabilização não apenas nacional, mas também internacional.
O Supremo Tribunal Federal, ao decidir sobre o direito da criança à pré-escola e creche, trata-o também sob a luz do princípio da progressividade do direito ou a impossibilidade do retrocesso de direitos, reconhecendo que os direitos sociais previstos no artigo 6º da Constituição da República, a exemplo da educação, da saúde e da segurança pública, impõem-se como dever do Estado que assume a obrigação de concretizá-los e preservá-los, não os suprimindo total ou parcialmente, sob pena de ferimento ao texto constitucional:
[…] A PROIBIÇÃO DO RETROCESSO SOCIAL COMO OBSTÁCULO CONSTITUCIONAL À FRUSTRAÇÃO E AO INADIMPLEMENTO, PELO PODER PÚBLICO, DE DIREITOS PRESTACIONAIS. – O princípio da proibição do retrocesso impede, em tema de direitos fundamentais de caráter social, que sejam desconstituídas as conquistas já alcançadas pelo cidadão ou pela formação social em que ele vive. – A cláusula que veda o retrocesso em matéria de direitos a prestações positivas do Estado (como o direito à educação, o direito à saúde ou o direito à segurança pública, v.g.) traduz, no processo de efetivação desses direitos fundamentais individuais ou coletivos, obstáculo a que os níveis de concretização de tais prerrogativas, uma vez atingidos, venham a ser ulteriormente reduzidos ou suprimidos pelo Estado. Doutrina. Em consequência desse princípio, o Estado, após haver reconhecido os direitos prestacionais, assume o dever não só de torná-los efetivos, mas, também, se obriga, sob pena de transgressão ao texto constitucional, a preservá-los, abstendo-se de frustrar – mediante supressão total ou parcial – os direitos sociais já concretizados. […] (ARE-639337, Relator Ministro CELSO DE MELLO, de 23.8.2011).
A educação inclusiva para pessoas com deficiência está prevista na Constituição da República, a partir da determinação constitucional de que ensino é baseado em igualdade de condições de todos(as) para o acesso e permanência na escola (artigo 206, inciso I), sendo direito de todos(as) (artigo 205) e com a garantia de atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino (artigo 208, inciso III).
A CDPD esclarece que, para efetivar o direito à educação sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, deve ser assegurado o sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo da vida (Artigo 24), não podendo a pessoa ser excluída do sistema educacional geral sob a alegação de deficiência (Artigo 24, 2, a), e que sejam providenciadas as adaptações razoáveis necessárias a cada caso (Artigo 24, 2, c), bem como medidas de apoio individualizadas e efetivas de acordo com a meta de inclusão plena (Artigo 24, 2, e).
O Supremo Tribunal Federal já se pronunciou e reconhece o direito ao ensino inclusivo em todos os níveis de educação como imperativo decorrente de regra explícita, alertando que é por meio do convívio com a diferença e com o seu necessário acolhimento que pode haver a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em que o bem de todos seja promovido sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, segundo o artigo 3º, incisos I e IV, da Constituição da República:
AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE. MEDIDA CAUTELAR. LEI 13.146/2015. ESTATUTO DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. ENSINO INCLUSIVO. CONVENÇÃO INTERNACIONAL SOBRE OS DIREITOS DA PESSOA COM DEFICIÊNCIA. INDEFERIMENTO DA MEDIDA CAUTELAR. CONSTITUCIONALIDADE DA LEI 13.146/2015 (arts. 28, § 1º e 30, caput, da Lei nº 13.146/2015). 1. A Convenção Internacional sobre os Direitos da Pessoa com Deficiência concretiza o princípio da igualdade como fundamento de uma sociedade democrática que respeita a dignidade humana. 2. À luz da Convenção e, por consequência, da própria Constituição da República, o ensino inclusivo em todos os níveis de educação não é realidade estranha ao ordenamento jurídico pátrio, mas sim imperativo que se põe mediante regra explícita. 3. Nessa toada, a Constituição da República prevê em diversos dispositivos a proteção da pessoa com deficiência, conforme se verifica nos artigos 7º, XXXI, 23, II, 24, XIV, 37, VIII, 40, § 4º, I, 201, § 1º, 203, IV e V, 208, III, 227, § 1º, II, e § 2º, e 244. 4. Pluralidade e igualdade são duas faces da mesma moeda. O respeito à pluralidade não prescinde do respeito ao princípio da igualdade. E na atual quadra histórica, uma leitura focada tão somente em seu aspecto formal não satisfaz a completude que exige o princípio. Assim, a igualdade não se esgota com a previsão normativa de acesso igualitário a bens jurídicos, mas engloba também a previsão normativa de medidas que efetivamente possibilitem tal acesso e sua efetivação concreta. 5. O enclausuramento em face do diferente furta o colorido da vivência cotidiana, privando-nos da estupefação diante do que se coloca como novo, como diferente. 6. É somente com o convívio com a diferença e com o seu necessário acolhimento que pode haver a construção de uma sociedade livre, justa e solidária, em que o bem de todos seja promovido sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação (Art. 3º, I e IV, CRFB). 7. A Lei nº 13.146/2015 indica assumir o compromisso ético de acolhimento e pluralidade democrática adotados pela Constituição ao exigir que não apenas as escolas públicas, mas também as particulares deverão pautar sua atuação educacional a partir de todas as facetas e potencialidades que o direito fundamental à educação possui e que são densificadas em seu Capítulo IV. 8. Medida cautelar indeferida. 9. Conversão do julgamento do referendo do indeferimento da cautelar, por unanimidade, em julgamento definitivo de mérito, julgando, por maioria e nos termos do Voto do Min. Relator Edson Fachin, improcedente a presente ação direta de inconstitucionalidade. (ADI 5357 MC-Ref. Relator Ministro EDSON FACHIN, Tribunal Pleno, julgado em 09/06/2016, Processo Eletrônico DJe-240 Divulgado em 10/11/2016, Publicado em 11/11/2016).
O acesso da pessoa com deficiência ao ensino inclusivo em escolas regulares também se vê em vários diplomas legais brasileiros, tais como os Decretos nº 6.571/2008, nº 7.611/2011, nº 7.612/2011, e as Leis nº 12.764/2012, 13.146/2015.
Ou seja, a educação da pessoa com deficiência, assim como a das demais sem deficiência, se dá única e exclusivamente dentro do sistema inclusivo, conforme balizado pela Constituição da República e pela Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, tratando-se de direito fundamental, sem hipótese de alteração em sua previsão ordinária ou de regulamentação, e muito menos com viés de retrocesso como está no Decreto nº 10.502/2020.
2. As infringências às disposições constitucionais e legais praticadas pelo Poder Executivo ao publicar o Decreto nº 10.502/2020.
O Decreto nº 10.502, de 30 de setembro de 2020, que instituiu a Política Nacional de Educação Especial: Equitativa, inclusiva e com Aprendizado ao Longo da Vida, embora pareça disciplinar uma política pública que vise à igualdade de oportunidade e garanta o aprendizado ao longo da vida da pessoa com deficiência, o seu conteúdo revela-se contra a educação inclusiva, em afronta direta aos princípios e disposições constitucionais da Constituição da República, da CDPD e da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI) (Lei nº 13. 146/2015), uma vez que prevê e incentiva a criação e manutenção de escolas e classes especiais exclusivas para as pessoas com deficiência, em substituição aos ambientes de escolarização inclusiva, sendo estes últimos o lugar próprio para valorizar a diversidade.
