Brasil, país do futuro?

Brasil, país do futuro?


BRASIL, PAÍS DO FUTURO?

SOBRE O SUCESSO DO POPULISTA BOLSONARO

12.6.2019 | CAROL PIRE


Caras amigas, caros amigos,
 
“Será que o mundo e os contextos políticos se tornaram tão acelerados, tão complexos e tão confusos, que a maioria das pessoas, que no fim das contas só quer dar conta de suas próprias vidas, está irremediavelmente sobrecarregada?”

Vou partir dessa pergunta do Michael para relatar um pouco o que aconteceu no Brasil desde que Jair Bolsonaro tomou posse, em janeiro de 2019. Mas, antes de tudo, acho que preciso explicar aos que não têm familiaridade com a política brasileira como foi que chegamos até aqui.

Para mim, as raízes do ímpeto político de Bolsonaro estão nos seis últimos traumáticos anos pelos quais os brasileiros passaram, começando com os protestos de 2013, que mudaram o espectro político do país e que até hoje não podem ser plenamente explicados.
 
Vínhamos então de oito anos de governo popular e paternalista de Luiz Inácio Lula da Silva, um período no qual seus programas de assistência social tiraram da pobreza e transformaram em consumidores cerca de 30 milhões de pessoas, o que também agradou a elite econômica. Lula era tão popular (não estou certa se eu o enquadraria como populista, embora ele definitivamente apresentasse alguns traços populistas), que ele teve apenas que pedir e as pessoas votaram em Dilma Rousseff, uma tecnocrata quase desconhecida. Rousseff estava indo bem até a economia começar a desacelerar. Foi nesse contexto que 2013 eclodiu.  De início, era um movimento estudantil de esquerda contra o aumento das tarifas de ônibus, mas logo essa energia insurreicional foi sequestrada pela direita e direcionada contra a presidente.

No ano seguinte, a eleição de 2014 foi polarizada entre o Partido dos Trabalhadores (PT) – de Lula e Rousseff –, que tinha estado no poder desde 2002, e o PSDB de Aécio Neves, que temia perder sua quarta eleição presidencial consecutiva. No início da campanha, o candidato que representava a terceira via morreu em um acidente aéreo e foi substituído por Marina Silva, antiga ministra do Meio Ambiente de Lula. Embora Marina Silva tenha ajudado a construir o Partido dos Trabalhadores na região amazônica, ela foi virulentamente atacada pela campanha do PT. Não havia espaço para luto. O resultado foi que Dilma Rousseff venceu pela menor margem da história das eleições no país e o Brasil começou a se dividir em duas partes irreconciliáveis.

É aí que vejo os primeiros sinais de que adversários políticos romperam seu compromisso de respeito mútuo e passaram a ganhar poder e influência, desrespeitando as regras do jogo democrático. Aécio Neves, candidato do PSDB, não aceitou o resultado e pediu uma recontagem. Quando o tribunal confirmou o resultado, ele passou a pedir o impeachment da presidente Rousseff.  
 

“Pela primeira vez brasileiros estavam deixando o estresse da política afetar suas relações pessoais.

Carol Pires

 
Enquanto isso, a Operação Lava Jato – a maior investigação anticorrupção que o Brasil já tinha visto – começou a revelar uma rede de corrupção no serviço público. Os investigadores prendiam pessoas por período indeterminado e então ofereceram a eles a possibilidade de delação premiada para apontar outros envolvidos. O conteúdo das delações premiadas e grampos telefônicos era vazado para a imprensa diariamente, garantindo que a operação estaria nas manchetes de cada jornal sem checagem adicional dos fatos. Para o público, era como assistir a thriller político: emocionante, mas também estressante e enfurecedor. Podíamos ouvir histórias de casais se separando e famílias brigando por causa de política. Pela primeira vez, brasileiros, que sempre tinham guardado para si suas opiniões políticas em prol da conciliação, estavam deixando o estresse da política afetar suas relações pessoais.

O resultado da operação Lava Jato foi duplo. Primeiro, políticos e homens de negócios realmente poderosos, que antes se sentiam inimputáveis, foram presos e tiveram que devolver os milhões de dólares que tinham roubado. Para listar alguns exemplos, o líder da Câmara dos Deputados foi preso, alguns dos homens mais ricos do país foram presos, todos os antigos governadores do estado do Rio de Janeiro foram presos e, quando o suspense político atingiu seu ápice, o ex-presidente Lula foi preso (em um caso que envolve uma justificável acusação de corrupção contra ele, mas também o uso de um agressivo lawfare pelos investigadores).
 
