As falácias da Educação à Distância
As falácias da Educação à Distância se alastram com (e como) o Covid19
Com a suspensão de aulas presenciais por conta da atual pandemia, voltam com força redobrada as pressões pela implantação da Educação à Distância (EAD). As mentiras e falácias sobre esse tema se multiplicam. Aqui algumas delas.
Falácia 1: misturar situações de exceção com proposta político educacional
De março até hoje estamos numa emergência. Pensávamos que ia durar um tempo limitado e curto. Frente à falta de recursos materiais (das famílias, das escolas e dos professores), de recursos humanos e emocionais e de formação tanto das famílias quanto dos professores e alunos para o ensino remoto, colocou-se a possibilidade de suspensão das aulas até a volta à normalidade. Está posição foi e continua sendo defendida especialmente em universidades públicas e, dentro delas, particularmente nas faculdades de sociais e humanas. Argumentávamos que seria menos danoso não dar aulas por uns poucos meses do que as ministrar nas condições atuais. Além do que, essas aulas não dadas poderiam ser recuperadas com uma readequação do calendário assim que pudéssemos voltar às aulas presenciais. Isso não invalidava a possibilidade de continuar mantendo contato com os estudantes para acompanhar o que lhes estava acontecendo e apoia-os nesse momento difícil.
Um segundo argumento, não menos importante, era e continua sendo a necessidade de resistir a um forte ataque mercadológico de empresas que durante este período estão utilizando todos os meios para vender (a governos e escolas) modelos pré-fabricados de EAD. Em alguns casos, como o do governo do Estado de São Paulo, que recebeu um pacote de EAD (doado, segundo a Secretaria de Educação), sua rede de ensino está sendo uma oportunidade para testar o pacote. Naturalmente fica subentendido a oportunidade de bons lucros futuros com a EAD consolidada.
Tudo indica que teremos uma situação de exceção bem mais prolongada e, no caso da universidade, começa a ficar claro que será necessário definir um plano estratégico para continuar com as ‘portas abertas’. Assim tem sido na Unicamp, onde sou professora. Todo indica que deveremos recorrer a aulas ‘remotas’ e talvez nos aproximar bastante ao que seria EAD, em especial na graduação e obviamente naquelas disciplinas que não exijam trabalho de campo ou em laboratório. O grande desafio será encontrar estratégias que não aprofundem as desigualdades já existentes, nem a dificuldade de conectividade de grupos significativos de alunos.
Falácia 2: misturar EAD com uso de recursos tecnológicos.
Todos nós sabemos que recursos tecnológicos podem atuar de maneira complementar a outros recursos didáticos nas aulas presenciais. Podem tornar a aprendizagem mais dinâmica e muitas vezes permitem dialogar com pessoas de outros países e abrir os horizontes do ensino, o que é especialmente importante no ensino universitário. Isso é óbvio, misturar isso com EAD é falácia.
Falácia 3: Nossa universidade pública, a diferença do resto do mundo, precisa deixar de ser elitista e possibilitar a distribuição de conhecimento de forma mais democrática.
Em primeiro lugar nenhuma universidade pública, em nenhuma parte do mundo, se expandiu com EAD. Todos sabem que a expansão da universidade não foi alheia à quase universalização do ensino médio. E que em alguns países estamos falando de expansão bem relativa porque neles a universidade é paga, inclusive a universidade à distância.
Em segundo lugar, como falar de democratização do ensino via EAD numa sociedade como a nossa onde não só a conectividade e aparelhos tecnológicos são bens para alguns, como também os espaços de moradia muitas vezes não comportam a possibilidade de concentração para o estudo. Assim, não é difícil imaginar (e este tempo de pandemia o está demonstrando) que a EAD promove uma maior desigualdade na educação, salvo em situações muito especiais – doença, regiões muito afastadas, epidemias, entre outros.
