Banalização da exceção na EC 123/2022
Banalização da exceção na EC 123/2022: em busca de algum controle
Por Gerson dos Santos Sicca e Élida Graziane Pinto
O brocardo jurídico necessitas legem non habet significa que a necessidade se impõe, independentemente de anterior previsão legal. Não é preciso ir longe para perceber factualmente que a necessidade obriga: os brasileiros, que enfrentam privações de toda ordem, veem-se obrigados a buscar alternativas desesperadas de sobrevivência diuturnamente, por vezes para além da lei.
Problema se sucede quando tais privações decorrem da deliberada omissão estatal para que o regime da necessidade contorne reiterada e abusivamente os limites do ordenamento. Assim como Darcy Ribeiro constatara ser a crise da educação um projeto, a fome parece fazer parte dessa mesma lógica empregada pelos detentores do poder em benefício próprio.
A institucionalidade brasileira tem sofrido processo corrosivo crescente que vitima a forma e o conteúdo do Direito. Nas finanças públicas não é diferente. As regras fiscais, supostamente desenhadas para garantir a sustentabilidade da dívida pública, tornaram-se engrenagens de um sistema de crise permanente [1], sobretudo após a instituição do teto de gastos dado pela Emenda nº 95/2016, com readequações e renegociações contínuas no meio político, a fim de amoldar a regra à pauta do momento. Necessidade e emergência são as palavras mágicas que falseiam a justificação de alterações constitucionais sucessivas, com crescente menosprezo à integridade da Constituição de 1988.
Não bastasse a disfuncionalidade do teto de gastos, associada à captura da despesa discricionária pelo parlamento por meio do expressivo incremento das emendas parlamentares, evidência da fragmentação partidária e da dificuldade de definição de coalizão governamental sólida, agora a disputa eleitoral de outubro impele o Congresso a entoar o réquiem do arcabouço fiscal pátrio, com um agravante: o risco de interferência no processo eleitoral.
Inicialmente tratada como "suicídio" pela equipe econômica do governo [2], a PEC 1/2022 passou a contar com o seu apoio [3] e tornou-se prioridade. Daí é que ela foi promulgada em 14 de julho deste ano como a Emenda 123.
A "PEC Kamikaze", assim batizada pelo próprio ministro da Economia devido ao potencial impacto nas contas públicas, espanta pela velocidade com que foi discutida e aprovada pelo Poder Legislativo. A PEC, antes vista como "bomba fiscal", parece ter se transformado na "salvação da lavoura" para quem almeja se reeleger no pleito de outubro. E se, em dezembro de 2021 a expansão do Programa Auxílio Brasil foi vista como incompatível com a boa gestão fiscal, tanto que trechos da Lei 14.284/2021 foram vetados pelo presidente da República, poucos meses depois se descobriu estar o país em "situação de emergência", como se o processo inflacionário persistente já não fosse conhecido e previsível.
Em ambiente de normalidade institucional e de regras fiscais efetivas, as demandas da sociedade seriam calibradas em termos de metas e objetivos de médio prazo, mediante o devido planejamento e previsão na legislação orçamentária. Entretanto, o teto de gastos, que limita despesas pela correção da inflação, contribuiu para potencializar e consolidar regime irracional de "balcanização" fiscal e de corrida em prol do curto prazo eleitoral e de remédios ad hoc. No balcão, inclui suas demandas entre as despesas admitidas pelo teto aquele que se acotovela e chega primeiro. Estourado o teto, é a hora da corrida, com a constante invocação de emergências e a aprovação de soluções de última hora, contingentes e sempre insatisfatórias.
As constantes alegações de crise e emergência geram estado de alarmismo sem fim, suficiente para motivar sucessivas modificações constitucionais, minando a racionalidade e autoridade da Constituição. Em matéria fiscal, de Carta dotada de sentido material vinculante e ordenador, passou a ser mero mecanismo de acomodação de interesses imediatos, arremedo de ordenação normativa que em realidade meramente justifica o poder nu. Exemplo de uma democracia degradada.
O problema é que o que já está ruim sempre pode piorar e a EC 123/2022, para driblar a limitação da legislação eleitoral, atingiu o ápice da distorção do simulacro que se tornou o regime fiscal. Emenda é instrumento do poder constituinte reformador para adequar o texto constitucional às novas realidades, mas tem sido utilizada com o nítido objetivo de viabilizar o que se mostrava legalmente inviável: a aprovação de um estado de emergência que, de resto, é plenamente conhecido e previsível desde 2020, quando já se alertava sobre o irrealismo da limitação temporal estabelecida pelo Orçamento de Guerra.
Não se discute a superioridade da EC 123 sobre a Lei n° 9.504/1997 na hierarquia das normas. Entretanto, a discussão é outra. Pode o legislador, sabendo que o artigo 16 da Constituição prevê o princípio da anterioridade eleitoral, utilizar do seu poder reformador para combater regra do texto permanente, diretamente protetiva dos direitos políticos, em especial a garantia da cidadania ativa, mediante o exercício do voto livre, direto e secreto?