 
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A segunda consequência foi que eles criaram dentro da sociedade – com tantas prisões e delações premiadas – a ideia de que a política em si era um crime. O que deveria ter sido uma operação contra a corrupção se tornou uma operação contra a política. A revolta nas ruas se tornou mais e mais radicalizada: alguns começaram a pedir a volta do regime militar e você podia ver demonstrações misóginas contra Rousseff, como adesivos de carros contendo montagens fotográficas com a nossa primeira presidente mulher com as pernas abertas e entre elas o bocal de uma bomba de gasolina. O desrespeito entre políticos ecoou entre os eleitores: eles diluíram a definição de desvio comportamental.
 
 

“Deveríamos encarar mais seriamente a discussão sobre o trauma psicológico na política.

Carol Pires

 

Dilma Rousseff, uma antiga guerrilheira torturada, foi deposta por impeachment em agosto de 2016 com o aval dos congressistas, entre eles um que usou seu tempo de votação para homenagear o coronel Brilhante Ustra, o mais infame dos torturadores da ditadura brasileira. Esse congressista, Jair Bolsonaro, é agora o presidente do Brasil. E o juiz que conduziu a operação Lava Jato, Sérgio Moro, é seu ministro da Justiça.

O relato acima – ao qual assistimos em uma velocidade estonteante – permite transformar a pergunta do Michael em uma sentença afirmativa.

O mundo e os contextos políticos se tornaram tão acelerados, tão complexos e tão confusos, que a maioria das pessoas está irremediavelmente sobrecarregada. (Michael Zichy)

Não é de se admirar que, quando alguém como Bolsonaro ofereceu às pessoas soluções fáceis e superficiais para as principais questões do Brasil, ele tenha tocado seus corações. E isso me faz acreditar que deveríamos encarar mais seriamente a discussão sobre o trauma psicológico na política.

Bolsonaro é um populista tirado de um manual. Mesmo tendo atuado por 27 anos como deputado, e tendo seus três filhos mais velhos na política (como vereador, deputado e senador), Bolsonaro é um crítico veemente da classe política. Ele alega representar o povo, mas é antielitista e antipluralista. Já afirmou que quilombolas “não servem nem para procriar”, que “preferiria ter um filho morto a um filho gay”, que “a escória da Terra está migrando para o Brasil”, e que o país delimitou terra demais para tão poucos indígenas. A lista de absurdos é longa.

Bolsonaro também retrata seus rivais políticos – especialmente os de esquerda, mas também qualquer um que discorde dele – como imorais e corruptos. Durante a campanha eleitoral, ele falou a uma multidão incitando fuzilar simpatizantes do PT. Para completar a checklist populista, ele acusa todos os principais veículos de notícias do Brasil de espalhar fake news.

Ágnes observou que “os novos etnonacionalistas diferem daqueles da primeira metade do século 20 naquilo em que sua ideologia é negativa. Eles não prometem conquistas territoriais, uma sociedade sem alienação, felicidade para todos ou mesmo grandeza. Eles prometem proteção”. Como ela enquadraria Bolsonaro, alguém que também semeia o caos para oferecer proteção, mas não apenas contra migrantes ou contra a interferência externa na nossa política interna, mas contra os próprios brasileiros: os esquerdistas, as minorias, os indígenas e todos os que discordam dele?

Para subir ao poder, Bolsonaro surfou em uma onda incomum que foi criada no Brasil por quatro segmentos: 1) os militares e seus apoiadores (é bom lembrar que o Brasil nunca julgou os torturadores e assassinos de sua ditadura, criando uma geração de brasileiros que ignora sua história); 2) os economistas neoliberais e executivos (que acreditaram que Bolsonaro conduziria sua agenda, mesmo que ele tenha um histórico de defesa de um Estado forte; 3), celebridades da mídia social de direita (muitos deles seguidores do autoproclamado filósofo conservador Olavo de Carvalho); e 4) uma massa de eleitores que concorda com sua defesa de uma mão firme na segurança pública (incluindo a legalização da posse de armas). Também é importante levar em conta a difusão do antipetismo. As pessoas estavam cansadas depois de 13 anos de administração de Lula e Dilma Rousseff, manchada por denúncias de corrupção entre seus aliados mais próximos.

