Apesar da extrema riqueza
Pobreza diminui, apesar da extrema riqueza
O 1% mais rico tem rendimento médio mensal per capita mais de 31 vezes maior do que os 50% mais pobres, mostrando que a desigualdade de renda no Brasil segue em patamar elevado
Por César Fraga / Publicado em 6 de setembro de 2024
De acordo com o primeiro relatório do Observatório Brasileiro das Desigualdades, a população brasileira em extrema pobreza em 2023 diminuiu 40%, em comparação ao ano anterior (e a maior redução foi entre as mulheres negras). Também houve uma queda no desemprego de 20% se comparado com 2022. Como aspectos negativos, as mulheres têm remuneração 27% menor do que a dos homens no Brasil. No que tange ao acesso à alimentação digna, a insegurança alimentar moderada e grave ainda atinge, pelo menos, 12,5% dessas brasileiras.
Entenda-se insegurança alimentar moderada como aquela em que as pessoas têm dificuldade para conseguir alimentos. A grave refere-se à fome. Ainda na escala da insegurança alimentar, 12,3% das pessoas atingidas são homens negros. Entre não negros, essa porcentagem é de 5,8% mulheres, e 5,5% homens.
O Observatório aponta também que o 1% mais rico tem rendimento médio mensal per capita mais de 31 vezes maior do que os 50% mais pobres, mostrando que a desigualdade de renda no Brasil segue em patamar elevado. E nem estamos falando de super-ricos (que representam 0,01%, pois aí as diferenças pulam da casa dos milhares para a dos milhões ou até bilhões).
Conforme as informações da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD Contínua), divulgada pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) no trimestre deste ano corrobora a pesquisa do Observatório com leve diferenciação e recorte. Conforme o dado mais recente, o grupo dos 1% mais ricos do Brasil tem um rendimento médio mensal 39,2 vezes maior que os 40% com os menores rendimentos.
O rendimento médio mensal real domiciliar per capita — ou seja, a renda média de um domicílio dividida pelas pessoas que lá habitam — do 1% mais rico foi de R$ 20.664 em 2023, um aumento de 13,2% em relação ao valor observado em 2022 (R$ 18.257).
Já o rendimento médio mensal dos 40% mais pobres foi de, em média, R$ 527 no ano passado. O valor representa uma alta de 12,6% em relação ao número registrado em 2022 (R$ 468).
Acesse o relatório completo em PDF.
Crianças indígenas
Entre os dados que pioraram, o relatório destaca o aumento da proporção de crianças indígenas sofrendo com desnutrição: 16,1% entre meninos indígenas e 11,1% entre meninas indígenas. Ocorreu, também, um aumento na proporção de mortes por causas evitáveis. O número aumentou 22%.
“A maior parte dos indicadores foi baseada em dados públicos – e, sempre que possível, oficiais. A ideia não era a de produzir novas informações, e sim a de reunir num só instrumento indicadores habitualmente divulgados de forma esparsa. O objetivo é produzir um diagnóstico que possa ser utilizado como linha de base e atualizado anualmente, para que sociedade e governo possam monitorar avanços e retrocessos e, assim, aperfeiçoar políticas públicas”, diz o relatório.
Concentração de riqueza
De acordo com o estudo, a distância entre ricos e pobres é gigantesca, mesmo levando em conta que os índices oficiais não capturam toda a magnitude da riqueza dos nossos mais ricos.
Os 0,01% mais ricos do Brasil possuem uma riqueza acumulada, e líquida de dívidas, de R$ 151 milhões em média. Os 10% mais ricos obtinham, em 2022, um rendimento médio mensal per capita 14,4 vezes maior do que os 40% mais pobres. Ao mesmo tempo, cerca de 7,6 milhões de brasileiros vivem com uma renda domiciliar per capita mensal menor do que R$ 150.
Justamente os que menos ganham, porém, são os que pagam mais impostos, em função da tributação indireta: os 10% mais pobres pagam 26,4% da sua renda em tributos, enquanto os 10% mais ricos apenas 19,2%. (Leia tópico sobre desigualdade tributária no final desta matéria)
Rendimento médio mensal real domiciliar per capita dos 10% mais ricos
e dos 40% mais pobres, segundo Unidades da Federação em 2022 (em R$):
Mulheres e negros são os mais desfavorecidos
De acordo com a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua, em 2022, o rendimento médio real de todas as fontes da população brasileira era, a preços médios daquele ano, de R$ 2.607. A média nacional, porém, oblitera importantes e persistentes desigualdades perceptíveis na desagregação regional, por gênero e raça/cor e, principalmente, na combinação entre os atributos. Os dados apontam uma desvantagem de rendimentos de acordo com o sexo: as mulheres ganham, em média, apenas 72% dos que os homens ganham. Essa proporção é ainda menor em algumas regiões metropolitanas, tais como Aracaju (SE), onde as mulheres ganham apenas 64,2% do rendimento dos homens; Vitória (ES), 65,1%; Teresina (PI), 65,6%; e Natal (RN), 66,1%.