Associada a essa questão, indaga-se: a autoridade política que veta o fim da fila do Auxílio Brasil pode, beneficiando-se da emergência por ele mesmo criada, editar atos para a execução das disposições da emenda aprovada sem que isso implique a afronta ao artigo 73, §10, da Lei n° 9.504/97?
Como se vê, a discussão possui duas vertentes: 1) o questionamento in abstrato dos termos da EC 123/22; e 2) admitida a plena vigência e eficácia da Emenda, a responsabilidade pela prática de atos que criem ou ampliem benefícios ou caracterizem distribuição gratuita, sem previsão em lei anterior e na lei orçamentária anual, e cuja emergência invocada tenha sido gerada pelo seu comportamento ou omissão.
Sob a ótica do cotejo da EC 123 com o princípio da anterioridade eleitoral, a inconstitucionalidade da emenda não é detectada em leitura isolada do artigo 16 da Constituição, e sim em compreensão apropriada da norma, que vislumbre no preceito a finalidade de proteger o livre exercício do voto. A anterioridade eleitoral tem como um dos seus propósitos evitar medidas de afogadilho, tomadas pela maioria política premida por más projeções em pesquisas eleitorais, em prejuízo da paridade de armas na disputa.
Como bem assevera Canotilho, o princípio da liberdade de voto "passou a compreender-se também como liberdade e igualdade na preparação do próprio ato eleitoral", conclusão que estende ao princípio da igualdade no voto [4]. Na Constituição brasileira, a anterioridade eleitoral é justamente a garantia de estabilidade e proteção contra modificações repentinas e eleitoreiras, postulado nuclear do devido processo eleitoral, garantia individual do cidadão eleitor, oponível até mesmo ao legislador constituinte derivado. Nesse sentido é explícito entendimento do Supremo Tribunal Federal:
"Enquanto o art. 150, III, b, da CF encerra garantia individual do contribuinte (ADI 939, rel. min. Sydney Sanches, DJ 18.03.94), o art. 16 representa garantia individual do cidadão-eleitor, detentor originário do poder exercido pelos representantes eleitos e 'a quem assiste o direito de receber, do Estado, o necessário grau de segurança e de certeza jurídicas contra alterações abruptas das regras inerentes à disputa eleitoral' (ADI 3.345, rel. min. Celso de Mello). 5. Além de o referido princípio conter, em si mesmo, elementos que o caracterizam como uma garantia fundamental oponível até mesmo à atividade do legislador constituinte derivado, nos termos dos arts. 5º, § 2º, e 60, § 4º, IV, a burla ao que contido no art. 16 ainda afronta os direitos individuais da segurança jurídica (CF, art. 5º, caput) e do devido processo legal (CF, art. 5º, LIV)" [5].
Portanto, a utilização de emenda constitucional para violar garantia individual protetiva dos direitos políticos caracteriza violação inadmissível, pela utilização do poder reformador justamente para driblar o regramento eleitoral estabelecido em obediência ao princípio da anterioridade. Não se trata, é de relevo destacar, de questionamento dos termos da EC 123/2022 frente à Lei nº 9.504/1997, ou seja, uma espécie (inadmissível), de controle de legalidade de Emenda Constitucional, e sim do seu cotejo em relação a preceito constitucional que representa garantia individual do cidadão-eleitor, como apropriadamente destacou o STF.
O controle de constitucionalidade de emendas constitucionais desafia os limites da teoria da teoria constitucional e, em regra, conduz a respostas minimalistas, tendentes a respeitar as decisões do poder constituinte reformador, salvo na hipótese em que identificada a violação a princípios essenciais da organização do Estado e aos direitos e garantias individuais e políticos. Todavia, o agravamento do estado de anomalia institucional comprovado pelas sucessivas modificações emergenciais das regras fiscais na Constituição, levado ao extremo com a EC 123/2022 em razão do nítido intuito de interferir no processo eleitoral, exige leitura compreensiva e integrativa do artigo 60, §4°, de maneira a evitar a erosão constitucional sem paralelo que se observa, inclusive para evitar o uso meramente retórico do conceito de emergência com o único propósito de justificar um estado de exceção.
O estado de exceção não é novidade no constitucionalismo. O filósofo italiano Giorgio Agamben [6] explica que a supressão da aplicabilidade das regras constitucionais e o predomínio da excepcionalidade surgiu ora como emergência militar, principalmente a partir da primeira guerra mundial, ora como emergência econômica, de que é exemplo o New Deal norte-americano dos anos 30 do século 20. Agamben rememora que Hitler teve seu acesso ao poder facilitado pela banalização da exceção na Alemanha. Entre 1925 e 1929, o país submeteu-se a mais de 250 situações de estados de exceção e decretos de urgência, solapando o funcionamento ordinário das instituições e o regime protetivo dos direitos dos cidadãos. No Brasil atual, com tantos indicativos de condutas "fora das quatro linhas", a atualidade de se ampliar a discussão sobre as formas modernas de exceção, e a consequente identificação dos meios de contenção ao processo corrosivo do Estado de Direito e da democracia, estão na agenda do dia.
