BNC da Formação: profissão em risco
BNC da Formação: a educação e a profissão em risco
Como já analisamos no primeiro post da série (leia aqui), tanto a proposta do MEC socializada em outubro de 2017 (leia aqui), Política Nacional de Formação de Professores, quanto a proposta encaminhada ao CNE pelo MEC em dezembro de 2018 (leia aqui)- Proposta para Base Nacional Comum da Formação de Professores-, apresentam um diagnóstico limitado da problemática educativa, minimizando o peso dos fatores extraescolares e intraescolares nos processos de desenvolvimento e aprendizagem dos estudantes e culpabilizando os professores pelas mazelas da educação e da escola pública, considerando que “entre os fatores que podem ser controlados pela política educacional, o professor é o que tem maior peso na determinação do desempenho dos alunos”.
Na lógica neoliberal, a padronização dos currículos da educação básica -BNCC – e da formação de professores – BNC da Formação -, é necessária para melhor avaliar de forma censitária todos os sujeitos – estudantes e os professores, as escolas e os sistemas, como já afirmava Priscila Cruz (veja aqui), do Todos pela Educação, em 2012, no contexto da elaboração da BNCC.
No Parecer do CNE, estas proposições estão delineadas de forma clara, ao indicar , no contexto dos Referenciais Docentes (Cf. pág. 11 linhas 468 a 545) para a organização dos currículos de formação de todos os professores, as dez competências gerais (Cf. págs. 12 e 13, linhas 622 a 699), consideradas obrigatórias na construção do percurso curricular dos professores. A partir delas, como veremos, é proposta toda uma cadeia de processos excludentes de seleção, avaliação e controle dos currículos dos cursos, dos estudantes, inclusive para ingresso nas licenciaturas e, fechando o ciclo, controle do ingresso, permanência e progressão na carreira do magistério.
A profissão docente em risco
Ao que tudo indica, o MEC/CNE busca consolidar a 2a. fase da reforma educacional, deflagrada no contexto do golpe de 2016, alterando radicalmente a política nacional de formação dos profissionais da educação, com uma cadeia de ações no âmbito da formação continuada e carreira. (Cf. pág. 12 Parecer)
O Parecer evidencia o retorno a uma formação inicial de caráter técnico-instrumental, ao caracterizar, na estrutura curricular , tanto na parte comum (veja aqui o quadro comparativo das DCNs 2015 e Parecer CNE) de 800 hs, quanto na parte de aprofundamento de 1.600 hs o estreito e exclusivo alinhamento ao desenvolvimento , nos professores, de competências e habilidades indicadas na BNCC das diferentes etapas da educação básica, evidenciando o estreitamento do currículo de formação. A proposta ainda indica, ao que parece, uma “parte comum” que pode configurar-se como um “nivelamento” inicial dos estudantes àqueles conhecimentos não dominados, nos moldes propostos pelo CEE de São Paulo aos cursos de licenciaturas, em 2016.
No que tange à formação continuada, a proposta é que ela seja desenvolvida na própria escola, e alinhada exclusivamente ao conteúdo delimitado pela BNCC, articulando-se à carreira e compondo, com a formação inicial, a base nacional comum da formação no quesito Plano de Carreira e Avaliação (Cf. pág. 39) conforme a Proposta de Base Nacional Comum da Formação de Professores da Educação Básica, do MEC encaminhado ao CNE em 2018 referida acima . Sem considerar em qualquer parte dos dois documentos as proposições contidas nas Diretrizes Diretrizes Nacionais para os Planos de Carreira e Remuneração dos Profissionais do Magistério da Educação Básica Pública, aprovadas em 2009 pelo CNE, indicam uma proposta cujos vínculos com os referenciais docentes configuram a implementação de uma carreira docente de caráter meritocrático, com avaliações periódicas que definem quem ascende e a que nível da carreira, e mais, se permanecem ou não na carreira. A estrutura da carreira referenciada na experiência da Austrália, insere os processos de avaliação da formação continuada alinhados com os graus da carreira, instaurando a diferenciação e a segmentação na formação e as possibilidades de acesso a conhecimentos superiores, apenas aos níveis mais altos da carreira. A estrutura referida no Parecer assim divide a carreira 1. Professores recém-graduados, 2. Professores proficientes, 3. Professores altamente experientes e 4. Professores líderes. (Cf. pág. 12, linha 523 a 530).
Uma profissão em risco, é o que se anuncia, pois atrelada à avaliação de desempenho na formação continuada e/ou, provavelmente, nos exames nacionais de avaliação docente nos moldes do projeto já aprovado na Câmara, do ENAMEB – Exame Nacional de Avaliação da Educação Básica – , instauram processos de competição e disputa no coletivo escolar, comprometendo um trabalho que vem se consolidando sobre bases solidárias, parceiras, comprometidas não apenas com o próprio crescimento e aprimoramento profissional, mas responsáveis por levar adiante de forma democrática, o projeto político pedagógico da escola.