Para efetivar o direito das pessoas com deficiência à educação sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, aponta o Artigo 24 da CDPD, item 1, que os Estados Partes assegurarão um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida, com os seguintes objetivos:
a) o pleno desenvolvimento do potencial humano e do senso de dignidade e autoestima, além do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos, pelas liberdades fundamentais e pela diversidade humana;
b) O máximo desenvolvimento possível da personalidade e dos talentos e criatividade das pessoas com deficiência, assim como de suas habilidades físicas e intelectuais;
c) A participação efetiva das pessoas com deficiência em uma sociedade livre.
E segue o Artigo 24, item 2 da CDPD, estabelecendo que, para a realização do direito à educação pelas pessoas com deficiência, os Estados Partes assegurarão que:
a) As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação da deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência;
b) As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino primário inclusivo, de qualidade e gratuito, e ao ensino secundário, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem;
c) Adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais sejam providenciadas;
d) As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação;
e) Medidas de apoio individualizas e efetivas sejam adotadas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta da inclusão plena.
Observa-se, portanto, que a afirmação de que as pessoas com deficiência não devem ser excluídas do sistema educacional geral sob alegação da deficiência (alínea a, 2, Artigo 24 CDPD) é o quanto basta para considerar o Decreto nº 10.502/2020 inconstitucional.
2.1 O Decreto nº 10.502/2020 infringe todos os comandos constitucionais e convencionais
A Constituição da República estabelece como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana (artigo 1º, inciso III) e como um dos seus objetivos fundamentais o de promover o bem de todos(as), sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação (artigo 3º, inciso IV), além de expressamente declarar que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza (artigo 5º, caput).
Essa base nuclear fundada na dignidade da pessoa humana permeia todos os domínios e direitos também das pessoas com deficiência. Assim, quando a Constituição da República trata da educação, dirige-a como um direito de todos(as), devendo ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho (artigo 205), cujo ensino tem como um dos seus princípios a igualdade de condições para o acesso e permanência na escola (artigo 206, inciso I), garantindo à pessoa com deficiência o atendimento educacional especializado, preferencialmente na rede regular de ensino (artigo 208 inciso III).
A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, no Preâmbulo, alíneas h, k, reconhece que a “discriminação contra qualquer pessoa, por motivo de deficiência, configura violação da dignidade e do valor inerentes ao ser humano” e que há “necessidade de promover e proteger os direitos humanos de todas as pessoas com deficiência, inclusive daquelas que requerem maior apoio” e expressamente no Artigo 2 define o significado de discriminação por motivo de deficiência: “qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, como o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, social, civil ou qualquer outro. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável”. Mais à frente, no Artigo 5, estabelece que os países que a ela aderirem devem proibir qualquer discriminação baseada na deficiência e garantir às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo.
A CDPD indica no artigo 3 os princípios que a norteiam, ou seja, o respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas; a não discriminação; a plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; o respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade; a igualdade de oportunidades; a acessibilidade; a igualdade entre o homem e a mulher; o respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua identidade.
A mencionada Convenção também define que as pessoas com deficiência devem ter a igual proteção e igual benefício da lei (Artigo 5, item 1), e que sua aderência ao sistema jurídico obriga os Estados Parte a reconhecerem o direito à educação, sendo que, para efetivar esse direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, devem assegurar um sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida” (Artigo 24, item 1);
No artigo 24, item 2, alíneas a-e, está reforçado que a garantia do direito à educação das pessoas com deficiência implica em:
• não serem excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência;
• terem acesso ao ensino primário inclusivo, de qualidade e gratuito, e ao ensino secundário, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem;
• serem providenciadas as adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais;
• receberem o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação;
• receberem apoio individualizado e efetivo em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena.
O Brasil, segundo o Artigo 4, item 1, alíneas a-d, está comprometido e deve assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência, devendo adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na CDPD, cuidando especialmente de:
• modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência;
• proteger e promover os direitos humanos das pessoas com deficiência em todos os programas e políticas;
• abster-se de participar em qualquer ato ou prática incompatível com a CDPD e assegurar que as autoridades públicas e instituições atuem em conformidade com ela.
Além disso, o item 3 do Artigo 4 da CDPD é contundente ao determinar que, na elaboração e implementação de legislação e políticas públicas, e em todos os processos de tomada de decisão que envolvam as pessoas com deficiência, o Brasil deve realizar consultas estreitas e envolver ativamente as pessoas com deficiência, inclusive crianças com deficiência, por intermédio de suas organizações representativas – o Brasil está em mora porque ainda não dispõe do obrigatório mecanismo de consulta, à exceção das consultas públicas realizadas por agências de governo, o que não é o caso -. O fato é que não ocorreu consulta estreita no caso do Decreto nº 10.502/2020.
Não houve consulta para as previsões retrocessivas do Decreto nº 10.502/2020. Os responsáveis pela elaboração das previsões regulamentadas e o Presidente da República não seguiram a determinação da CDPD. Não se atentou para a obrigação da CDPD, sequer para o antigo lema “nada sobre nós sem nós” da Organização das Nações Unidas quando em 1975 edificou a Declaração dos Direitos das Pessoas Deficientes (As organizações de pessoas deficientes podem ser beneficamente consultadas em todos os assuntos referentes aos direitos das pessoas deficientes).
Tratando-se de uma política pública concernente à educação, cujas ações têm implicação direta na sociedade brasileira, sequer o órgão responsável pelo controle social foi ouvido para aferir previamente a medida, tal como preconizado constitucionalmente. O Conselho Nacional dos Direitos das Pessoas com Deficiência (Conade), que integra a estrutura do Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos (artigo 44, inciso XIII da Lei n° 13.844/2019), não foi ouvido, não obstante não represente todas organizações de pessoas com deficiência e nem tenha uma forma de escolha para a sua composição compatível com a efetiva representatividade, na forma exigida pelos Princípios de Paris relacionados ao status de instituições nacionais de direitos humanos (Resolução 1992154, de 3 março de 1992, da Comissão de Direitos Humanos da ONU, http://www.dhnet.org.br/direitos/brasil/textos/principioparis.htm , acesso em 25/11/2020).
Nenhuma consulta foi feita às organizações representativas de pessoas com deficiência violando o item 3 do Artigo 4 da CDPD.
2.2 O Decreto nº 10.502/2020 extrapola a capacidade de regulamentação da Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência
O fundamento constitucional no artigo 84, caput e inciso IV, para a expedição do Decreto nº 10.502/2020 está além da sua capacidade regulamentadora.
A Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI), reflete a CDPD e afirma, no artigo 27, que a educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem, complementando, em seu parágrafo único, que É dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violência, negligência e discriminação.
Destacam-se do artigo 28 da LBI a incumbência do Poder Público em assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar:
I – um sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida;
II – o aprimoramento dos sistemas educacionais, visando a garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena;
[…] V – a adoção de medidas individualizadas e coletivas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com deficiência, favorecendo o acesso, a permanência, a participação e a aprendizagem em instituições de ensino;
[…] VII – o planejamento de estudo de caso, de elaboração de plano de atendimento educacional especializado, de organização de recursos e serviços de acessibilidade e de disponibilização e usabilidade pedagógica de recursos de tecnologia assistiva;
VIII – participação dos estudantes com deficiência e de suas famílias nas diversas instâncias de atuação da comunidade escolar;
IX – adoção de medidas de apoio que favoreçam o desenvolvimento dos aspectos linguísticos, culturais, vocacionais e profissionais, levando-se em conta o talento, a criatividade, as habilidades e os interesses do estudante com deficiência;
X – adoção de práticas pedagógicas inclusivas pelos programas de formação inicial e continuada de professores e oferta de formação continuada para o atendimento educacional especializado;
[…] XIII – acesso à educação superior e à educação profissional e tecnológica em igualdade de oportunidades e condições com as demais pessoas.
