André Ávila / Agencia RBS

Sérgio e Janete Eberhardt com os três filhos no que seria a Escola Parque Aliança, em Terra de Areia, no Litoral Norte. Obra inacabada integrava o programa Proinfância, lançado há 10 anos pelo governo federal        André Ávila / Agencia RBS

 

Em julho se completam 10 anos de um dos mais ambiciosos projetos construtivos já criados no país, o Programa Nacional de Reestruturação e Aquisição de Equipamentos para a Rede Escolar Pública de Educação Infantil (Proinfância). Esse projeto do governo federal surgiu em 2012 como possível redenção para o dilema de quem não tinha onde deixar os filhos na hora do trabalho. A execução foi pouco além da metade.

No Rio Grande do Sul, foi projetada a construção de 1.843 creches e quadras esportivas. Desse total, 853 não foram concluídas. Por três motivos: ou foram canceladas (só tinham contrato, as obras sequer começaram) ou estão inacabados (o contrato findou antes da construção ser terminada) ou paralisados (a construção parou, mas o contrato segue vigente). 

Quando alguém analisa os esqueletos de creches inacabadas que proliferam em território gaúcho, um nome se repete: MVC Componentes Plásticos. Essa empresa, que está em recuperação judicial, começou a construir 41 creches e nunca as finalizou. Elas representam 41% das obras interrompidas em território gaúcho pelo gestor do Proinfância, o Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação, o FNDE, ligado ao Ministério da Educação (MEC)

As empresas asseguram que as escolas ficaram inacabadas porque o governo federal atrasou todos os repasses de verbas para as obras. E também porque municípios não cumpriram compromissos de terraplenagem. "Foram feitas  mais de 10 reuniões no Ministério da Educação, explanando o problema da inadimplência e solicitando a retomada das obras. Nada deu resultado, os recursos não vieram",  ressaltam representantes da Gatron (novo nome da MVC), em nota à reportagem.

A grande maioria das obras do FNDE é composta de escolas infantis do Proinfância, mas algumas são canchas esportivas. Do total de 853 projetos que não vingaram no Estado, 202 são da empresa MVC. A maioria nem sequer saiu do papel, mas 41 dessas creches da MVC chegaram a ser iniciadas – e não foram concluídas. Das 41, segundo o FNDE informou à reportagem, há planos de reformular ou retomar 10. As demais estão abandonadas. 

O caso está na mira do Tribunal de Contas da União (TCU), que acaba de aprovar auditoria específica para obras interrompidas do MEC em todo o país. Quase todas as construções abandonadas são escolas infantis. Dos 9,7 mil projetos suspensos, cerca de 2,3 mil tiveram alguma estrutura iniciada. 

Mesmo com esses percalços, o Proinfância fez mais do que deixou de fazer. Foram concluídas 15,6 mil obras e outras 3,6 mil estão em andamento. O que causa estranheza nos auditores, conforme documento do tribunal, é o governo federal ter priorizado erguer 2 mil novas escolas recentemente, quando há tantas construções inconclusas. 

Grupo de Investigação da RBS (GDI) pesquisou sites do governo federal e dos municípios e descobriu que a MVC é a empreiteira que mais prometeu e menos cumpriu, entre os contratos pactuados com o FNDE. Quando o governo federal lançou o pregão do Proinfância em 2012, o Estado enfrentava um dos piores índices de déficit na educação infantil, com necessidade de mais de 215 mil vagas. A MVC fechou contratos para gerar 19,4 mil vagas em território gaúcho, com a construção de 208 dos 1,8 mil empreendimentos previstos pelo FNDE para o Estado (quase todos creches). Mas finalizou apenas 12 escolas (6% do previsto), com saldo de 1,9 mil vagas geradas. Outras empreiteiras também falharam no compromisso, mas a MVC é a que menos contratos cumpriu, proporcionalmente. 