O controle de constitucionalidade da Emenda Kamikaze deve ser oportunidade para barrar o estado permanente de exceção que vem se desenhando. Ignorar a gravidade da promulgação da EC 123, com impactos eleitorais e fiscais perversos, no afogadilho e de repercussões gravíssimas, imporá um preço alto para a credibilidade institucional e econômica do país.
Reconhecer a incompatibilidade de tal emenda com o artigo 16 da Constituição é sinalizar que a jurisdição constitucional não admitirá o uso eleitoral do poder constituinte derivado, poder que, pela sua importância, é exercido em condições especiais estabelecidas pelo poder constituinte originário. Caso contrário, estará aberta a porta para um eterno jogo eleitoral sem limites materiais ou formais e, o pior, a aceitação de uma cultura de manipulação e de emergências fabricadas.
Por outro lado, ainda que venham a ser mantidas as autorizações de despesa contidas na EC 123, por força da realidade famélica que se impõe aos brasileiros, sob qualquer ótica a declaração de emergência nela contida não poderá subsistir, especialmente porque a garantia de renda mínima não é necessidade temporária. Diversamente do brocardo latino, para essa necessidade há regra jurídica, ignorada quando fora vetada no final de 2021 a expansão do programa Auxílio Brasil.
A Emenda 114/2021 inseriu parágrafo único no artigo 6° da CF, dispondo que a renda básica é direito social, a ser regulado em caráter permanente. Da regra decorre que declarações de emergência com efeito de circunstancial, ao contrário de beneficiarem a população, violam gravemente o seu direito, em afronta séria aos princípios da dignidade da pessoa humana e da segurança jurídica. Afinal, em janeiro de 2023 as necessidades das famílias continuarão, mas os benefícios, não. Dependerão da boa vontade dos mandatários que assumirão?
Em outros termos, se a Emenda 114/2021 estabeleceu o direito social à renda básica, obviamente de cunho permanente enquanto a pessoa estiver em condição de vulnerabilidade social, regulá-lo por prazo temporário na EC 123/2022 é incompatibilidade lógica e desproporcional.
Logo, a ampliação de prestações em caráter temporário, de prazo brevíssimo, com potencial evidente de agravar a afronta ao direito à renda básica já em janeiro de 2023, na medida em que a EC 123 não dá suporte à manutenção da ampliação do direito após o final do atual exercício (e nem a LDO 2023 prevê as condições), é meio que não atende aos fins constitucionais e subverte valores constitucionais fundamentais.
Por fim, há o abuso na aplicação do conceito de estado de emergência, dada a fabricação das condições excepcionais pelo governante, o que, para traçar um paralelo com a Lei de Licitações, denota a ilicitude da conduta nas hipóteses em que o administrador se beneficia da própria torpeza para furtar-se do dever de realizar despesa pública conforme os ritos ordinários previstos em lei. Essa dimensão da responsabilidade, não legislativa, e sim eleitoral, poderá ser debatida na jurisdição especializada, pelas razões expostas em texto anterior [7].
As instituições competentes devem ser provocadas para que controlem a inaceitável tolerância ao estado permanente de exceção que parece se instalar. Calar-se, nesta quadra da história constitucional brasileira, implica conivência com a prostração da ordem constitucional e aceitação de elevado risco de queda no abismo autoritário.
[1] SICCA, Gerson dos Santos. A constitucionalização excessiva do direito financeiro. ConJur, 26 abr. 2021. Disponível em: ConJur - Sicca: A constitucionalização excessiva do Direito Financeiro.
[2] PEC Kamikaze: entenda a proposta apoiada por Flávio e atacada por Guedes (terra.com.br).
[3] PEC Kamikaze virou PEC virtuosa das bondades, diz Guedes (yahoo.com)
[4] CANOTILHO, J. J. Gomes. Direito Constitucional e Teoria da Constituição. 7ª ed. Coimbra: Almedina, 2003.p. 304 – 305.
[5] STF. ADI nº 3.685. Tribunal Pleno. Rel. min. Ellen Gracie. Rel. min. Ellen Gracie. J. em 22/3/2006. Publ. em 10/8/2006. No mesmo sentido é o julgador referente ao Recurso Extraordinário nº 633.703, Tribunal Pleno, rel. min. Gilmar Mendes, J. em 23/3/2011, DJ de 18/11/2011.
[6] Agamben, Giorgio. Estado de Exceção. Trad. de Iraci D. Poletti. 2 Ed. São Paulo: Boitempo, 2004. [edição eletrônica] n.p.
[7] PINTO, Élida Graziane. Anterioridade violada pelo abuso de créditos extraordinários. ConJur, 12 jul. 2022. Disponível em: ConJur - Anterioridade violada pelo abuso de créditos extraordinários.
Gerson dos Santos Sicca é conselheiro substituto do Tribunal de Contas do Estado de Santa Catarina.
Élida Graziane Pinto é professora da FGV-SP e procuradora do Ministério Público de Contas do Estado de São Paulo.
Revista Consultor Jurídico, 26 de julho de 2022