E o Decreto nº 10.502/2020, ao prever e estimular, inclusive com possibilidade de financiamento, escolas e classes especiais, cujos conceitos e normatizações colidem e vão além do que está inserido na Lei nº 13.146/2020, foge ao seu alcance regulamentatório.
2.3 Educação especial como modalidade de educação – conforme a previsão do Decreto nº 10.502/2020 – em contraposição à modalidade de ensino – tal como preceitua a Constituição da República, a CDPD e a LBI
A CDPD assegura um sistema de educação inclusiva em todos os níveis de ensino, em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social compatível com a meta da plena participação e inclusão na sociedade. Ela também reconhece no Preâmbulo, alínea r, que as crianças com deficiência devem gozar plenamente de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais em igualdade de oportunidades com as outras crianças e relembra as obrigações assumidas na Convenção sobre os Direitos das Crianças.
O propósito da CDPD é promover, proteger e assegurar o exercício pleno e equitativo de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência e promover o respeito pela sua dignidade inerente (Artigo 1). E dentre esses direitos humanos está o direito das pessoas com deficiência a uma educação inclusiva, junto de alunos sem deficiência, em escolas e classes que preservem e valorizem a diversidade dos indivíduos. Esse ambiente diverso é que verdadeiramente fará com que alcancem o pleno desenvolvimento do potencial humano e do senso de dignidade e autoestima, além do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos, pelas liberdades fundamentais e pela diversidade humana (Artigo 24, item 1, alínea a), e onde se dará o máximo desenvolvimento possível da personalidade e dos talentos da criatividade das pessoas com deficiência, assim como de suas habilidades físicas e intelectuais(Artigo 24, item 1, alínea b), permitindo, por fim, a participação efetiva das pessoas em uma sociedade livre (Artigo 24, item 1, alínea c).
Para efetivação do disposto na CDPD deve-se garantir, entre outras providências:
• adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais do aluno (Artigo 24, item 2, alínea c), ou seja, o aluno, dentro do sistema inclusivo de educação, em escolas e classes comuns, deve ter as suas necessidades educacionais atendidas, inclusive como condição de igualde de oportunidade de acesso ao aprendizado;
• o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação (artigo 24, item 2, alínea d);
• adoção de medidas de apoio individualizadas efetivas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena (artigo 24, item 2, alínea e) que, necessariamente, será em um ambiente que valorize a diversidade das pessoas, refletindo a sociedade plural na qual o indivíduo com deficiência deverá ter uma participação plena e desenvolverá a sua atividade profissional e produtiva.
A partir do fundamento da CDPD e das garantias que ela preconiza, conclui-se que a educação especial não pode ser uma modalidade de educação, como tratado no Decreto nº 10.502/2020, pois a única hipótese admitida constitucionalmente é a educação inclusiva. Usando-se o termo educação especial, entendida como uma modalidade de ensino, que tem caráter transverso, desde a educação infantil até a educação superior, sempre atuando de forma articulada com o ensino comum e constituindo-se em uma ferramenta de equiparação de oportunidade de aprendizado e de desenvolvimento para os alunos com deficiência, altas habilidades/superdotação e transtornos globais do desenvolvimento.
Conclui-se também que a educação especial deve realizar o atendimento educacional especializado, disponibilizar os recursos e serviços, além de orientar quanto à utilização daqueles no processo de ensino e aprendizagem nas turmas comuns do ensino regular.
Bezerra e Bezerra (2019, p. 175), ao se referirem aos artigos 205 e 206 da Constituição da República, afirmam que a educação é um direito de todos, independente da característica do indivíduo, sendo que as pessoas com deficiência podem ter o apoio do atendimento educacional especializado, este oferecido preferencialmente na rede de ensino:
[…] a educação é um direito de todos independentemente das características ou habilidades do indivíduo, tem como objetivo o pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho, tendo como um dos seus princípios a igualdade de condições para o acesso e a permanência na escola.
[…] Para o caso de pessoas com deficiência, elas podem contar, ainda, com o apoio do atendimento educacional especializado, que, segundo o artigo 208 da nossa Carta Magna, deve ser oferecido preferencialmente na própria rede de ensino do educando, ferramenta indispensável para se atingir a igualdade de oportunidades e, muitas vezes, até viabilizar o aprendizado daquelas.
2.4 O atendimento educacional especializado não pode ser prestado de forma dissociada da escolarização inclusiva, pois é somente uma ferramenta de complementação ou de suplementação daquela. Inconstitucionalidade do Decreto nº 10.502/2020.
A Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva, implementada no Brasil desde 2008, após o advento da CDPD, é uma modalidade não substitutiva da escolarização, transversal a todos os níveis, etapas e modalidades de educação:
De acordo com a Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva (MEC, 2008) a educação especial se torna modalidade não mais substitutiva, mas complementar ou suplementar, transversal a todos os níveis etapas e modalidades da educação.
A educação especial é definida como uma modalidade de ensino que perpassa todos os níveis, etapas e modalidades, que disponibiliza recursos e serviços, realiza o atendimento educacional especializado e orienta quanto a sua utilização no processo de ensino e aprendizagem nas turmas comuns do ensino regular (Revista Inclusão, p. 15).
Assim, cumpre destacar que os objetivos da Política Nacional de Educação Especial na Perspectiva da Educação Inclusiva coadunam-se com as diretrizes da CDPD, ao definir as seguintes estratégias:
. Transversalidade da educação especial desde a educação infantil até a educação superior;
. Atendimento Educacional Especializado;
. Continuidade da escolarização nos níveis mais elevados de ensino;
. Formação de professores para o atendimento educacional especializado e demais profissionais da educação para a inclusão escolar;
. Participação da família e da comunidade;
. Acessibilidade urbanística, arquitetônica, nos mobiliários, equipamentos, nos transportes, na comunicação e informação;
. Articulação intersetorial na implementação das políticas públicas.
O atendimento educacional especializado, portanto, não pode ser a única forma de “educação” do(a) aluno(a) com deficiência, pois é apenas uma ferramenta à disposição para se obter a igualdade de oportunidade ao aprendizado, dentro de um sistema educacional inclusivo.
A consideração pelo Decreto nº 10.502/2020 de “escolas especializadas”, como “instituições de ensino planejadas para o atendimento educacional aos educandos da educação especial que não se beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas regulares inclusivas e que apresentam demanda por apoios múltiplos e contínuos”, é inconstitucional porque colide com o previsto no artigo 24 da CDPD e nos artigos 205, 206 e 208 da Constituição da República, entre os vários outros dispositivos constitucionais e legais já mencionados.
Pergunta-se, quem estaria habilitado(a) para declarar ou decretar que determinado(a) aluno(a) com deficiência não se beneficiaria com a sua inclusão em escolas regulares inclusivas e que deveria frequentar apenas o atendimento educacional especializado em escola especializada?
