Antologia da ignorância institucional
Antologia da ignorância institucional brasileira: os cabeças de planilha
Por Luis Nassif 17/01/2021
Um dos grandes problemas estruturais do país é a ignorância institucionalizada. Não me refiro a índices de analfabetismo, de acesso à escola, de consumo de livros, mas ao país institucional, o mainstream, aquele que define o futuro das políticas públicas, das ações de governo, submetido a uma ignorância profunda que atinge presidentes, partidos políticos, Ministros, os poderes de Estado, a mídia. É uma ignorância sólida, impenetrável, fechada a qualquer contraponto, como se o exercício da dúvida fosse sinal de fraqueza, ou jogada maliciosa de adversários – pela incapacidade crônica de avaliar ideias e posições. E colocar mais que dois ângulos em um mesmo tema era jogada capciosa para atrapalhar o entendimento e impedir a eficácia do discurso.
Essa é a base do discurso midiático, da simplificação, na busca de audiência. No Brasil, o problema é que essa superficialidade mancheteira entrou por todos os poros do mainstream. Não se consegue prever nem o futuro próximo. O que dirá então os desdobramentos históricos de medidas de agora? Não se trata apenas de erros de avaliação de comentaristas, mas de pessoas com poder de decisão. Mais que isso, os grandes desastres são produzidos individualmente, sem que haja instâncias de reavaliação, conselhos políticos de partidos, fóruns de mediação, menos ainda mídia, Think thanks, declarações públicas visíveis imponham qualquer resistência.
Piorou, mas não é de agora. Lembro-me dos anos 90, uma conversa com o grande jornalista Fernando Pacheco Jordão, recém-chegado de uma longa temporada europeia. Ele se dizia perplexo com a superficialidade da mídia brasileira, com as notícias de um ângulo só, com a incapacidade de refletir a complexidade de uma sociedade moderna, de entender as interações entre econômico, social e político, de abordar os temas relevantes.
Essa amplificação do discurso público, a transformação das análises midiáticas em emanações do senso comum, a busca do impacto imediato que contentasse o público estão na raiz do bolsonarismo. Intelectuais sem nenhuma projeção entre seus pares se tornaram “especialistas” na mídia, pelo mero exercício do palpite, do senso comum repetido à exaustão, com as ideias sendo tratadas como “in” e “out”, como nas velhas colunas sociais. Para queimar uma ideia, bastava colocá-la na lista do “out”. Vem dai a inominável tática da invisibilização, o mais antidemocrático dos recursos da mídia, dada sua condição de quase monopólio do discurso público.A partir da cobertura superficial da mídia, gerou-se uma nova intelectualidade de papel, superficial como como as manchetes do período mas que, pela visibilidade, se tornaram referências do mainstream e passaram a ocupar altos cargos públicos.
O dia em que conheci o pensamento de Eliezer Baptista foi como um luz na escuridão, o pensamento sistêmico, a maneira como pensou em todos os ângulos para tornar a Vale do Rio Doce um projeto mundial; a forma como imaginou os territórios de desenvolvimento, na fronteira do Brasil com diversos países da América Latina, os projetos integrados, pensando na logística, na diplomacia comercial.
Mais tarde, mergulhando no Rio de Janeiro dos anos 50, foi possível enxergar o país que já fomos, a profundidade das reformas de base de Jango, as mudanças institucionais de Campos e Bulhões, a visão sistêmica de Celso Furtado, Josué de Castro, a observação da realidade de Paulo Freire.
Muito da ignorância institucional brasileira atual se deve a interesses menores. Muito se deve à ignorância líquida mesmo.
Ao longo de minha carreira, me deparei com grandes desastres, a maior parte deles de economistas alçados à condição de Ministros, com conhecimento da economia restrito às mesas de operação do mercado, sem informação ou sensibilidade para analisar os impactos das medidas na economia, na política e, por consequência, na continuidade do governo.
Uma pequena coletânea de como economistas Ministros destruíram os respectivos governos a quem serviram (por culpa, obviamente, de quem os colocou lá):
As privatizações de Collor
Ficaram a cargo de Eduardo Modiano, indicado presidente do BNDES. Havia holdings do setor público controlando as siderúrgicas e um sistema tripartite na petroquímica, ambos entorpecidos pela grande crise do Estado dos anos 80. Ponto central da modelagem consistia em estudar o setor no mundo para definir o melhor modelo de privatização que legasse um setor competitivo globalmente, se mantendo a concentração – pulverizando o controle -, ou se na venda individual de cada empresa. Ora, tudo indicava que havia a necessidade de preservar a escala para ganhar competitividade mundial.