Essa receita brasileira o fez presidente, mas não está funcionando como forma de governo. Para agradar seus apoiadores, que querem que ele derrube o sistema, Bolsonaro continua criticando o Congresso e a “classe política”. Em resposta, o Congresso não deu a ele uma vitória substancial, deixando os liberais céticos quanto a sua capacidade de realizar reformas significativas. De manhã, ele ataca o Congresso e o Supremo Tribunal, mas à tarde alguém o convence a se desculpar. Sua taxa de aprovação caiu para 32% – a pior entre todos os presidentes brasileiros até hoje a essa altura do mandato.
 
 

“Para aqueles que esperavam progressos na luta contra a corrupção, Bolsonaro também é uma decepção.

Carol Pires


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Os militares, que antes eram vistos como a maior ameaça à democracia, estão – surpreendentemente – agora agindo como moderados, pedindo respeito às instituições que Bolsonaro continua atacando. Em resposta, um dos filhos de Bolsonaro, Carlos, responsável por sua campanha online, está neuroticamente acusando os militares de quererem derrubar o presidente, o que cria ainda mais instabilidade.

Para aqueles que esperavam progressos na luta contra a corrupção, Bolsonaro também é uma decepção. Uma investigação contra Flávio, seu filho mais velho, o liga a um caso de corrupção e a milicianos. Seus filhos têm sido uma oposição mais efetiva que qualquer partido político.  

Recentemente, para atender seus partidários mais fiéis, Bolsonaro estendeu a 19 milhões de brasileiros o direito de possuir armas de fogo, mas seu decreto está sendo questionado por sua inconstitucionalidade e ineficiência, dado que o Brasil já tem a maior taxa de mortalidade por armas de fogo no mundo. Enquanto isso, a taxa de desemprego no país atingiu um novo recorde de 12%.

Sem resultados para mostrar, o presidente aposta na guerra cultural: ele chama de “idiotas” estudantes que protestam contra cortes na educação, diz que as universidades públicas estão cheias de comunistas, posta vídeos pornográficos no Twitter para afirmar que o Carnaval brasileiro é uma manifestação cultural corrupta e conta com seus tuítes e vídeos ao vivo, no Facebook, para falar a seus obstinados apoiadores sobre suas teorias da conspiração e para culpar “o sistema” por sua falta de ação. Como todos os populistas, culpar é o que ele mais faz.   

Por tudo isso que relato, me questiono sobre a sustentabilidade dessas democracias não liberais, especialmente as lideradas por alguém como Bolsonaro, uma criação das redes sociais.  

No entanto, em resposta à pergunta de Yvonne, ainda acho que “o populismo de poucos” deveria nos preocupar.  Bolsonaro não teve sucesso em manobrar, junto à classe política, para mudar leis, mas ele tem feito tudo que pode através de decretos presidenciais: sua administração autorizou o uso de mais de 150 pesticidas e lançou um ataque contra iniciativas de proteção à Floresta Amazônica. Em função disso, sim, acredito que todo populista é uma ameaça ao mundo inteiro.

Isso me leva à próxima pergunta de Yvonne: “Qual a melhor oferta disponível que seja capaz, por si só, de empolgar os melhores anseios daqueles que hoje procuram demagogos messiânicos para articular seus sonhos (pesadelos para outros)?”

Em “O povo contra a democracia”, Yascha Mounk diz que “seria tentador presumir que os eleitores, devidamente punidos pelo caos subsequente, voltariam a confiar mais uma vez na velha classe política”. Mas não é isso o que normalmente acontece. A solução, diz Mounk, depende de os cidadãos se sentirem mais esperançosos que fatalistas: “Só quando eles recuperarem a confiança de que políticos mais moderados vão lutar e trabalhar a seu favor é que vão mudar seu voto”.

Parece que nós (pelo menos nós, este seleto grupo de pensadores) já sabemos como identificar os populistas. Agora, como responder a eles sem soar como eles?  Como podemos formular propostas, conquistar apoiadores e ganhar visibilidade, apesar da velocidade vertiginosa dos tempos em que vivemos?
 
Abraços,
 
Carol Pires




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