Bolsonaro voltou
Bolsonaro voltou
Paz e amor não durou muito
24/08/2020
Porrada na boca
Disseram que Jair Bolsonaro tinha mudado e eu quase acreditei. Por algum tempo, ele se recolheu. Falaram que era uma nova fase e eu considerei a possibilidade de que fosse verdade. Avisaram que o presidente queria, enfim, pacificar o país e eu achei que, por necessidade, ele seria pragmático. Garantiram que o capitão não se comportaria mais com deselegância e eu me perguntei se ele conseguiria. Chegaram a falar em Jairzinho paz e amor e eu até ri. Então, de repente, não mais do que repente, o velho Bolsonaro não se conteve. Perguntado pelo dinheiro depositado por Queiroz na conta de Michelle, Bolsonaro pareceu ouvir uma velha música: explode coração.
De volta ao fardamento que o consagrou, soltou uma jabuticaba: “Minha vontade é encher a tua boca com uma porrada”. Que país é este? Só no Brasil, que eu saiba, um presidente responde dessa forma a um jornalista. Na ditadura, a tortura acontecia nos porões. Em público, não existia. Em nações de democracia altamente enraizada, essa resposta do presidente seria considerada intimidação à imprensa. Poderia ensejar um processo de impeachment por quebra de decoro. Entre nós, decoro não passa de uma fórmula de etiqueta que caiu em desuso como o lenço de pano no bolso do casaco e a peruca empoada na Europa. Os generais eram mais discretos do que o capitão? Até hoje Bolsonaro não deu explicação consistente sobre os R$ 89 mil depositados pelo faz-tudo do 01, o misterioso Queiroz, na conta da agora primeira-dama do país. Sugeriram que tudo seria esclarecido e eu fiquei esperando.
Uma hipótese me vem à mente: Bolsonaro inventou uma nova forma de comunicação, a franqueza brutal, o coice como argumento, a violência verbal como forma de provocar debates inflamados. Talvez seja possível escrever um tratado de retórica a partir do modelo encarnado por ele: da estupidez como autenticidade absoluta. Esse negócio deve dar até votos. O sujeito ouve e exulta: “Ele fala como a gente”. Preciso refletir mais para me tentar me acostumar com a ideia. Bolsonaro sempre me surpreende. Disseram que ele manteria a sua “nova política” e ainda assim estabeleceria vínculos com o parlamento. Fiquei na expectativa. Quando acordei, o Centrão já comemorava.
Há quem diga que a democracia brasileira corre perigo. Até o decano do Supremo Tribunal Federal, ministro Celso de Mello, que não tem fama de radical e comunista, andou prevenindo em relação a isso. Excedeu-se ao fazer comparações com Hitler. Outro ministro do STF, o o insuspeito lavajatista Edson Fachin, foi direto ao ponto: “As eleições de 2022 podem ser comprometidas se não se proteger o consenso em torno das instituições democráticas”. Ele denunciou um cavalo de Troia no governo. Há quem tranquilize: nossa democracia tem pernas sólidas, saúde robusta, ombros largos, não vai desabar por causa de uma fala equivocada num momento de tensão. Peso, pondero, tento não me desesperar, ouço todos os lados. Se a nossa democracia se segura, a tal liturgia do cargo vai mal. O presidente castiga a ponderação que se espera de um homem com o cargo que ocupa. Jairzinho Paz e Amor pisou na bola? Vai recuperar a moderação? Só reagiu a uma provocação? Não tem nervos de aço? Reagiu como ser humano acossado? Não sei. Sempre me faço perguntas esquisitas assim: e se fosse o Lula?