Em terceiro lugar, a universidade brasileira deu passos muito interessantes no sentido da democratização nas últimas décadas, passos que fizeram mudar bastante a ‘cara’ dela: ENEM, políticas afirmativas etc. Não se rompe com uma tendência histórica de um dia para outro e podemos continuar lutando para que essas políticas sejam cada vez mais amplas e que a educação básica realmente se universalize com qualidade.
Falácia 4: em ‘todo o mundo isso está acontecendo’.
Lamentavelmente, tenho ouvido cada vez mais essa afirmação. Para começar, quando se diz todo o mundo, não se diz nada. Que país? Que universidade? Como funciona? Por favor, vamos falar sério. Quais são as tendências hegemónicas hoje em educação?
Será que alguém se anima a negar a tendência de privatização dos direitos sociais[1], o usufruto dos recursos públicos por grandes empresas privadas com a implantação de ‘novos’ modelos de gestão (escolas charter, voucher, homeschooling), ou com serviços de consultoria, material didático, pacotes tecnológicos de EAD. Tudo isto está acontecendo em todo o mundo. Vamos entrar na onda neoliberal? É isso que se está pedindo?
Sem dúvida, a pandemia está acelerando a implementação de ferramentas digitais no Brasil e a venda de plataformas para todos os níveis de ensino, tal como afirma com entusiasmo um dos homens mais ricos do mundo, o Sr. Jorge Paulo Lemann. Segundo ele, a EAD deverá se disseminar após a pandemia, o que inclui as fundações que suas empresas mantêm no Brasil e no exterior, nas quais será dado maior ênfase ao ensino virtual: (https://www1.folha.uol.com.br/mercado/2020/05/lemann-dara-maior-enfase-a-ensino-virtual-em-suas-fundacoes.shtml)
Naturalmente, os vendedores têm pressa em fazer negócio, como bem o demonstra o CIEB (Centro de Inovação para a Educação Brasileira) ao propor a compra sem licitação de “tecnologias educacionais”, como se lê aqui: https://cieb.net.br/como-viabilizar-compras-publicas-de-tecnologias-educacionais-em-tempos-de-pandemia/
Na verdade a EAD já entrou na urberização. Há uma plataforma brasileira para quem quer ganhar dinheiro preparando aulas on line. Veja aqui: https://professores.diariooficial.com.br/?utm_source=facebook&utm_medium=display&utm_campaign=professor&utm_content=mulher&fbclid=IwAR0P4mD-bhD_UuVO-pZDbeHoTdYP23_H_ZLR0mAkuOvYiV9ccQEbYPqGxP4#disciplinas
Muitas são as pesquisas realizadas em universidades brasileiras e de outros países, mostrando a perversidade de funcionamento dos mecanismos de gestão privada nos diversos níveis de ensino público. Lembremo-nos, pois que EAD é mais um campo fértil para esse modo de gestão aqui é no exterior. É o que se pode ler nesse texto que descreve como muitas universidades públicas de EAD nos EUA fazem um tipo de terceirização dos cursos. Isto é, há empresas privadas atrás dos cursos públicos https://tcf.org/content/report/dear-colleges-take-control-online-courses/
Seria muito ingênuo pensar que nossa universidade pública está isenta de pressões de interesses empresariais.
Ainda que se ignorem essas ressalvas é, no mínimo, temerário afirmar que ‘todo o mundo aderiu à EAD’. Por exemplo, na Universidade de Maryland, onde fiz pós-doutorado, não há EAD. O mesmo acontece em outras universidades grandes e importante dos EUA. Algumas têm um ou outro curso em EAD, mas nada significativo. Em vários países há universidades que ministram aulas exclusivamente à distância, como é o caso, nos EUA, da University of Maryland Global Campus (não confundir com a universidade de Maryland), ou da UNED, na Espanha (fundada em 1972). Naturalmente elas preenchem um espaço em matéria de educação. Mas é só isso.
Uma pesquisa rápida na internet permite observar que a maioria dos cursos à distância na Europa e nos EUA é oferecida principalmente (às vezes unicamente) por universidades privadas e/ou por universidades que existem unicamente online.
Falácia 5: a universidade pública pode oferecer EAD de excelência, sem discriminação
A educação formal (básica e universitária) tem, sem dúvida, uma série de problemas, mas nenhuma teoria pedagógica coloca em questão a importância do carácter presencial da educação na construção do vínculo professor-aluno. Através de vídeo aula pode-se transmitir um conteúdo, uma informação, mas torna muito mais difícil criar um ambiente de trabalho coletivo de construção do conhecimento, de ajudar o estudante a criar uma disciplina de estudo, a focar e se concentrar no estudo, a sentir o prazer de apreender. Uma aprendizagem através do debate e, principalmente, da autonomia do professor para poder recriar, levando em conta os questionamentos dos alunos durante uma aula e/ou um curso, e ajudar o estudante a construir conhecimento.
Mas, tão importante quanto isso é lembrar que a construção do conhecimento não se restringe à sala de aula. A convivência, as bibliotecas, as participações em órgãos de representação estudantil, em instituições colegiadas de gestão, em grupos de pesquisa são, entre outras vivências, fundamentais no processo de formação dos jovens. A se destacar que, sem esse conjunto de atividades presenciais, na sala de aula e fora dela, a formação de uma juventude com pensamento crítico ficará extremamente prejudicada. São atividades essenciais, tanto na universidade, quanto no ensino básico, basta lembrar o período de ocupação de escolas que vivemos no Brasil entre 2015 e 2016.
O prof. Paulo Blikstein e sua equipe especializada em tecnologia educacional com equidade, na Universidade de Columbia, em Nova York, avaliam que os resultados de aprendizagem por EAD são muito ruins, tanto na educação básica quanto na graduação. Por exemplo, nos EUA a EAD tem uma taxa de evasão de 95%. Também observaram que no caso de alunos de muito alto rendimento é indiferente se aprendem por EAD ou presencialmente. A questão surge com os estudantes de baixo ou muito baixo rendimento: a aprendizagem desses alunos na modalidade presencial é muito melhor do que em EAD. https://www.youtube.com/watch?v=OfzW8e329qA
Falácia 6: EAD e saúde dos estudantes e docentes são coisas diferentes
Este tempo de pandemia mostra mais uma vez que ficar longos períodos frente a uma tela realizando reuniões, aulas etc. tem prejudicado enormemente a postura corporal. Se isso já é péssimo quando realizado com um computador, imagine-se com um celular, único instrumento para acesso online de que dispõem milhões de estudantes.
Além disso, os fonoaudiólogos têm observado um aumento significativo da diminuição da audição nos adolescentes pelo uso de auriculares. Para comprovar, basta observar o aumento de lojas de venda de aparelhos auditivos, entrar numa delas e ver como o jovem tornou-se um consumidor importante para o qual se desenham modelos coloridos, fosforescentes etc.
Não menos importante é a tendência cada vez maior do isolamento das crianças e jovens e sua comunicação com os pares e com o resto do mundo via redes sociais. As instituições educativas ainda permitem essas crianças e jovens um espaço ‘real’, e não virtual, de convivência. Vamos tirar isso deles?
Considero fundamental que o tema EAD seja debatido de forma séria e bem fundamentada. Ou isso, ou estaremos desarmados ante as falácias dos que promovem a mercantilização da educação. E já que esta pandemia tem sido comparada a uma guerra, vale lembrar o dito popular: “Em tempo de guerra, mentira é como terra”.
Nora Krawczyk é professora da Faculdade de Educação da Unicamp e pesquisadora do CNPQ | E-mail: 3105nora@gmail.com
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[1] Expressão utilizada por Carolina Catini no texto O trabalho de educar numa sociedade sem futuro. Blog da Boitempo, 5/6/2020