O que aconteceu? É uma longa história. O governo federal tinha pressa para enfrentar o déficit na educação infantil. Só no Rio Grande do Sul era preciso criar 215 mil vagas. Até pela necessidade de rapidez, a primeira licitação do Proinfância, feita pelo Regime Diferenciado de Contratações, teve entre as vencedoras quatro empresas que elaboraram propostas construtivas inovadoras, que prometiam concluir em menos tempo e a custo menor que o convencional. Uma delas, a MVC, ganhou licitação para construir no país 1.241 creches (208 deles no Rio Grande do Sul), mediante substituição de tijolos por um polímero (com fibra de vidro), material mais leve. 

O método, que se anunciava mais ágil e mais limpo do que a alvenaria tradicional, usa chapas prontas encaixadas. Só que a construtora não conseguiu fabricar as escolas previstas no prazo estabelecido. Alegou dificuldades financeiras por falta de repasses de recursos estatais e pediu reajustes de preços, não concedidos pelas prefeituras – que teriam descumprido ainda outros acordos, como preparar terrenos. A MVC chegou a se comprometer a fazer 900 até 2015 e iniciou mais de 600, segundo relato levado ao governo federal naquele ano. Depois, as obras foram paralisadas. 

O resultado é que, entre 2013 e 2015, a MVC concluiu apenas 12 creches no Estado. Isso ocorreu após parte das verbas ser destinada aos empreendimentos. Além da perda de dinheiro público e da deterioração do material desperdiçado nas obras interrompidas, as comunidades ficaram sem as vagas de creches que seriam criadas nesses quase 10 anos. 

A Federação das Associações de Municípios do RS (Famurs) intermediou reuniões entre prefeitos e representantes da construtora, que se comprometeu a retomar os trabalhos. Mas, apesar das promessas, as escolas não foram finalizadas pela MVC.

Algumas prefeituras, com a ajuda de verbas federais, abandonaram o método alternativo e, em muitos casos, usaram recursos próprios para finalizar as escolas, contratando outras empreiteiras, além de conseguirem ajuda repactuada com o FNDE. O pior é que em muitos casos essas construtoras firmaram contratos para finalizar as obras interrompidas da MVC e também não completaram o serviço. 

— Os prefeitos lutaram para concluir as creches quando a MVC as deixou incompletas. Conseguiram finalizar 160 dos 202 projetos pactuados pela MVC. Fizeram isso com recursos próprios, nos prédios mais avançados e verbas do FNDE nos demais. Já em relação às 41 interrompidas, muitas estão tão deterioradas que não apresentam condições de conclusão — diz Márcio Biasi, coordenador de Educação da Famurs.

Nem as fundações da creche inacabada podemos aproveitar mais, porque o tal material inovador proposto pela MVC não suporta o peso de concreto ou tijolo. Teremos de começar tudo do zero

ALUÍSIO TEIXEIRA/ Prefeito de Terra de Areia


Em alguns casos, as prefeituras que retomaram os trabalhos tiveram de refazer toda a estrutura, porque a tecnologia da MVC não é compatível com o tijolo convencional, ressalta Biasi. O prefeito da cidade litorânea de Terra de Areia, Aluísio Teixeira, confirma. A MVC abandonou uma creche naquele município quando tinha 34% da obra concluída. A estrutura enferruja ao ar livre, e o município move ação por danos contra a empresa. A intenção é usar o terreno para uma nova creche, mas só após conseguirem vencer a causa judicial. Enquanto isso, a prefeitura paga aluguel de salas para as crianças pequenas ficarem. 

— Nem as fundações da creche inacabada podemos aproveitar mais, porque o tal material inovador proposto pela MVC não suporta o peso de concreto ou tijolo. Teremos de começar tudo do zero — lamenta o prefeito. 

A obra estava orçada em R$ 790 mil e, conforme o FNDE, foram feitos dois repasses de R$ 197 mil, cada. A construção apodrece a céu aberto. 