Uma educação crítica e emancipadora exige outras bases e concepções
Nesta série, buscamos trazer à reflexão as concepções que informam as atuais propostas do MEC e do CNE para a educação e para a formação de professores. Esta não é uma proposta isolada, nem nasce em nosso país. Embora haja referencia a um ou dois autores nacionais, as propostas emanam em grande parte dos estudos elaborados pela OCDE – Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – , organismo que desenvolveu e organiza o PISA – exame internacional de avaliação da educação nos diferentes países .
Evidenciamos como as forças neoliberais e os reformadores educacionais em nosso país se articulam interna e internacionalmente para impor um projeto de educação que coloca em risco a educação pública como um bem público, abrindo as portas para a mercantilização e a privatização das escolas de educação básica. O atual Parecer do CNE não apenas está na contramão das proposições mais avançadas em relação à formação de professores, existentes em outros países além do Brasil e demais países da América Latina, que fizeram outras escolhas para a educação de seu povo, que não a profunda segmentação educacional, como é o caso do Chile – berço das reformas neoliberais na América Latina implementadas no período da ditadura Pinochet e agora abraçado pelos mesmos segmentos que impõem retrocessos na formação de professores.
Temos o dever de resistir aos processos que nos oprimem, que comprometem a formação das novas gerações, que pretendem extinguir e eliminar processos de inclusão das classes populares, dos filhos e filhas de trabalhadores nos percursos formativos dos quadros do magistério, ou neles inseri-los mas transformando-os em empresários de si mesmos como anunciam as concepções explícitas do Parecer em questão.
Aos processos de desmonte e destruição da universidade pública e dos atuais cursos de licenciaturas, temos que contrapor o aprofundamento e a radicalização na implementação das nossas DCNs de 2015, ampliando a discussão com as Faculdades e Centros de Educação, coordenadores de cursos de pedagogia e das licenciaturas, fóruns de licenciaturas existentes, entidades científicas, estudantes, com os professores da educação básica, denunciando o caráter excludente da proposta em relação aos jovens licenciandos das classes populares; o estreitamento da formação, transformando professores em meros gestores da BNCC, em um “prático”, pois desprovidos da sólida formação teórica no campo dos fundamentos da educação e das áreas cientificas objetos do ensino, comprometendo o caráter da formação das novas gerações.
Estas concepções se situam em um campo antagônico daquelas que vêm sendo construídas historicamente pelo movimento dos educadores em luta pela formação, e materializadas em nossos currículos e percursos formativos, principalmente das Universidades Públicas.
Reafirmamos que desde 2015, temos as nossas Diretrizes Curriculares Nacionais da Formação, indicadas pela Resolução 02/2015 que reforça os princípios da base comum nacional construídos historicamente pela ANFOPE (acesse aqui os Documentos), base comum que não se confunde com a base nacional comum da LDB , e nem mesmo com a BNC da Formação.
A concepção de base comum nacional que defendemos, constitui-se em um conjunto de eixos norteadores da organização curricular, entendidos como princípios orientadores com uma concepção sócio-histórica da formação, que devem estar presentes nos processos formativos, propiciando a todos os estudantes e educadores, no âmbito da formação inicial e formação continuada as condições para colocar seu trabalho em sintonia com as necessidades históricas da infância e da juventude e de um projeto histórico emancipador que demanda transformações radicais no atual sistema educativo, social e político.
Explicito aqui estes princípios, comentando-os com a intenção de demarcar os campos entre as concepções das propostas construídas coletivamente ao longo dos últimos 40 anos e aquelas presentes nas proposições atuais do período pós-golpe.
1. propiciar uma sólida formação teórica e interdisciplinar no campo da educação, que permita apreender seus fundamentos históricos, políticos e sociais e o domínio dos conhecimentos a serem trabalhados pela escola (matemática, artes, ciências, história, geografia, química, e outros), bem como os vivenciados em outras instituições educativas; compreensão dos processos de desenvolvimento das crianças, jovens e adultos em suas múltiplas dimensões: cognitiva, afetiva, estética, cultural, artística, ética e biossocial e nos diferentes níveis e modalidades de ensino. Este princípio de formação requer recuperar a importância do espaço de formação para análise da abrangência e delimitação do campo da educação, dos métodos de estudo, do seu status epistemológico, recorrendo às diversas áreas e campos de conhecimento para construir teorias pedagógicas voltadas para o aprendizado de novas formas criativas, interrogadoras e emancipadoras do trabalho humano. A sólida formação teórica se contrapõe aos processos de desqualificação e degradação da profissão presentes no aligeiramento da formação; a apropriação do processo de trabalho pedagógico, criando condições de exercer a análise crítica do trabalho docente no contexto do desenvolvimento atual da sociedade brasileira e da realidade educacional.