As desigualdades raciais também se fazem presentes de forma persistente e estrutural. Em média, os brasileiros negros (pretos e pardos) ganham apenas 69,2% dos não negros (brancos e amarelos). A diferença é ainda maior em contextos como as regiões metropolitanas de Salvador, onde o rendimento dos negros é, em média, de apenas 42,7% daquele dos não negros; de São Paulo (52,9%) e do Rio de Janeiro (54,5%). Os efeitos são ainda maiores quando combinados os atributos de sexo e cor ou raça. Isso fica evidente quando notamos que, no Brasil de 2022, as mulheres negras ganham em média apenas 42,3% do rendimento do homem não negro.
Em três das quatro regiões metropolitanas do Sudeste essa situação é ainda mais grave: na região metropolitana na Grande Vitória (ES), as mulheres negras ganham, em média, um terço (33,9%) do que ganham os homens; na de São Paulo, 38,8 %; e, na de Belo Horizonte, 41,9%. Trata-se de um panorama persistente, em que pese o aumento na escolaridade da mulher negra (IBRE, 2023). A desigualdade racial no mercado de trabalho é demonstrada, ainda, pelas taxas de desocupação: enquanto no país a taxa média é de 9,6%, entre os homens não negros é de apenas 6,3%, e, entre mulheres negras, sobe para 14%.
Combate à desigualdade
Sobre os dados apresentados, Oded Grajew, membro do Pacto Nacional pelo Combate às Desigualdades, uma das organizações da sociedade civil, que integram o Observatório, o documento evidencia, com nitidez, que os grupos mais desfavorecidos e vulneráveis são de mulheres e pessoas negras, os quais, segundo ele, mereciam maior atenção.
Grajew, que também é fundador e conselheiro emérito do Instituto Ethos, defende que combater a desigualdade é mudar as prioridades e investir onde é mais necessário. Ele admite que, embora a situação tenha melhorado para os grupos mais vulneráveis, a parcela mais rica da população, que está no topo da pirâmide, também obteve avanços, o que manteve a desigualdade.
“E nós criamos o Pacto Nacional de Combate à Desigualdade porque a desigualdade é que constrói uma sociedade de castas, e de conflitos, de confrontos, de violência. A sensação de injustiça é um veneno para a sociedade. Faz com que as pessoas desacreditem na democracia.”
Entre os dados positivos, o relatório destaca que a proporção de mulheres negras de 18 a 24 anos que cursam o ensino superior ficou em 19,2% em 2023, acima dos 12,3% do ano anterior.
E, ainda, que diminuiu a percepção de mais gente nas ruas em situação de vulnerabilidade. O que, na opinião de Grajew, corrobora com a melhoria dos indicadores apurados no relatório.
Repercussão no governo
Para o ministro Wellington Dias, do Desenvolvimento e Assistência Social, Família e Combate à Fome, o aumento real do rendimento médio dos trabalhadores, a queda na taxa de desemprego e a retomada de políticas sociais comprovadamente eficientes são alguns fatores que levaram o Brasil a reduzir em 40% a taxa de extrema pobreza entre 2022 e 2023, pois foi observada queda em todas as regiões, sendo os maiores percentuais no Norte e Nordeste, e no recorte de gênero e raça, com destaque entre as mulheres negras. “Isso mostra que estamos no caminho certo. Cada vez mais tirar da fome, da extrema pobreza e da pobreza, fazer crescer e melhorar de vida”, avalia.
Os dados do relatório como os que que apontam queda de 20% no desemprego, considerando ganho real no rendimento médio de todas as fontes foi de 8,3%, sendo maior entre as mulheres do que entre os homens: 9,6% contra 7,7%, foram comemorados no Ministério.
“Foi divulgado mais um estudo que aponta queda significativa da extrema pobreza no Brasil, desta vez, pelo Observatório Brasileiro das Desigualdades. O mais importante: queda da extrema pobreza em todas as regiões do país e entre as mulheres negras, que são a maioria na extrema pobreza, com redução de 45,2%. Isso mostra que estamos no caminho certo. Cada vez mais tirar da fome, da extrema pobreza e da pobreza, fazer crescer e melhorar de vida”, apontou o ministro.
A região com o maior percentual de redução da extrema pobreza foi o Norte, com 45,1%, que também teve a maior queda na taxa de desocupação: 21,7%, além do maior crescimento total médio de renda da população, com 11,34%.
