As câmeras em sala de aula
As câmeras em sala de aula e a sociedade disciplinar
Por Marcos Paulo Tonial / Publicado em 12 de novembro de 2024
Foto: Pexels/Arquivo EC
Nos últimos tempos, temos vivido um acelerado processo de introdução de câmeras em sala de aula por parte de escolas privadas preocupadas com a segurança de seus equipamentos, dos estudantes, dos funcionários e dos professores. A justificativa por vezes parece justa e equilibrada, preocupada com o bem-estar da comunidade escolar, porém pode encobrir outros interesses.
Michael Foucault (1999) já acentuava que a construção da chamada sociedade disciplinar estabelecia, ou desenvolvia, certas técnicas de controle, objetivando o domínio não só dos corpos como das mentes. Na terceira parte de Vigiar e Punir, (Disciplina) Foucault expõe que, se antes do advento da era moderna os castigos físicos, os suplícios e a exposição da violência em praça pública tinham por objetivo o disciplinamento, o controle contemporâneo tem por principal objetivo estabelecer que os corpos sejam dóceis, enfim, corpos e mentes devem ser dominados ou controlados pelas instituições sociais.
E dentre estas instituições não escapa o ambiente escolar. O presídio, a fábrica, a empresa e também a escola passam a ser espaços onde o castigo físico vai sendo superado por novas técnicas de controle social. Desta forma, a vigilância torna-se um dos instrumentos avaliados como necessários para a boa regulação dos indivíduos e também como eficiente no controle das ações.
Nesta mesma parte, Foucault cria uma metáfora com o panoptismo para analisar como se dá a metodologia de controle. Influenciado pelo projeto do Panóptico de Jeremy Bentham, semelhante ao “grande irmão”, o Panóptico opera como um olhar invisível, mas sempre presente, um olho que tudo vê.
Sendo assim, as coordenações escolares, não estando presentes em sala de aula, impõe câmeras, as quais atuam como um instrumento de presença, constância, vigilância. Assim, professores e alunos são induzidos a se auto controlarem, auto ajustarem, por medo, por receio ou por cautela.
“O exercício da disciplina supõe um dispositivo que obrigue o jogo do olhar, um aparelho onde as técnicas que permitem ver induzam a efeitos de poder, e onde, em troca, os meios de coerção tornem claramente visíveis aqueles sobre quem se aplicam. (…) Ao lado da grande tecnologia dos óculos, das lentes, dos feixes luminosos, unida à fundação da física e da cosmologia novas, houve as pequenas técnicas de vigilância múltiplas e entrecruzadas, dos olhares que devem ver sem ser vistos; uma arte obscura da luz e do invisível preparou em surdina um saber novo sobre o homem, através de técnicas para sujeitá-lo e processos para utilizá-lo” (FOUCAULT, 1999, pp. 143-144).
Giorgio Agamben, filósofo italiano, passou por uma situação inusitada logo após os atentados do 11 de setembro nos Estados Unidos. Como professor convidado da Universidade de Nova York, teve de se submeter, no aeroporto, a uma série de procedimentos de controle para que pudesse acessar a república estadunidense: fichamento, impressões digitais, revista. Indignado, desistiu de professorar em tal universidade, pois achava que tais atitudes eram para ser aplicadas a presidiários, não a indivíduos livres. O que Agamben viu como fato indignante, talvez possamos achar algo absolutamente normal duas décadas depois, pois fomos sendo gradativamente acostumados ao controle, à disciplina e à vigilância.
Para Agamben, essas formas de manejo seriam o primeiro passo para que regimes democráticos passassem a ser autoritários com a fachada de democracia. Assim, as câmeras foram se multiplicando em vários espaços, seja por iniciativa das empresas ou do Estado, dominando locais privados e públicos: avenidas, companhias, elevadores, edifícios residenciais, condomínios e, ato contínuo, salas de aula. Essa vigilância faz com que Agamben entenda que o paradigma político do Ocidente não seja mais a cidade e sim o campo de concentração e, dessa forma, abrimos mão de nossa privacidade em nome de uma suposta segurança (2002). As práticas de exceção contemporânea, através da vigilância onipresente, imprimem uma realidade de dominação sem que o dominado se dê conta deste controle.
As câmeras em sala de aula, com a falácia de garantirem segurança, acabam por estabelecer controle e disciplina. Para o estudante, a presença de um “grande irmão” que tudo vê inibe a liberdade. Para os docentes, estabelece o controle sobre o fazer educacional numa espécie de patrulhamento ideológico.
Talvez possa o professor acreditar que as câmeras poderão auxiliá-lo ou protegê-lo de possíveis abusos por parte dos alunos, porém esquece que, independente da imagem, o cerceamento das suas ações pedagógicas e da sua liberdade de cátedra são violações de direitos. A quem interessa câmeras em sala de aula? Acreditar que são os docentes parceiros da escola na escolha por ter este equipamento em sua sala, esconde a realidade de que este fato não é sua escolha e sim uma imposição administrativa das direções, onde o professor não pode questionar tal ato com receio de represálias.
Como educadores sabemos que é preciso haver confiança para o fazer pedagógico. Então pergunta-se: como a vigilância pode estar em sintonia com os procedimentos pedagógicos modernos com intuito de desenvolver estudantes autônomos e críticos? Ao estabelecer a vigilância por câmeras, claramente as instituições estão ferindo a intimidade e a liberdade, cerceando as ações dos alunos, bem como a liberdade de ensinar dos professores. Como criar assim um ambiente de confiança e respeito?
Como educadores, prezamos sempre pela boa convivência com os nossos discentes e, em casos de indisciplina, atuamos de diferentes maneiras para a resolução dos conflitos, desde uma conversa apaziguadora até o encaminhamento aos setores disciplinares. Seria de fato necessário um instrumento de vigilância para o bom andamento das aulas? Entendo que escolas que instalam câmeras estão destituindo a confiança na palavra de seus docentes.
As escolas estabelecem em seus regimentos as medidas socioeducativas para disciplinar os casos de violência, bullying, desrespeito e outras ações nocivas ao bom andamento do fazer escolar. Assim, os discentes estão sujeitos a deveres e direitos, estão submetidos a normas e, por pressuposto, devem obedecê-las em prol do seu desenvolvimento intelectual, da sua melhoria acadêmica, da autonomia e do entendimento de valores, não porque estão sendo vigiados, e sim por questão de civilidade e construção de caráter.
Talvez as escolas não consigam visualizar que a vigilância revela a sua incapacidade institucional de confiar em seus profissionais e em sua competência de propor ações pedagógicas eficientes. Se um dos objetivos principais das instituições, o qual é alardeado e utilizado como instrumento de propaganda, qual seja, a autonomia discente, como fazê-lo desconfiando e utilizando sistemas de vigilância e controle? Desta forma, esse modelo de patrulhamento contribui para construir uma sociedade disciplinar afastada do interesse da autonomia, ou como dizia Foucault, as disciplinas se tornam fórmulas gerais de dominação.
AGAMBEN, Giorgio. Homo Sacer: o poder soberano e a vida nua. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2002
FOUCAULT, Michel. 20. ed. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 1999.
Marcos Paulo Tonial é professor, Mestre em História e diretor Sinpro/RS
FONTE:
https://www.extraclasse.org.br/opiniao/2024/11/as-cameras-em-sala-de-aula-e-a-sociedade-disciplinar/