Escrevi sobre o tema e fui convidado a uma conversa complicada com Modiano, incapaz de analisar quadros globais. No BNDES, o único técnico com visão era Venilton Tedini. Mas quebrou-se o setor em vários pedaços que foram privatizados, e levou mais de uma década para que houvesse a recentralização, depois de disputas societárias sangrentas.
Mesmo assim, no governo seguinte, de FHC, Pérsio Arida ainda insistia que o relevante era dividir setores em pedaços, para conseguir melhores preços. E estava falando de setores estratégicos para o desenvolvimento brasileiro. Não se discutia competitividade, integração com cadeias globais de valores, ganhos de escala. Apenas a rentabilização das vendas, ao mesmo tempo em que o dinheiro público escorria pelo ralo das contas públicas, devido à política monetária e cambial do período.
O Plano Real
O Plano Real foi uma possibilidade concreta de colocar o Brasil no mesmo rumo da China e da Índia. O fim das inflação integrou no mercado uma multidão de novos consumidores. No mundo, graças à telemática e ao avanço da logística, havia uma reorganização das grandes multinacionais. E o Brasil era destino certo como ponte para a América do Sul. O grande trunfo dos chamados países-baleia era o novo mercado de consumo criado pelo fim da inflação.
No segundo semestre de 1994, a estabilização de preços provocou um boom econômico, com aumento das receitas fiscais. A política cambial adotada, com apreciação radical do real, no entanto, deixou uma crise contratada, uma crise generalizada no campo e nas cidades. No final do ano já era nítido que vinha crise pela frente. O que fizeram os economistas do Real?
Problema – amenizar a apreciação do câmbio e flexibilizar o crédito, para permitir às empresas e famílias renegociar dívidas e se preparar para enfrentar tempos bicudos.
Estratégia – explosão das taxas de juros para impedir corrida contra o Real, depois da crise do México. Economistas menos dogmáticos simplesmente criariam restrições ao livre fluxo cambial ou imporiam IOFs mais elevados. Por aqui, jogaram-se os juros nas alturas, o tal “saco de maldades”.
Resultado esperado – as taxas de juros estratosféricas impediriam a saída de dólares e a economia retomaria a normalidade.
Resultado real – quebradeira generalizada na cidade e no campo, matando todas as possibilidades de retomada do crescimento da economia com a estabilização monetária. Criação da maior dívida pública inútil da história. Contagem regressiva para uma nova crise cambial que explodiu quatro anos depois, matando qualquer veleidade do PSDB permanecer 20 anos no poder. E o exército de novos consumidores voltando ao submundo do consumo, enquanto China e India decolavam.
Como conto no livro “Os cabeças de planilha”, o motivo da não atuação dos economistas era a grande aposta que fizeram no mercado futuro de câmbio.
Henrique Meirelles e a crise de 2008
Estoura a crise de 2008. A carência de dólares ameaça sufocar diversos setores da economia. A Abimaq (Associação Brasileira da Indústria de Máquinas e Equipamentos) registrava queda de 70% nos novos pedidos. A economia afundava. Em fins de 2008, com a crise explodindo por todos os poros da economia, o presidente do Banco Central Henrique Meirelles aumentou os juros, devido ao fato de se ter uma “economista robusta”.
A intuição de Lula salvou-o. Cercou-se de. Dirigentes dos bancos públicos e passou a tomar o pulso da economia através dos termômetros que mediam o mundo real e passou a atuar diretamente sobre os problemas que apareciam.
Esse pragmatismo salvou seu governo e ainda garantiu mais duas eleições para o PT..
O Plano Levy
Não se minimize o papel dos conspiradores, da Rede Globo e jornais, do Supremo Tribunal Federal, da malta de baderneiros que votaram pelo impeachment “em nome da minha família”, “em nome do meu filho”, “em nome da minha secretária”. Mas o impeachment se tornou realidade quando foi anunciado o Plano Levy, de Joaquim Levy, indicado Ministro da Fazenda de Dilma Rousseff.
O boom dos anos anteriores estimulou milhares de empreendedores a montar seus negócios, arriscar-se em novas frentes. Assim como no início do Plano Real, ainda em 2014 a economia começou a ceder, devido à queda das cotações internacionais de commodities. Assim como no Plano Real, a estratégia correta seria permitir uma saída ordenada para num novo patamar econômico. Em vez disso, o pacote Levy condenou dezenas de milhares deles à morte súbita. Promoveu choque cambial e tarifário, explodiu os juros e trancou o crédito. Mais: destruiu politicamente o governo Dilma, que deixou de lado todas as promessas de campanha.
