Cada um tem a sua verdade

Cada um tem a sua verdade

Não existe isso de "cada um tem a sua verdade"

Cada um pode ter sua opinião sobre a verdade, claro, mas a verdade em si, por definição, é inquestionável. É justamente o que não pode ser posto em dúvida

23/11/2018

Gabriel Renner / Arte ZH
Gabriel Renner / Arte ZH

Não existe isso de "cada um tem a sua verdade". A verdade é a verdade e acabou. Cada um pode ter sua opinião sobre a verdade, claro, mas a verdade em si, por definição, é indiscutível. Ela é justamente o que não pode ser posto em dúvida. Ela é o retrato inquestionável dos fatos.

Você pode debater pontos de vista, opiniões, interpretações, mas esse debate só fará sentido, só será lógico e producente, se ocorrer em cima da verdade. Se você distorce a verdade, o debate já nasce torto.

Por exemplo: de uns tempos para cá, movimentos sociais e até trabalhos acadêmicos começaram a pregar a erradicação de expressões como mercado negro, lista negra, passado negro, humor negro, magia negra, ovelha negra e lado negro da força porque todas elas seriam racistas.

É evidente que, se existem negros se ofendendo com esses termos, o debate precisa ser feito – mas precisa ser feito em cima da verdade. E a verdade é que nenhuma dessas expressões jamais teve relação com a cor da pele de ninguém. Pode-se dizer que seria melhor evitá-las, mas não se pode dizer que elas sejam racistas. Ou, pior ainda, que alguém é racista por tê-las empregado.

A oposição entre as trevas e a luz, a escuridão e a claridade, a noite e o dia é uma das metáforas mais antigas da história da humanidade – muito anterior à escravidão dos africanos. Na criação do universo, Deus disse "faça-se a luz". E, segundo o Gênesis, "viu Deus que a luz era boa e dividiu a luz das trevas".

Há 40 mil anos todas as assombrações são noturnas. O nosso luto é preto. Todo mundo já teve medo do escuro. Quando o mercado é negro, é porque está embaçado, escondido, no escuro. O passado é negro porque foi uma época de trevas. A lista é negra porque seus membros serão jogados às sombras. O humor é negro porque apela para sentimentos obscuros. A magia é negra porque evoca entidades soturnas. E, se a coisa vai ficar preta, é porque o tempo está fechando. São metáforas com a luminosidade, jamais com a cor da pele.

Agora, claro, não tenho autoridade alguma para dizer o que pode ou não insultar quem experimenta a brutalidade do racismo. Se há negros ofendidos com as expressões acima, não há dúvida de que é preciso repensá-las – mas, se vamos decepar frases do nosso idioma, que saibamos pelo menos a verdade sobre elas.

Outro debate improdutivo, ainda mais recente, é o que debita na conta da esquerda as atrocidades do nazismo. Inventaram que Hitler era esquerdista especialmente porque: 1) havia "socialista" no nome do Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães, mais conhecido como Partido Nazista, e 2) a economia do Terceiro Reich era estatista e antiliberal – como prega o comunismo –, enquanto a direita sempre defendeu o mercado livre e um Estado menor.

É maravilhoso debater opiniões, mas não há nada mais inútil do que debater uma inverdade.

São distorções tacanhas da verdade. Porque o nacional-socialismo (de onde vem o termo nazismo) surgiu justamente como reação ao socialismo – que Hitler elegeu como principal inimigo ao lado do judaísmo. E o socialismo era internacionalista, não nacionalista. Quer dizer: para os socialistas, a classe trabalhadora era uma só no mundo inteiro e, portanto, a revolução proletária deveria se expandir globo afora.

Já os nacionais-socialistas, ou nazistas, consideravam boa parte do mundo uma gigantesca porcaria – por isso, defendiam um Estado exclusivamente alemão baseado na raça ariana. E esse Estado precisava ser grande, claro, mas não para distribuir riquezas ou promover alguma igualdade, como pregava o socialismo, pelo contrário: o objetivo era manter a desigualdade – racial, no caso –, dizimando povos "inferiores" e combatendo as oposições. Com o apoio inclusive das empresas verdadeiramente alemãs.

Tratava-se, portanto, de um capitalismo estatal e excludente. Nada menos à esquerda do que isso. E nada mais próprio da extrema-direita – que nada tem a ver com a direita. Aliás, a ditadura militar brasileira também era antiliberal, também mantinha o Estado no controle da economia, mas ninguém ousaria dizer que foi de esquerda.

Ou será que ousaria? É possível, visto que há gente dizendo que  a Terra é plana. Que vacina faz mal à saúde. Que a humanidade começou com Adão e Eva. Tudo sob a justificativa de que "cada um tem a sua verdade". Ora, a verdade não é relativa nem movediça nem flutuante. A opinião, sim. E é maravilhoso debater opiniões. Mas não há nada mais inútil do que debater uma inverdade.


https://gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/paulo-germano/noticia/2018/11/nao-existe-isso-de-cada-um-tem-a-sua-verdade-cjoud93tn0g7a01rxmr2vd33w.html?fbclid=IwAR1Ror0mmpFliVnhSNg6CD7oLHcfht1iMJogzuv_ztouUQi8j-bKIxCr0qQ 

 




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