Pergunta-se, quem estaria autorizado(a), por instrumento de regulamentação, a praticar a discriminação por motivo de deficiência, prevista no Artigo 2 da CDPD – que afirma significar “Discriminação por motivo de deficiência” qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, com o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos só direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, econômico, social, cultural, civil ou qualquer outro. Abrange todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável – ?
Reposta aos dois questionamentos: não é possível eleger ninguém, nem mesmo os pais, pois a conduta é vedada, inclusive constitucionalmente, podendo implicar, dependendo do caso concreto, em conduta tipificada como crime na Lei nº 7.853, de 24 de outubro de 1989, com a redação dada pela Lei nº 13.146/2015, como se verá adiante, em tópico específico:
Art. 8º Constitui crime punível com reclusão de 2 (dois) a 5(cinco) anos e multa:
I – recusar, cobrar valores adicionais, suspender, procrastinar, cancelar ou fazer cessar inscrição de aluno em estabelecimento de ensino de qualquer curso ou grau, público ou privado, em razão de sua deficiência.
Como se constata, não há como considerar uma escolarização inclusiva quando o atendimento educacional especializado é o fim em si mesmo, e não uma ferramenta complementar ou suplementar de equiparação de oportunidades.
É a própria definição de escola especializada constante do Decreto nº 10.502/2020 que revela a sua natureza ou para o que está planejada: a oferta exclusiva de atendimento educacional especializado “aos educandos da educação especial que não se beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas regulares inclusivas e que apresentam demanda por apoios múltiplos e contínuos”.
Essa previsão está diametralmente oposta ao que se conhece do atendimento educacional especializado, que deve ser prestado observando o(a) aluno(a) no seu dia-a-dia na sala de aula comum, identificando e ofertando os recursos, ferramentas e adequações pedagógicas de que necessita para ter a mesma oportunidade de desenvolvimento e aprendizagem em sua escolarização, tal qual aos demais sem deficiência. É impossível imaginar um atendimento educacional especializado que não esteja esculpido com esse fim! Há muito se sabe que o atendimento educacional especializado é uma ferramenta de apoio, que complementa ou suplementa a escolarização, nunca a substituindo.
Melhor previsão não tem o disciplinamento do Decreto nº 10.502/2020 quanto às classes especializadas: “classes organizadas em escolas regulares inclusivas, com acessibilidade de arquitetura, equipamentos, mobiliário, projeto pedagógico e material didático, planejados com vistas ao atendimento das especificidades do público ao qual são destinadas, e que devem ser regidas por profissionais qualificados para o cumprimento de sua finalidade”. Se assim é, pois tudo que nela está contemplado deve fazer parte das classes comuns inclusivas, pergunta-se qual o sentido desse ambiente segregado existir?
É certo que todos os ambientes das edificações escolares, públicas ou privadas, devem ser acessíveis, o mesmo ocorrendo em relação ao mobiliário, material didático, projeto pedagógico e demais ferramentas de acessibilidade e de igualdade de oportunidades ao aprendizado, mesmo em se tratando de sala de aula comum, sendo indispensável um plano individualizado para o(a) aluno(a) com deficiência, levando-se em consideração as suas características, habilidades, comunicação utilizada e demais individualidades que possua.
Conclui-se que a existência de escolas especializadas e classes especiais só propicia a discriminação baseada na deficiência. A proposição de existência de escolas especializadas e classes especiais violenta a garantia de igual e efetiva proteção contra a discriminação por motivo de deficiência prevista no Artigo 5, itens 1 e 2 da CDPD:
Artigo 5
1.Os Estados Partes reconhecem que todas as pessoas são iguais perante e sob a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei.
2. Os Estados Partes proibirão qualquer discriminação baseada na deficiência e garantirão às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo.
Corrobora com essa conclusão o Comentário Geral 4 sobre educação inclusiva do Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU) (Committee on the Rights of Persons with Disabilities – CRPD), ao afirmar que a exclusão de pessoas com deficiência do sistema educacional geral dever ser proibida:
Para que o artigo 24, parágrafo 2 (a) seja implementado, a exclusão de pessoas com deficiência do sistema educacional geral deve ser proibida, incluindo através de quaisquer disposições legislativas ou regulamentares que limitem sua inclusão com base em sua deficiência ou no “nível” de seu comprometimento, como por exemplo, condicionar a inclusão ao potencial do indivíduo, ou alegando acarretar uma carga desproporcional e indevida para fugir da obrigação de fornecer uma adaptação razoável. Educação geral significa todos os ambientes de aprendizagem regulares e o departamento de educação. Exclusão direta seria classificar certos estudantes como “não-educáveis” e, portanto, inelegíveis para ter acesso à educação. A exclusão indireta seria a exigência de passar num teste comum como condição para a entrada na escola sem adaptações e apoios razoáveis.
[…] Os Estados Partes devem respeitar, proteger e cumprir cada um dos aspectos essenciais do direito à educação inclusiva: disponibilidade, acessibilidade, aceitabilidade, adaptabilidade. Para respeitar, é fundamental evitar medidas que impeçam o gozo do direito, como a legislação excluindo crianças com deficiência de educação, ou a negação de acessibilidade ou adaptação razoável. Para proteger, devem ser tomadas medidas que impeçam que terceiros interfiram no gozo do direito, por exemplo, os pais se recusarem a enviar meninas com deficiência à escola, ou as instituições privadas se recusarem a matricular pessoas com deficiência com base em suas limitações. Para cumprir, é requerida a adoção de medidas que permitam e ajudem as pessoas com deficiência a desfrutarem o direito à educação, por exemplo, que as instituições de ensino sejam acessíveis e que os sistemas educacionais sejam adaptados adequadamente com recursos e serviços.
(http://www.movimentodown.org.br/2017/12/comentario-geral-4-sobre-educacao-inclusiva-do-comite-da-convencao-da-onu-sobre-os-direitos-das-pessoas-com-deficiencia/ , acesso 24/10/2020).
A definição sobre as escolas especializadas do art. 2º, inciso VI, do Decreto 10.502/2020, cujo público-alvo são os “educandos da educação especial que não se beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas regulares inclusivas e que apresentam demanda por apoios múltiplos e contínuos”, somada ao princípio da nova política quanto à “participação de equipe multidisciplinar no processo de decisão da família ou do educando quanto à alternativa educacional mais adequada”, claramente desobedecem ao previsto no artigo 24 da CDPD e ao artigo 205 da Constituição da República. Essa previsão, segundo Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU acima apontado é previsão e prática que devem ser proibidas.
2.5 A educação bilíngue de surdos prevista no Decreto nº 10.502/2020 contraria a Constituição da República e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, além da Lei Brasileira de Inclusão das Pessoas com Deficiência
O Decreto nº 10.502/2020 considera a educação bilíngue de surdos como uma “modalidade de educação escolar que promove a especificidade linguística e cultural dos educandos surdos, deficientes auditivos e surdocegos que optam pelo uso da Língua Brasileira de Sinais, Libras como primeira língua e como língua de instrução, comunicação, interação e ensino, e da língua portuguesa na modalidade escrita como segunda língua” (artigo 2º, inciso II).
Define as escolas bilíngues de surdos como sendo “instituições de ensino da rede regular nas quais a comunicação, a instrução, a interação e o ensino são realizados em Libras como primeira língua e em língua portuguesa na modalidade escrita como segunda língua, destinadas a educandos surdos, que optam pelo uso da Libras, com deficiência auditiva, surdocegos, surdos com outras deficiências associadas e surdos com altas habilidades ou superdotação” (artigo 2º, inciso, VIII).