No TCU, chegou a ser cogitado que a MVC fosse declarada inidônea e proibida de participar de licitações federais por cinco anos, mas a medida acabou não sendo adotada. Premida por débitos, a empresa entrou em recuperação judicial em 2017. 

A razão social da MVC mudou para Gatron Inovação em Compósitos, cuja sede fica em São José dos Pinhais (PR). A MVC é uma sociedade anônima que tinha entre os acionistas as empresas gaúchas Artecola (74%) e Marcopolo (26%). A Marcopolo alega que se retirou da sociedade antes do projeto das creches. 

Colaborou: Cristine Gallisa

 

https://gauchazh.clicrbs.com.br/grupo-de-investigacao/noticia/2022/06/pouco-mais-da-metade-das-18-mil-creches-do-programa-federal-proinfancia-no-rio-grande-do-sul-foi-concluida-cl4rhokwz0037019ic6khpegy.html 

 

Processos judiciais por escolas inacabadas correm em nove Estados

No total, há 9,7 mil projetos que não foram finalizados ou acabaram paralisados no Brasil

HUMBERTO TREZZI - 24/6/22

André Ávila / Agencia RBS

Estrutura de diversas obras não pode ser reaproveitada com alvenaria comum. Na foto, o que restou da construção na Morada do Vale III, em Gravataí  André Ávila / Agencia RBS

 

O problema das obras suspensas pela construtora MVC vai muito além do território gaúcho. Hoje, há 9,7 mil projetos de escolas infantis e canchas esportivas inacabados ou paralisados no Brasil. Desses, 1,2 mil são da MVC, aponta auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU). 

Na fase inicial do Proinfância, a MVC foi a que recebeu mais contratos no país. Ganhou licitação para erguer 1.241 creches entre 2013 e 2015. A maioria não saiu do papel. Se no Rio Grande do Sul ela concluiu 6% dos 208 contratos, em nível nacional o desempenho foi pior: 0,64%, conforme o TCU. Foi a performance menos eficaz entre as empreiteiras que propunham método alternativo de construção (a Casa Alta fez 2,7 % do contratado, o Consórcio PIB fez 4,8% e a Consórcio Concreto PVC, 5,9%). 

Inconformadas, prefeituras têm recorrido à Justiça. O GDI encontrou 58 ações a respeito das creches inconclusas da MVC. Elas tramitam em nove Estados: Rio Grande do Sul, Sergipe, Bahia, Maranhão, Pernambuco, Piauí, Espírito Santo, Alagoas e São Paulo. Quase todas solicitam indenização. Dois procedimentos, um em Novo Triunfo (BA), e outro em Marechal Deodoro (AL), estão na esfera criminal. Sua base está em supostas irregularidades na licitação. 

No Rio Grande do Sul, são pelo menos 21 as prefeituras pedindo indenização à MVC. Algumas cidades contabilizam até quatro escolas inconclusas, prometidas pela empresa, caso de Gravataí. Além desse município, a reportagem localizou processos na Justiça Federal em Gramado, Farroupilha, Bom Jesus, Caxias do Sul, Nova Hartz, Tramandaí, Osório, Terra de Areia, Três Cachoeiras, Portão, Carazinho e Itaqui. Todos na área cível. 

Já tiveram ganho de causa as prefeituras de Gravataí (R$ 4,2 milhões por seis escolas inconclusas, quatro delas da MVC), GramadoBom Jesus e Farroupilha (R$ 240 mil por escola, cinco ao todo, mais juros desde 2015). 

— O FNDE não exigiu garantias suficientes, e as obras ficaram concentradas em poucas empresas. Elas não conseguiram cumprir o pactuado e os municípios ficaram na mão — resume o procurador Fabiano de Moraes, que atuou pelo Ministério Público Federal (MPF) em casos julgados na Serra. 

O FNDE não exigiu garantias suficientes, e as obras ficaram concentradas em poucas empresas. Elas não conseguiram cumprir o pactuado e os municípios ficaram na mão

FABIANO DE MORAES/ Procurador do MPF

Na Justiça Estadual, ZH encontrou, judicializadas, causas em Passo Fundo, Carazinho, Iraí e Sananduva. E investigações do Ministério Público em Ametista do Sul, Erechim, Erval Seco, Frederico Westphalen e Três Arroios. 

Empresas culpam o governo 

Em julho de 2017, a MVC entrou em recuperação judicial e mudou a razão social para Gatron Inovação em Compósitos. A Gatron, que contratou o escritório Carpena Advogados para mover ações de indenização contra o governo federal, informa que os problemas começaram com falta de repasses do FNDE. A MVC gerava 6 mil empregos na época, “o que foi comprometido, devido à irresponsabilidade do governo”, segundo os advogados, em nota. Hoje a empresa gera cerca de 600 empregos diretos.

“Em 2014/2015, a MVC fez mais de 10 reuniões no Ministério da Educação, explanando o problema da inadimplência e solicitando a retomada das obras, sob pena de a empresa quebrar e as creches não serem entregues. À época, o governo federal estava sem recursos para repassar aos municípios. A MVC conversou com mais de cinco ministros da Educação, mas, dada instabilidade política da época, a falta de recursos financeiros, a ameaça de impeachment de Dilma Rousseff, nenhuma conversa trouxe resultados. A cada semana, caía um ministro, inclusive da Educação”, ressaltam representantes da Gatron em nota. 

A respeito dos processos judiciais aos quais responde, a Gatron afirma que tem provado que é “vítima de uma gestão desastrada pelo FNDE, que não só não atendeu o pactuado sob o ponto de vista financeiro, como também de atendimento às especificidades e problemas enfrentados por cada município”. 

A Artecola, maior sócia da MVC até então, também alega que seus problemas financeiros vieram com o não repasse integral dos valores pactuados pelo governo federal aos municípios. Menciona ainda alterações na gestão do FNDE. A defesa da Artecola nos processos judiciais tem argumentado que várias estruturas de escolas já pré-fabricadas (em chapas) não foram enviadas aos municípios porque prefeituras demoraram na entrega dos terrenos, que deveriam estar previamente terraplenados e prontos para o início da obra. 

Conforme comunicado da Artecola, a empresa se afastou da construção civil “em consequência da crise iniciada a partir de contratos assinados pela MVC com o poder público, envolvendo a execução de creches do programa ProInfância. A União, através do FNDE e do MEC, não honrou seus compromissos, suspendendo os pagamentos do projeto a partir da gestão que tomou posse com o novo governo, em 2015. Como consequência, a MVC não teve como cumprir seus compromissos, e a Artecola, fiadora da MVC à época, foi acionada em causas financeiras e trabalhistas”. 

Contatada, a Marcopolo declara que sua participação na MVC era minoritária, apenas de investidora, sem poder de gestão. E esclarece que já foi excluída de processos relacionados ao tema. A empresa reforça ainda que não há nenhum processo transitado em julgado no qual tenha sido condenada. 

O FNDE se manifestou em nota: “A direção do FNDE informa que era de responsabilidade dos municípios a adoção de medidas cabíveis no sentido de compelir as empresas a executarem as obras. O FNDE não efetivou nenhum pagamento à empresa MVC. Os recursos são repassados aos entes federados (municípios), que contrataram a empresa. O FNDE não tem competência para acionar judicialmente a MVC pelo não cumprimento dos contratos. Cabe aos entes federados mover ações judiciais, se necessário. O FNDE analisa a prestação de contas para avaliar a correta aplicação dos recursos e a análise técnica para verificar a execução das obras, de modo a aferir o cumprimento das metas previstas e a conclusão do objeto”. 

 

https://gauchazh.clicrbs.com.br/grupo-de-investigacao/noticia/2022/06/processos-judiciais-por-escolas-inacabadas-correm-em-nove-estados-cl4rkz2zu001l019ie3zr1cdu.html