2. identificar eixos articuladores que garantam a unidade entre teoria e prática, o que implica assumir uma postura em relação à produção de conhecimento para impregnar a organização curricular dos cursos. A teoria e a prática não se reduzem à mera presença e justaposição em uma grade curricular. A unidade entre a teoria e a prática requer assumir a centralidade do trabalho como princípio educativo na formação profissional, reformulando-se os estágios e sua relação com a rede pública não como mera adaptação, mas como possibilidade de criação de formas alternativas de organização do trabalho pedagógico e da escola em contraposição à lógica tecnicista e produtivista hoje hegemônica. Implica construir coletivamente parâmetros claros que orientem a tomada de decisão em relação à seleção, organização e sequência dos conteúdos escolares visando à superação da forma atual de organização da escola e do currículo, possibilitando aos estudantes a reflexão sobre suas práticas, a partir da prática social e do trabalho docente que se realiza nas escolas públicas, como base da formação e fonte da unidade teoria e prática. O trabalho como princípio educativo deverá dar ênfase ao desenvolvimento de metodologias inovadoras e criativas para o ensino dos conteúdos das áreas específicas e ênfase na pesquisa como produção de conhecimento e intervenção na prática social concreta, considerando-se a capacidade de reflexão e produção do conhecimento no campo educacional;
3. vivenciar formas de gestão democrática, apreendendo seu significado como instrumento de luta contra a gestão autoritária na escola e na educação; a vivência de formas de gestão democrática, nas instituições formadoras, desde a gestão do espaço da classe e da aula, fortalecendo a auto-organização dos estudantes, até as formas superiores de gestão educacional, entendendo-a como superação do conhecimento de administração enquanto técnica e controle, na perspectiva de apreender o significado social das relações de poder que se reproduzem no cotidiano da escola, nas relações entre os sujeitos do processo educativo , entre os professores e técnicos administrativos, entre estes e os alunos, e entre os alunos, assim como na concepção e elaboração de novos conteúdos curriculares que contemplem a multiplicidade de dimensões da formação humana. Aprender, enfim, a ser dirigente e dirigido, com uma nova humanidade nas relações, considerando as múltiplas funções e tarefas no âmbito da escola.
4. assumir o compromisso social, político e ético com um projeto emancipador e transformador das relações sociais excludentes no processo de formação profissional, com fundamento na concepção sócio histórica de educador, estimulando a análise política da educação e das lutas históricas dos profissionais do magistério e da educação, articuladas com os movimentos sociais; incentivar o envolvimento e direção do trabalho político e organizativo por meio da aproximação e participação nas entidades sindicais e científicas e nos movimentos sociais na defesa dos direitos sociais; desenvolver formas de resistência às políticas que despolitizam, desarticulam a categoria e individualizam os processos de trabalho educativo que, por sua natureza, são coletivos e solidários;
5. vivenciar o trabalho coletivo e interdisciplinar de forma problematizadora, entre alunos e entre professores, como eixo norteador do trabalho docente na universidade e da redefinição da organização curricular. A vivência e a significação dessa forma de trabalho e produção de conhecimento permitem a apreensão dos elementos do trabalho pedagógico na escola e das formas de construção do projeto político-pedagógico, de responsabilidade do coletivo escolar. A criação de novas formas de organização do trabalho pedagógico permite enfrentar e superar a fragmentação entre as disciplinas e componentes curriculares, bem como superar a separação e a divisão do trabalho escolar entre professores e demais profissionais da escola.
6. incorporar a concepção de formação continuada em contraposição à ideia de currículo e formação extensiva, sem comprometer a formação teórica de qualidade, permitindo a autonomia e independência intelectual e a direção de seu próprio processo de formação como estratégia de resistência às determinações externas sobre o caráter de sua formação, na direção da superação pessoal e profissional tendo como referência o projeto pedagógico da escola e o coletivo escolar.
7. avaliar permanentemente os cursos de formação dos profissionais da educação. A avaliação deve ser parte integrante das atividades curriculares e entendida como responsabilidade coletiva a ser conduzida à luz do projeto político-pedagógico de cada curso ou instituição em questão.
Esses princípios orientadores da Base Comum Nacional na formação dos profissionais da educação, na perspectiva de uma compreensão sócio histórica da educação, constituem um norte importante para uma política orgânica e consistente de formação de professores. São nosso instrumento de resistência aos processos de desqualificação da profissão, à degradação das condições de trabalho, salario e carreira do magistério e demais profissionais da educação.
São estes os motivos que justificam a rejeição ao Parecer do CNE, que se situa em um campo antagônico ao processo implementado a partir das DCNs de 2015 considerando as concepções que o informam, não poderá responder aos imensos desafios postos na atualidade à educação das novas gerações que buscam na escola sua humanização, que somente pode se realizar com processos que contraponham a solidariedade e a autonomia à competição e submissão, o companheirismo ao individualismo, e a igualdade de condições de formação e superação aos processos avaliativos, competitivos e destrutivos de nossos estudantes.