O Observatório tem como objetivo monitorar o comportamento dos indicadores de referência sobre as desigualdades no Brasil e fornecer insumos para a sociedade civil e para governos, parlamentares e gestores públicos aperfeiçoarem políticas públicas de promoção da equidade. Ele é resultado do Pacto Nacional pelo Combate às Desigualdades.
Mais que transferência de renda
Entre as políticas públicas, o Programa Bolsa Família (PBF) é apontado por diversos estudos como eficaz no combate à pobreza. Quando foi implementada a nova cesta de benefícios do PBF, na retomada do Programa em 2023, o economista Daniel Duque, do Ibre/FGV, projetou a redução da extrema pobreza ainda no ano passado.
Entre a cesta de benefícios, cada criança de zero a seis anos recebe um adicional de R$ 150, enquanto gestantes, nutrizes e crianças e adolescentes entre sete e 18 anos incompletos têm direito a R$ 50. Para ter direito ao Bolsa Família, a principal regra é que a renda de cada pessoa da família seja de, no máximo, R$ 218 por mês.
Vale destacar que entre as mais de 20,7 milhões de famílias beneficiadas em agosto pelo Bolsa Família, 17,33 são chefiadas por mulheres (83,5%). Das mais de 54,53 milhões de pessoas, 31,73 milhões são do sexo feminino (58,2%) e 39,74 milhões são de cor preta/parda (73%).
A Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) Contínua, coordenado pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), já apontou em abril a redução da taxa de pobreza no Brasil em 27,5% de 2022 para 2023. Em números absolutos, mais de 8,5 milhões de indivíduos saíram da pobreza no ano passado. O recuo ocorreu em 26 das 27 Unidades da Federação.
Outro levantamento que aponta a melhoria nas condições de vida das pessoas em situação de vulnerabilidade no país foi o Relatório das Nações Unidas sobre o Estado da Insegurança Alimentar Mundial (SOFI 2024), divulgado em julho. O documento revelou queda de 85% da insegurança alimentar severa no Brasil em 2023.
Desigualdade tributária
A desigualdade tributária no Brasil é um tema complexo e relevante que merece análise detalhada. O sistema tributário do país é reconhecido pela falta de progressividade e distribuição desigual da responsabilidade fiscal. Isso resulta em um cenário no qual diferentes grupos sociais contribuem de maneira desproporcional para a arrecadação de impostos, ampliando ainda mais as disparidades econômicas já existentes.
Incidência da tributação direta e indireta na renda total, segundo décimos de renda familiar per capita:
A incidência elevada de impostos indiretos, como o Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Serviços (ICMS) e o Imposto sobre Produtos Industrializados (IPI) e a disfuncionalidade de impostos diretos, tais como o IRPF (Imposto de Renda sobre a Pessoa Física) progressivo, teoricamente, são elementos centrais da desigualdade tributária. De fato, segundo Dieese (2023), pontos nevrálgicos da desigualdade criada pelo sistema tributário brasileiro advêm também do excesso de isenções fiscais – especialmente para as classes mais ricas, do quase
inexistente recolhimento de impostos sobre ganhos de capital, da ínfima arrecadação sobre grandes propriedades rurais, da ausência de regulamento jurídico para taxação de grandes fortunas, da sofisticada “engenharia fiscal” por parte das empresas e da grande sonegação de tributos via falta de instrumentos eficazes de cobrança.
A partir de dados da POF-IBGE (Pesquisa de Orçamentos Familiares) de 2017-2018, verifica- se a grande distorção proporcionada pela estrutura tributária brasileira . Dividindo a massa de renda familiar em decis, e atentando-se aos extremos, tem-se que os 10% mais pobres sofriam uma incidência de 23,4% de impostos indiretos e 3,0% de impostos diretos, ao passo que os 10% mais ricos tinham uma incidência de apenas 8,6% de imposto indireto e 10,6% de imposto direto. Entre os extremos, a tendência acachapante de pesada tributação sobre os pobres e a classe média, com uma média de 8,0% de tributos diretos e 11,2% de indiretos.
Em levantamento semelhante realizado pelo Sindifisco, considerou-se a aplicação média do IRPF segundo faixas de salários-mínimos de 2022 (R$ 1.212). Segundo o estudo, o ápice da tributação chega a 11,25% sobre uma renda de aproximadamente R$ 18 mil. A partir desse valor, a curva do IRPF se inflexiona para baixo, alcançando apenas 5,48% sobre uma renda aproximada R$ 193 mil. Esse último percentual é estatisticamente igual àquele dos que auferem renda de R$ 8,4 mil (ou seja, 5,98%). Nos dois recortes mais altos de renda, a curva do imposto médio se estabiliza, sendo de apenas 5,43% sobre uma renda média estimada de mais de R$ 387 mil.
FONTE: