Após derrotas de Escola Sem Partido
Após derrotas de Escola Sem Partido, grupos miram gênero e críticas ao agro na sala de aula
Projetos contra abordagem de sexualidade são aprovados em municípios; mulheres do agro se reúnem com MEC e editoras
A disputa pelo que se ensina em sala de aula mudou, mas não acabou após as derrotas em série do movimento Escola Sem Partido.
Plataforma eleitoral do presidente Jair Bolsonaro (PL), as iniciativas para mudar currículo e material escolar foram repaginadas e ganharam um caráter setorial. De um lado, miram questões de gênero e sexualidade; de outro, uma suposta difamação do agronegócio nas escolas.
Na campanha de 2018, as questões de gênero já eram um dos flancos da atuação do Escola Sem Partido, mas não o único.
O movimento, criado em 2004, inicialmente combatia o que dizia ser uma doutrinação de esquerda nas escolas brasileiras. Com o tempo, incorporou a luta contra a abordagem de conteúdos ligados à sexualidade.
Depois da eleição de Bolsonaro, em 2018, uma série de decisões do STF (Supremo Tribunal) impôs derrotas ao movimento, ao consolidar o entendimento de que vetar o tema identidade de gênero na educação seria inconstitucional.
Dizendo-se abandonado pelo presidente, o fundador do Escola Sem Partido declarou o movimento extinto.
A pauta, no entanto, seguiu viva.
"Apenas o ‘movimento’ (na verdade o dono da página Escola Sem Partido) perdeu [força] porque ele e seu ‘movimento’ acabaram se tornando descartáveis, uma vez que inúmeros políticos ou influencers de direita com aspirações políticas se apropriaram da pauta", afirma Fernanda Moura, pesquisadora e integrante do coletivo Professores Contra o Escola Sem Partido.
"Não vemos mais projetos com nome Escola Sem Partido sendo apresentados, mas projetos de censura a temáticas relativas a gênero e sexualidade na escola continuam sendo apresentados e aprovados", afirma. "E o movimento de censura vem procurando novos alvos. Agora investem principalmente contra a população trans."
A pesquisadora se refere a projetos aprovados em dezenas de cidades brasileiras tanto contra o uso da chamada "linguagem neutra", como contra banheiros unissex ou mesmo a abordagem pura e simples de questões de gênero.
Entre as cidades que aprovaram em suas câmaras municipais legislação contra a linguagem neutra nos últimos meses estão Londrina (PR), Uberaba (MG), Juiz de Fora (MG) e Porto Alegre. O governo de Mato Grosso do Sul tomou a mesma iniciativa.
Em outras localidades, a atuação mira um leque muito mais abrangente de conteúdos.
É o caso de Sinop (MT). Na cidade onde Bolsonaro obteve mais de 70% dos votos no primeiro turno, lei sancionada em março deste ano proíbe a divulgação em locais públicos de informações sobre "orientação ou opção sexual", direitos sexuais e reprodutivos, "sexualidade polimórfica" e "desconstrução da família e do casamento tradicional".
É também no Centro-Oeste que ganha força outra disputa pelo que as crianças devem aprender na escola.
Trata-se dos movimentos de mulheres, ou "mães do agronegócio", que pleiteiam a reformulação de materiais que trazem uma visão negativa sobre o setor, com temas como desmatamento, trabalho escravo e mudanças climáticas.
Em outubro do ano passado, as representantes do grupo De Olho no Material Escolar se reuniram em Brasília com os então ministros Milton Ribeiro (Educação) e Tereza Cristina (Agricultura), no que chamaram de "um dia histórico" para a causa. Em maio, voltaram a Brasília para encontro com Bolsonaro.
"A ideia não é romantizar o setor –o agro tem grandes desafios, sim– nem mudar ou negar a história. Queremos que fique clara aos alunos a realidade atual do agronegócio, com base em dados científicos, pois o setor evoluiu, mas isso não está retratado nos livros", afirmou por meio da assessoria de comunicação a presidente da entidade, Leticia Jacintho..
"Com objetividade, transparência e de forma colaborativa, estabelecemos um diálogo positivo com as editoras responsáveis pela produção de 96% dos livros didáticos do país. Entre os resultados, nossa associação já sensibilizou pais, educadores e autores, além de grandes editoras, que iniciaram o processo de atualização do conteúdo", afirma o movimento, que se diz apartidário.
Entre os grupos educacionais que mantêm diálogo com o movimento está o Somos Educação, responsável por sistemas de ensino como Anglo, Ph e Mackenzie.
Em vídeo postado em maio, Mario Ghio, diretor presidente da Somos, elogiou a iniciativa do De olho no material escolar. "De fato, na sala de aula o mundo agro tem sido retratado ainda com uma imagem muito mais do século 20 do que do século 21. Nosso esforço é trazer a percepção do mundo agro para o século 21", afirma.
Em nota à Folha, a Somos Educação afirmou que todo o material didático é atualizado anualmente, seguindo as orientações curriculares do Ministério da Educação. "A Somos se pauta pela pluralidade de ideias e busca manter seus materiais em constante atualização."
Para Clarianna Silva, professora da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), os movimentos do agro por mudança do material didático refletem uma capilarização do bolsonarismo.
"Essa capilarização vem não para disputar narrativa, mas para colocar uma narrativa de conveniências. É algo muito bem orquestrado que inicialmente aparecia como um discurso maluco, mas se enraizou e hoje se apresenta de outra forma", diz.
‘PROFESSOR DEVE FALAR PARA ATIVAR O FILTRO DO ALUNO’
Professora há mais de duas décadas do Liceu Nilo Peçanha, colégio estadual em Niterói (RJ), Valéria Borges entrou no alvo dos adeptos da Escola Sem Partido em 2017, e ainda lembra do episódio em detalhes.
Ela conta que um aluno LGBTQIA+ a indagou sobre o então pré-candidato Jair Bolsonaro.
Ela respondeu que ele tinha seguidores homofóbicos e racistas. Um áudio com esse trecho da aula vazou e, divulgado pelo atual deputado Carlos Jordy (PL-RJ), viralizou.
A docente foi xingada e ameaçada nas redes sociais."Senti medo, medo físico, fiquei deprimida, tomei remédio". Apoiada pela comunidade escolar, porém, ela diz que não mudou sua conduta desde então na escola na qual leciona.
O episódio, diz, ajudou-a a consolidar sua visão sobre como o professor deve se portar.
De esquerda e filiada ao PSOL, ela dá aula de história da transição entre a ditadura e a redemocratização, e ouve contrapontos de alunos.
"Acho que, quando questionado por aluno do ensino médio sobre sua preferência política, o professor deve responder, porque isso ativa o filtro do estudante."