Prevê que classes bilíngues de surdos são “classes com enturmação de educandos surdos, com deficiência auditiva e surdocegos, que optam pelo uso da Libras, organizadas em escolas regulares, em que a Libras é reconhecida como primeira língua e utilizada como língua de comunicação, interação, instrução e ensino, em todo o processo educativo, e a língua portuguesa na modalidade escrita é ensinada como segunda língua”.
Os conceitos indicam a “enturmação” entre pessoas com deficiência sensorial – deficiência auditiva, surdos(as), surdocegos(as) – e revelam a existência de instituições de ensino e classes exclusivas para esse público. Essa previsão segregada de pessoas com deficiência é prática proibida.
As ferramentas previstas no Decreto nº 10.502/2020 para as escolas bilíngues de pessoas surdas e classes bilíngues de pessoas surdas devem, no entanto, ser oferecidas em escolas e classes inclusivas, posto serem ferramentas indispensáveis para o aprendizado do(a) aluno(a) surdo(a) ou surdocego(a).
Ao contrário do que está no Decreto nº 10.502/2020, deveria ser prevista a obrigatoriedade do ensino da Libras para todos(as) os(as) alunos(as), inclusive na base nacional comum curricular (Lei nº 9.394/1996), desde o ensino infantil, independentemente serem surdos(as) ou não. Com esse avanço legislativo e com o passar dos anos, estaria rompida a barreira de comunicação entre a pessoa surda, que se comunica por meio da Libras, e a pessoa sem deficiência que também aprendeu Libras ao longo da sua educação. Essa boa prática permitiria que todos(as) na sociedade soubessem se comunicar por meio da Libras, inclusive em futuros ambientes de trabalho.
Enfatize-se que o bilinguismo deve ser garantido no sistema inclusivo de ensino, a ser implementado de acordo com os ditames constitucionais e legais, como uma ferramenta de equiparação de oportunidade de aprendizagem.
Diversa é a educação bilíngue para pessoas surdas, em escolas e classes especiais, como uma modalidade de educação, conforme pretende o Decreto nº 10.502/2020 – lembre-se que a educação escolar tem diferentes níveis: a) básica – infantil com as fases: creche e pré-escola), b) fundamental e médio; c) superior (graduação, pós-graduação e extensão) -. Portanto, o que pretende o Decreto nº 10.502/2020 para o Brasil é violar o direito de alunos(as) com deficiência sensorial conviverem com alunos(as) sem deficiência, em todos os níveis de ensino e pelo tempo que perdurar, contrariando os princípios da CDPD do Artigo 3, alíneas a-h, e o Artigo 24.
2.6 Política educacional inclusiva com medidas equitativas implementadas na educação inclusiva, único modelo permitido pela Constituição da República e CDPD. Descabimento da escola especial se o pretendido é uma sociedade que proporcione aprendizado ao longo de toda a vida.
As políticas educacionais equitativa, inclusiva e com aprendizado ao longo da vida estão definidas no Decreto nº 10.502/2020, artigo 2º, incisos III e IV, como sendo:
Política educacional equitativa – conjunto de medidas planejadas e implementadas com vistas a orientar as práticas necessárias e diferenciadas para que todos tenham oportunidades iguais e alcancem os seus melhores resultados, de modo a valorizar ao máximo cada potencialidade e eliminar ou minimizar as barreiras que possam obstruir a participação plena e efetiva do educando na sociedade;
Política educacional inclusiva – conjunto de medidas planejadas e implementadas com vistas a orientar as práticas necessárias para desenvolver, facilitar o desenvolvimento, supervisionar a efetividade e reorientar, sempre que necessário, as estratégias, os procedimentos, as ações, os recursos e os serviços que promovem a inclusão social, intelectual, profissional, política e os demais aspectos da vida humana, da cidadania e da cultura, o que envolve não apenas as demandas do educando, mas, igualmente, suas potencialidades, suas habilidades e seus talentos e resulta em benefício para a sociedade como um todo;
Política de educação com aprendizado ao longo da vida – conjunto de medidas planejadas e implementadas para garantir oportunidades de desenvolvimento e aprendizado ao longo da existência do educando, com a percepção de que a educação não acontece apenas no âmbito escolar, e de que o aprendizado pode ocorrer em outros momentos e contextos, formais ou informais, planejados ou casuais, em um processo ininterrupto;
Para que as políticas educacional equitativa e educacional inclusiva sejam consideradas constitucionais, ambas devem ser implementadas no sistema inclusivo, único considerado constitucional. No entanto, a política descrita no Decreto nº 10.502/2020 fortalece e estimula a criação de escolas especiais, concebidas em espaços à parte e segregados, onde, muitas vezes, os serviços prestados são de saúde e psicológico, e não o de educação.
O sistema educacional equitativo e inclusivo só pode ser assim considerado se contemplar a diversidade dos(as) educandos(as), ofertando as ferramentas que levem à equiparação de oportunidades (equitativos), à não discriminação, à acessibilidade, à plena e efetiva participação e inclusão na sociedade, ao respeito pela dignidade inerente das pessoas com deficiência e pela diferença e aceitação das pessoas como deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade, além do respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito de tais crianças de preservarem a sua identidade, investindo-se na sua autonomia e independência.
Portanto, não se considera como sistema educacional equitativo e inclusivo as escolas e as classes especiais pois contrariam o disposto na Constituição da República e na CDPD, especialmente os seus princípios gerais previstos no Artigo 3 e Artigo 24.
Não considera um ambiente inclusivo se nele não está presente a diversidade humana que é composta por pessoas com deficiência.
De igual modo, não se considera um ambiente inclusivo se não se credita valor ao potencial humano das pessoas com deficiência, as quais, segundo o Decreto nº 10.502/2020, podem ser retiradas dos ambientes escolares comuns diante das suas características e das necessidades eventuais de ferramentas e apoios.
Ressalte-se que o sistema educacional equitativo é aquele que possibilita a igualdade de oportunidades de aprendizagem e desenvolvimento em relação aos(às) alunos(as) com e sem deficiência. A ferramenta fundamental para que a igualdade de oportunidades ocorra é exatamente a oferta de atendimento educacional especializado que, somada à escolarização comum, identificadas as adaptações razoáveis (individuais de cada aluno(a) com deficiência, altas habilidades/superdotação e transtornos globais de desenvolvimento) postas à disposição do(a) aluno(a), rompem as barreiras limitadoras do acesso à educação, tal como preconiza o artigo 205 da Constituição da República.
Também o 4º Objetivo de Desenvolvimento Sustentável (ODS) da ONU prevê a garantia de educação inclusiva, equitativa e de qualidade, promovendo oportunidades de aprendizagem ao longo da vida para todas e todos. Perceba-se que a escola e classe especial previstas no Decreto nº 10.502/2020 estão na contramão desse objetivo, pois não garantem a equidade almejada, implicando em baixa qualidade na oferta de ensino e no menor desenvolvimento humano dos(as) alunos(as) com e sem deficiência, não reconhecidos em sua diversidade humana, base imprescindível para a transformação social que tanto se busca alcançar.
O conceito e compreensão de aprendizado ao longo de toda a vida, segundo o relatório da UNESCO de 1996, elaborado pela Comissão Internacional sobre Educação para o Século XXI – EDUCAÇÃO UM TESOURO A DESCOBRIR ( http://dhnet.org.br/dados/relatorios/a_pdf/r_unesco_educ_tesouro_descobrir.pdf , acesso 17/outubro/2020), sob a coordenação de Jacques Delors, ultrapassa a distinção tradicional entre educação inicial e educação permanente. Aproxima-se de um outro conceito proposto com frequência: o da sociedade educativa, onde tudo pode ser ocasião para aprender e desenvolver os próprios talentos (fl 117). O apreender ao longo da vida, não está circunscrito à atualização, reciclagem, conversão e promoção profissionais dos adultos, mas se amplia para aplacar a sede de conhecimento, de beleza ou de superação de si mesmo, ou ainda, ao desejo de aperfeiçoar e ampliar as formações estritamente ligadas às exigências da vida profissional, incluindo as formações práticas.
O certo é que a educação ao longo de toda a vida aproveita-se das múltiplas oportunidades oferecidas pela sociedade de aprender na escola, na vida econômica social e na vida cultural.
Uma das conclusões do relatório Delours é que qualquer política de educação e seu planejamento deve se orientar na equidade, na pertinência e na excelência a favor da pessoa.
Portanto, a única compreensão possível a ser extraída da proposição do Artigo 24 da CDPD quando trata da educação é que o aprendizado ao longo de toda a vida inclui a vida social e cultural, e não só a escola:
Artigo 24, item 1 Os Estados Partes reconhecem o direito das pessoas com deficiência à educação. Para efetivar esse direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados Partes assegurarão sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida […].
É certo que, para crianças e adolescentes com e sem deficiência, a escola é obrigatória entre 4 e 17 anos de idade. Após esse período, o(a) aluno(a) com deficiência poderá frequentar a modalidade de ensino do tipo EJA (Educação de Jovens e Adultos), o ensino profissionalizante ou uma graduação. Em qualquer delas deverá estar presente o atendimento educacional especializado.
O aprendizado ao longo de toda a vida, como um dos princípios de ensino (artigos 206 inciso IX da Constituição da República e 3º inciso XIII da Lei n° 9.394/1996), por sua vez, só ocorre em uma sociedade inclusiva que acolhe e propicia informação, conhecimento e comunicação acessível, para todos e para todas.
Pergunta-se, como é possível uma sociedade que não se assenta em um sistema educacional inclusivo, como consta do Decreto nº 10.502/2020, garantir o aprendizado ao longo de toda a vida para pessoas com deficiência, cujo lugar de aprender é, além da escola, a vida social, econômica (trabalho) e cultural?
2.7 Política nacional deve ser dirigida, inclusive com financiamentos, para a garantia dos direitos à educação na única modalidade revestida de constitucionalidade e legalidade: a educação inclusiva.
O Decreto nº 10.502/2020 prevê a assistência financeira da União para implementar a nova política nacional de educação, incentivando e autorizando a segregação em escolas e classes especiais.
Referida assistência financeira, por meio de dotações orçamentárias consignadas na Lei Orçamentária Anual ao Ministério da Educação, em equipamentos não inclusivos de ensino, ocorrerá com o emprego de verbas públicas. No entanto, como é possível prever orçamento de destinação de recursos para um sistema educacional não inclusivo, em afronta à Constituição da República e CDPD?
Se tais recursos serão provenientes do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb), cuja distribuição deve ocorrer de forma igualitária aos Municípios, Estados e ao Distrito Federal, os mesmos deverão garantir o desenvolvimento da educação inclusiva e não outra.
Está previsto na Emenda Constitucional 108/2020, artigo 212-A, que além da manutenção e desenvolvimento do ensino na educação básica e da remuneração condigna dos professores, os recursos deverão atender aos alunos e às alunas das diversas etapas e modalidades da educação básica matriculados(as) nas respectivas redes, nos âmbitos de atuação prioritária. Ora, a previsão de escolas e classes especiais previstas no Decreto nº 10.502/2020 choca-se com essa previsão constitucional.
Consigne-se que o Comentário Geral 4 sobre educação inclusiva do Comitê dos Direitos das Pessoas com Deficiência da Organização das Nações Unidas (ONU) (Committee on the Rights of Persons with Disabilities – CRPD) afirma que os Estados Partes, ao elaborarem as políticas públicas de educação e planos intersetoriais para apoiarem a implementação da educação inclusiva, devem observar o princípio da consumação progressiva e, principalmente, a transferência de recursos de ambientes segregados para ambientes inclusivos:
Os Estados Partes devem comprometer recursos financeiros e humanos suficientes ao longo do desenvolvimento do plano setorial de educação e planos intersetoriais para apoiar a implementação da educação inclusiva de acordo com o princípio da consumação progressiva. Os Estados Partes devem reformar seus sistemas de governança e mecanismos de financiamento para assegurar o direito à educação de todas as pessoas com deficiência. Os Estados Partes também devem alocar orçamentos usando mecanismos disponíveis no âmbito de processos de contratação pública e parcerias com o setor privado. Essas alocações devem priorizar, entre outras coisas, a garantia de recursos adequados para tornar acessíveis as configurações educacionais existentes, investir na formação em educação inclusiva, disponibilizar adaptações razoáveis, fornecer transporte acessível para a escola, disponibilizar livros apropriados e acessíveis, bem como materiais de ensino e aprendizagem, garantindo o aprovisionamento de tecnologia assistiva e língua de sinais, e implementando iniciativas de conscientização para enfrentar o estigma e a discriminação, particularmente o bullying em ambientes educacionais.
O Comitê insta os Estados Partes a transferirem recursos de ambientes segregados para ambientes inclusivos. Os Estados Partes devem desenvolver um modelo de financiamento que aloque recursos e incentivos para que ambientes educativos inclusivos forneçam o apoio necessário às pessoas com deficiência. A determinação da abordagem mais adequada para o financiamento será baseada de forma significativa pelo ambiente educacional existente e os requisitos de potenciais estudantes com deficiência que sejam afetados por ele.
2.8 Escolha da família ou do(a) educando(a) diante da alternativa educacional mais adequada – escola inclusiva ou escola especial -? Impossibilidade. Inexistência de alternativa diversa do sistema educacional inclusivo por imposição constitucional e legal.
A educação é considerada um direito humano, fundamental e indisponível, sendo obrigatório no Brasil para as crianças e adolescentes com e sem deficiência na idade entre 04 e 17 anos, assegurada inclusive para todos(as) que a ela não tiveram acesso na idade própria, de forma gratuita, conforme estabelece a Constituição da República no artigo 208, inciso I, com a redação conferida pela Emenda Constitucional nº 59/2009.
A educação está definida no artigo 205 da Constituição da República como um direito de todos e dever do Estado e da família, será promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e a sua qualificação para o trabalho.
Portanto, a educação é um direito que exige uma política educacional com ações afirmativas de Estado que viabilizem o seu fim, ou seja, i) pleno desenvolvimento da pessoa, ii) preparo da pessoa para o exercício da cidadania e iii) qualificação para o trabalho.
A educação como direito social (artigo 6º da Constituição da República) que é, obriga ao Estado a garantir uma educação de qualidade a todos(as) os(as) brasileiros(as), independente de suas características pessoais, plenamente incentivada e em colaboração da sociedade.
Observe-se que a garantia da educação também é uma obrigação da família (artigo 205 da Constituição da República), o que está esclarecido no Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) (Lei nº 8.069/90).
O ECA, seguindo o comando constitucional, disciplina que a criança e o(a) adolescente têm direito à educação, visando ao pleno desenvolvimento de sua pessoa, o preparo para o exercício da cidadania e qualificação para o trabalho (artigo 53). Entre outros aspectos, determina que os pais ou responsável têm a obrigação de matricular seus filhos na escola e garantir a sua permanência nela (artigo 54 e 129, inciso V do ECA). O descumprimento dessa obrigação implica em conduta tipificada como crime, previsto no artigo 246 do Código Penal.
Percebe-se que a educação preconizada pelo ECA não permite a separação do(a) aluno(a) com deficiência do convívio com os demais alunos(as) sem deficiência, dos espaços e dos ambientes. O convívio potencializa a aprendizagem, o pleno desenvolvimento, o preparo para o exercício da cidadania e a qualificação para o trabalho. Essa é a lógica do sistema educacional inclusivo. É impossível acreditar que a pessoa com deficiência atingirá o seu pleno desenvolvimento, sendo impedida ou dispensada da convivência com outros alunos(as) sem deficiência, como pretende o Decreto nº 10.502/2020.
Portanto, segundo a Constituição da República e a CDPD, não há fundamento para a criação de escola/classe especial que o Decreto nº 10.502/2020 tenta justificar como não discriminatória e direciona para o direito de escolha dos pais por uma outra opção (ensino inclusivo ou escola especial).
Observe-se que o encaminhamento do(a) aluno(a) com deficiência, altas habilidades/superdotação e com transtornos globais de desenvolvimento – porque segundo ao artigo 2, inciso VI do Decreto nº 10.502/2020 não se beneficiam, em seu desenvolvimento, quando incluídos em escolas regulares inclusivas e que apresentam demanda por apoios múltiplos e contínuos – ao atendimento educacional prestado em escolas especiais, como substitutivo da escolarização comum, ou classes especiais em função da sua deficiência, também contraria o disposto no Artigo 24, item 2, alínea a da CDPD que determina:
[…] 2. Para a realização desse direito, os Estados Partes assegurarão que:
a) As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência.
Sobre a possibilidade de escolha dos pais por uma ou outra opção, Patrícia Pontes (2008) afirma:
Diante da normativa constitucional e legal, não cabe aos pais o direito de escolha no que se refere à matrícula de seus filhos com deficiência na rede regular de ensino, se constituindo em uma obrigação, não podendo os mesmos optar apenas pelo atendimento educacional especializado (ou educação especial).
O titular do direito que aqui se pretende resguardar é a criança e o adolescente e não os seus pais. Estes são apenas os representantes legais daqueles e, por consequência, têm a obrigação de efetivar a realização do mencionado direito. Sendo a educação um direito da criança e do adolescente, corresponde aos seus pais o dever de matriculá-los na rede regular de ensino.
A educação é direito que se impõe a todos, e a sua violação, por parte dos pais, pode acarretar sanções de natureza civil (destituição ou suspensão do poder familiar) e penal (crime de abandono intelectual).
Estamos a tratar de direito fundamental que, por sua própria natureza, possui como uma de suas características a irrenunciabilidade. Neste sentido, José Afonso da Silva (1995, p. 176/177) ensina que: No quantitativo fundamental, acha-se a indicação de que se trata de situações jurídicas sem as quais a pessoa humana não se realiza, não convive e, às vezes, nem mesmo sobrevive.; fundamentais do homem no sentido de que a todos, por igual, devem ser, não apenas formalmente reconhecidos, mas concreta e materialmente efetivados. Do homem, não como o macho da espécie, mas no sentido de pessoa humana.
Desta forma, a frequência do aluno com deficiência unicamente ao atendimento educacional especializado implica na violação do direito fundamental à educação, fato este de extrema gravidade. Impedir o seu exercício pleno implica em condenar alguém a viver à margem da sociedade, privando-o do crescimento pessoal que apenas o convívio social, com toda a diversidade que lhe é inerente, é capaz de oferecer.
Constata-se que os dispositivos constitucionais e legais remetem para a oferta de recursos de acessibilidade indicados para a escola e classes especiais pela escola inclusiva (escola para todos e todas). Se o Poder Público entende necessário reforçar os equipamentos de saúde (centros de reabilitação ou habilitação, terapia ocupacional, fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia e outros) e de assistência social (centro dia, ambientes de socialização e outros) para as pessoas com deficiência, assim deve proceder com os equipamentos adequados para os serviços a serem prestados e não como substitutivo da educação.
3. Conclusão
O Decreto nº 10.502/2020 reveste-se de flagrante inconstitucionalidade, retrocede em direitos sociais e humanos já implementados e descumpre obrigações internacionais assumidas pelo Brasil quando ratificou ou incorporou documentos internacionais, com destaque para a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, a Convenção Americana de Direitos Humanos, os Pactos Internacional dos Direitos Econômicos Sociais e Culturais e o Pacto Internacional dos Direitos Civis e Políticos, entre tantos outros.
O Decreto nº 10.502/2020, colide que com seguintes dispositivos constitucionais e legais:
– Artigo 1º, inciso III da Constituição da República, que estabelece como um dos fundamentos da República Federativa do Brasil a dignidade da pessoa humana;
– Artigo 3º, inciso IV da Constituição da República, que estabelece como um dos seus objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil o de promover o bem de todos, sem preconceito de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer formas de discriminação;
– Artigo 5º, caput, da da Constituição da República, que expressamente declara que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza ;
– Artigo 205 da Constituição da República, que estabelece ser a Educação um direito de todos, devendo ser promovida e incentivada com a colaboração da sociedade, visando ao pleno desenvolvimento da pessoa, seu preparo para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho;
– Artigo 208, inciso III da Constituição da República, que prevê a garantia do atendimento educacional especializado às pessoas com deficiência, preferencialmente na rede regular de ensino, inclusive como forma complementar ou suplementar de escolarização;
– Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (Decreto Legislativo nº 186/2008 e Decreto nº 6.949/2009), com status de norma constitucional, que, em seu preâmbulo, reconhece “que a discriminação contra qualquer pessoa, por motivo de deficiência, configura violação da dignidade e do valor inerentes ao ser humano” (alínea h) e “a necessidade de promover e proteger os direitos humanos de todas as pessoas com deficiência, inclusive daquelas que requerem maior apoio” (alínea k);
– Artigo 2 da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD), o qual estabelece que “Discriminação por motivo de deficiência” significa qualquer diferenciação, exclusão ou restrição baseada em deficiência, como o propósito ou efeito de impedir ou impossibilitar o reconhecimento, o desfrute ou o exercício, em igualdade de oportunidades com as demais pessoas, de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais nos âmbitos político, social, civil ou qualquer outro. Abrande todas as formas de discriminação, inclusive a recusa de adaptação razoável”.