Problema – Economia saindo de um período de aquecimento para o desaquecimento.
Estratégia – choque cambial e tarifário para equilibra as contas públicas. Explosão os juros e trancamento do crédito para impedir o repasse dos custos para os preços.
Resultado esperado – Se a questão fiscal fosse resolvida (pelos cortes), haveria uma queda na curva de juros futura. E, ao primeiro sinal de queda, os investimentos brotariam.
Resultado real – explodiu os custos das empresas pelo choque tarifário, e fechou-se a saída de emergência pela elevação das taxas de juros e trancamento do crédito. Empresas, especialmente pequenas e médias, passaram a morrer como os doentes de Manaus sem acesso a oxigênio. Outra consequência foi o efeito engarrafamento: as empresas que mais cresciam no período anterior foram as primeiras a bater no mudo; atrás delas vieram seus fornecedores.
No plano político, houve a inviabilização total do governo, irreversivelmente enfraquecido, para poder fazer frente à onda do impeachment. Ainda hoje, parte relevante do ódio ao PT deriva desse plano.
O plano Guedes e a Lei do Teto
O mesmo vai se repetir agora. A extrema superficialidade da discussão pública midiática criou um mantra em torno da Lei do Teto. Há um problema óbvio no ar: uma economia exangue, uma pandemia crescente, um desemprego recorde, a possibilidade real da fome se espalhar pelas famílias, induzindo a saques e outras explosões sociais. E os idiotas da objetividade insistindo que há que se preservar a Lei do Teto, pois assim os investimentos retornarão.
Até Raul Velloso, que se notabilizou por três décadas de preocupação exclusiva com contas públicas, se espantou com a ignorância sólida de Guedes, sua equipe e dos crentes da Lei do Teto. Como pode, em um quadro de recessão, teimar em efetuar cortes nos gastos públicos?
Guedes será o Joaquim Levy de Bolsonaro. Em comum, eles têm a ignorância sólida dos economistas de mercado.
A maneira como conduziu a economia é um clássico da visão terraplanista. Apesar de sentado em reservas cambiais volumosas, herdadas dos governos petistas, permitiu a explosão do câmbio. Houve aumento nas cotações internacionais de commodities. A soma da desvalorização cambial e das cotações internacionais aumentou os preços de commodities – insumos e alimentos – em reais, produzindo pressões de custo. A Lei do Teto, e a ignorância da equipe de Guedes, fez o governo abrir mão do financiamento de estoques reguladores.
Os preços de insumos explodiram, pressionando as classes populares. Mas ainda havia a renda emergencial para convalidar o consumo – e criada graças ao Congresso, não a Guedes.
Agora, corta-se a renda básica. Na ponta das famílias, haverá fome e ranger de dentes. Na ponta das empresas, impossibilidade de repassar os custos. E não haverá redução de preços porque os produtores de insumos têm o mercado externo escancarado para desovar seus produtos. Simples assim.
Problema – economia em estagflação, tragédia social, distúrbios sociais à vista.
Estratégia – manter a Lei do Teto a ferro e fogo, para garantir a credibilidade da política fiscal.
Resultado esperado – com a garantia da intocabilidade da Lei do Teto esperar – assim como Levy – que o investimento privado brote de novo, mesmo sem mercado interno para consumir.
Resultado real – multinacionais abandonando o país, por falta de confiança na recuperação do mercado. Medidas fiscais prejudicando o combate à pandemia. Ampliação da fome, desemprego, distúrbios sociais e queda no apoio a Bolsonaro, podendo abrir espaço para um novo processo de impeachment.
Antes do desastre, cada menção a Paulo Guedes na mídia vinha acompanhada da menção à “brilhante equipe econômica”.
O impeachment e o novo iluminismo
Nem se pense que a alta incidência de ignorância líquida seja prerrogativa dos economistas do mercado. Todo o liberalismo de araque desses tempos modernos, que nada tem a ver com o liberalismo consistente de Roberto Campos (Ministro) e Octávio Gouvea Bulhões, se fundou nessas crendices de manual de economia, no abandono total da análise das circunstâncias, da identificação dos problemas reais da economia.
O mesmo ocorreu com os profetas do Novo Iluminismo. Mas isto será tema para um próximo artigo.