A reta final da campanha parecia favorável ao bolsonarismo até a semana passada, com pesquisas mostrando a aproximação dos dois presidenciáveis. O campo petista bem que tentou evitar o medo da derrota, mas não conseguiu. Até a última sexta, estava macambúzio, inseguro quanto ao resultado das urnas no próximo dia 30. O moral baixo dos eleitores do ex-presidente Lula parece ter deixado o entorno do presidente à vontade – o que os fez perder o controle de suas bolsonarices. Começou no sábado, com o ex-deputado Roberto Jefferson, da sua prisão domiciliar, xingando a ministra Cármen Lúcia. Acabou com 20 disparos contra agentes da Polícia Federal no domingo, disparados pelo ex-apresentador de O povo na TV. As ofensas vulgares contra a ministra, publicadas nas redes da filha Cristina, provocaram outra ordem de prisão, e o ex-deputado resistiu aos policiais.
Do dia para a noite, Jefferson dominou o noticiário, deixando os nomes de Lula e Bolsonaro para trás nas buscas do Google. Com direito a granadas de efeito moral, uma negociação desastrada do ministro da Justiça Anderson Torres e de Vinicius Secundo, um policial boa-praça, para acertar a rendição de um criminoso reincidente. Secundo chamou integrantes da equipe sob a mira de Jefferson de “burocráticos”, como se viu no vídeo vazado em que padre Kelmon assiste ao diálogo entre Jefferson e o agente da polícia.
Era para ser trágico, mas a presença do padre Kelmon fechou o pastelão. As imagens se espalharam como pólvora numa semana tão estratégica para uma das disputas mais acirradas da história brasileira. O bolsonarismo, afinal, não é onipotente.
O clima entre policiais, base segura do bolsonarismo a priori, azedou. O silêncio nos grupos de WhatsApp bolsonaristas denunciou que o roteiro da campanha para a reeleição de Bolsonaro saiu do script. A cobertura da Jovem Pan tentava igualar a atitude do ex-deputado ao “autoritarismo” da ministra Cármen Lúcia por seu voto pelo direito de resposta da campanha de Lula à emissora. O presidente da República havia feito o mesmo pelo Twitter, logo após o atentado de Jefferson. “Repudio as falas do sr. Roberto Jefferson contra a ministra Cármen Lúcia e sua ação armada contra a PF, bem como a existência de inquéritos sem nenhum respaldo na Constituição e sem a atuação do MP”, escreveu ele antes da metamorfose em praça pública.
Em questão de horas, o presidente quase que afirmava não saber direito quem era Jefferson, dizia não ter fotos com ele e o chamou de "bandido". Foi desmentido pela imprensa e pelas redes sociais na velocidade da luz. Fotos dos dois e os fios das relações de longa data foram divulgados, inclusive as ligações de Jefferson com seu filho Eduardo Bolsonaro. A campanha à reeleição acabava de ter uma fissura exposta.
Vinte e quatro horas depois, Bolsonaro já falava dele como um “amigo” que faz besteira. É quase certo que a bomba de Jefferson explodiu no colo da campanha nesta reta final. Chegou-se a cogitar que o pavio aceso pelo ex-deputado pudesse ser um ensaio do Capitólio brasileiro, caso Bolsonaro seja derrotado. Jefferson parecia disposto a ser um mártir e a plantar “sementes de resistência”, como ele afirmou em seu vídeo no último domingo, para exibir sua resistência à prisão o ataque que promoveu contra os agentes da polícia federal. Acreditou no personagem do bolsonarismo. Mas era só mais um teatro, como o que ocorreu em 7 de setembro de 2021, quando bolsonaristas acreditaram piamente que o presidente iria implantar o estado de sítio no país.
Os ensaios de golpe não estão dando certo. O Brasil não é os EUA, e a façanha pode ter tido um efeito bumerangue. Os indecisos de hoje não querem votar em Bolsonaro, entre várias razões, porque ele é violento. A imagem do sangue ao lado de uma viatura da PF e o risco de alguém ter morrido não devem tê-los convencido a mudar de opinião. É mais fácil ser indiferente às mortes nas franjas do país, nas periferias, onde a polícia militar esconde tão bem os homicídios. Imagens dos ataques à Polícia Federal na TV podem causar o mesmo impacto da imagem de uma mala de dinheiro numa campanha decisiva. Tudo tem limite.
Talvez o país tenha decifrado mais um elemento do DNA golpista brasileiro. A mesma inércia que nos faz voltar para trás com a memória feudalista e escravagista trouxe também o plasma do atentado no estacionamento do Riocentro, em 30 de abril de 1981. A bomba que explodiu no colo de um militar do DOI-CODI que tentava incriminar jovens opositores da ditadura que participavam de um show. Foi na Barra da Tijuca.
Estamos muito longe de cantar vitória a quatro dias do segundo turno. Muito mais longe de celebrar um caminho para retomar a civilidade. Com Bolsonaro ou Lula na presidência, o bolsonarismo já se espalhou e vai exigir muito da sociedade brasileira para ser dissecado. Eles são poderosíssimos.
Por ora, vale observar. Outras bombas explodiram. Uma na campanha de Santa Catarina, onde o candidato do PT ao governo do estado, Décio Lima, exibiu um áudio de 2018 atribuído ao empresário bolsonarista Luciano Hang e ao secretário da Fazenda do estado, Paulo Eli. O dono da rede Havan estaria sendo cobrado por Eli para que pagasse os impostos devidos ao estado por sua rede varejista, famosa por manobras internacionais para evitar o fisco. Eli teria reclamado que estava na iminência de atrasar o salário dos professores. “Atrase o salário. Paulo, vai me desculpar. Atrasa o salário, demita”, pediu Hang, de acordo com o áudio. A sensibilidade bolsonarista a toda prova. Pode não mudar o cenário eleitoral em Santa Catarina. Mas expôs mais uma faceta de um dos empresários mais próximos de Jair Bolsonaro. Não, o bolsonarismo não está nu. Por ora, só perdeu uma costura.
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