– Artigo 3 da CDPD, que elege como princípios gerais: a) O respeito pela dignidade inerente, a autonomia individual, inclusive a liberdade de fazer as próprias escolhas, e a independência das pessoas; b) A não discriminação; c) A plena e efetiva participação e inclusão na sociedade; d) O respeito pela diferença e pela aceitação das pessoas com deficiência como parte da diversidade humana e da humanidade; e) A igualdade de oportunidades; f) A acessibilidade; g) A igualdade entre o homem e a mulher; h) O respeito pelo desenvolvimento das capacidades das crianças com deficiência e pelo direito das crianças com deficiência de preservar sua identidade;
– Artigo 5, item 2 da CDPD, que proíbe qualquer discriminação baseada na deficiência e garantirão às pessoas com deficiência igual e efetiva proteção legal contra a discriminação por qualquer motivo;
– Artigo 5, item 1 da CDPD, o qual reconhece que todas as pessoas são iguais perante a lei e que fazem jus, sem qualquer discriminação, a igual proteção e igual benefício da lei;
– Artigo 24, item 1 da CDPD que reconhece o direito das pessoas com deficiência à educação e que para efetivar esse direito sem discriminação e com base na igualdade de oportunidades, os Estados Partes assegurarão sistema educacional inclusivo em todos os níveis, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida;
– Artigo 24, item 2 da CDPD e Protocolo Facultativo, incorporados com natureza constitucional, que asseguram: a) As pessoas com deficiência não sejam excluídas do sistema educacional geral sob alegação de deficiência e que as crianças com deficiência não sejam excluídas do ensino primário gratuito e compulsório ou do ensino secundário, sob alegação de deficiência; b) As pessoas com deficiência possam ter acesso ao ensino primário inclusivo, de qualidade e gratuito, e ao ensino secundário, em igualdade de condições com as demais pessoas na comunidade em que vivem; c) Adaptações razoáveis de acordo com as necessidades individuais sejam providenciadas; d) As pessoas com deficiência recebam o apoio necessário, no âmbito do sistema educacional geral, com vistas a facilitar sua efetiva educação; e) Medidas de apoio individualizadas e efetivas sejam adotadas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social, de acordo com a meta de inclusão plena;
– Artigo 4, item 1 e alíneas da CDPD, cujas obrigações gerais comprometem-nos a assegurar e promover o pleno exercício de todos os direitos humanos e liberdades fundamentais por todas as pessoas com deficiência, sem qualquer tipo de discriminação por causa de sua deficiência: Adotar todas as medidas legislativas, administrativas e de qualquer outra natureza, necessárias para a realização dos direitos reconhecidos na presente Convenção (Artigo 4, item 1, a); Adotar todas as medidas necessárias, inclusive legislativas, para modificar ou revogar leis, regulamentos, costumes e práticas vigentes, que constituírem discriminação contra pessoas com deficiência (Artigo 4, item 1, b); Levar em conta, em todos os programas e políticas, a proteção e a promoção dos direitos humanos das pessoas com deficiência(Artigo 4, item 1, b); Abster-se de participar em qualquer ato ou prática incompatível com a presente Convenção e assegurar que as autoridades públicas e instituições atuem em conformidade com a presente convenção (Artigo 4, item 1, d);
– Artigo 4, item 3 e alíneas da CDPD: Tomar todas as medidas apropriadas para eliminar a discriminação baseada em deficiência, por parte de qualquer pessoa, organização ou empresa privada (Artigo 4, item 1, e), além de na elaboração e implementação de legislação e políticas para aplicar a presente Convenção e em outros processos de tomada de decisão relativos às pessoas com deficiência, os Estados Partes realizarão consultas estreitas e envolverão ativamente pessoas com deficiência, inclusive crianças com deficiência, por intermédio de suas organizações representativas;
– Artigo 27 da Lei nº 13.146, de 06 de julho de 2015, que instituiu a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI): a educação constitui direito da pessoa com deficiência, assegurados sistema educacional inclusivo em todos os níveis e aprendizado ao longo de toda a vida, de forma a alcançar o máximo desenvolvimento possível de seus talentos e habilidades físicas, sensoriais, intelectuais e sociais, segundo suas características, interesses e necessidades de aprendizagem, complementando, em seu parágrafo único, que É dever do Estado, da família, da comunidade escolar e da sociedade assegurar educação de qualidade à pessoa com deficiência, colocando-a a salvo de toda forma de violê ncia, negligência e discriminação;
– Artigo 28 da LBI que incumbe ao poder público assegurar, criar, desenvolver, implementar, incentivar, acompanhar e avaliar: I – sistema educacional inclusivo em todos os níveis e modalidades, bem como o aprendizado ao longo de toda a vida; II – aprimoramento dos sistemas educacionais, visando a garantir condições de acesso, permanência, participação e aprendizagem, por meio da oferta de serviços e de recursos de acessibilidade que eliminem as barreiras e promovam a inclusão plena; (…) V – adoção de medidas individualizadas e coletivas em ambientes que maximizem o desenvolvimento acadêmico e social dos estudantes com deficiência, favorecendo o acesso, a permanência, a participação e a aprendizagem em instituições de ensino; (…) VII – planejamento de estudo de caso, de elaboração de plano de atendimento educacional especializado, de organização de recursos e serviços de acessibilidade e de disponibilização e usabilidade pedagógica de recursos de tecnologia assistiva; VIII – participação dos estudantes com deficiência e de suas famílias nas diversas instâncias de atuação da comunidade escolar; IX – adoção de medidas de apoio que favoreçam o desenvolvimento dos aspectos linguísticos, culturais, vocacionais e profissionais, levando-se em conta o talento, a criatividade, as habilidades e os interesses do estudante com deficiência; X – adoção de práticas pedagógicas inclusivas pelos programas de formação inicial e continuada de professores e oferta de formação continuada para o atendimento educacional especializado; (…) XIII – acesso à educação superior e à educação profissional e tecnológica em igualdade de oportunidades e condições com as demais pessoas[…].
O Decreto nº 10.502/2020 agride o nosso direito pátrio na esfera constitucional, alterando dispositivos de direitos humanos há muito consolidados no Brasil; nega o reconhecimento do direito da pessoa com deficiência a viver em comunidade, dela participar e desfrutar dessa convivência; impede o desenvolvimento de uma sociedade mais livre, justa e solidária, o que só é possível com a escola inclusiva, onde alunos e alunas com e sem deficiência convivem em um mesmo ambiente, com a oferta das ferramentas de apoio devidas, e se beneficiam dessa convivência e da diversidade humana, conferindo a todos a indispensável dignidade, inerente à condição humana; retrocede em direitos da pessoa com deficiência a uma escola inclusiva, direito fundamental há muito conquistado.
O Decreto nº 10.502/2020 deve, portanto, ser excluído do ordenamento jurídico brasileiro.
Brasília, 26 de outubro de 2020.
MARIA APARECIDA GUGEL – Presidenta
GABRIELE GADELHA BARBOZA DE ALMEIDA, Vice-Presidenta AMPID
REBECCA MONTE NUNES BEZERRA – CONSELHO TÉCNICO CIENTÍFICO
Referências Bibliográficas
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GUGEL, Maria Aparecida. Diálogos aprofundados sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência, Belo Horizonte: Editora RTM, 2019.
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Princípios de Paris, Resolução 1992154, de 3 março de 1992, da Comissão de Direitos Humanos da ONU, http://www.dhnet.org.br/direitos/brasil/textos/principioparis.htm , acesso em 25/11/2020.
UNESCO, EDUCAÇÃO UM TESOURO A DESCOBRIR http://dhnet.org.br/dados/relatorios/a_pdf/r_unesco_educ_tesouro_descobrir.pdf acesso 25/11/2020.
Para acessar o documento em PDF, clique aqui NotaTecnica_EducaçaoInclusiva_Ampid_2020_Final