Câmeras abertas ou mentes abertas?

Câmeras abertas ou mentes abertas?

Câmeras abertas ou mentes abertas?

Há algum tempo, desde o infausto advento pandêmico, venho incomodado com uma nova neurose escolar/docente. Sempre senti-me desconfortável com interdições draconianas, regras e punições severas, ameaças e imposições para “delitos” dos alunos. O que mais me irrita é a imorredoura Moby Dick de muitos professores: o celular. Desde minha estreia no magistério, em 2009, vejo com um misto de irritação e constrangimento o desespero de alguns colegas e instituições contra o celular.

Cartazes na lousa, incisos em “contratos de convivência” (quase sempre leoninos), avisos orais recalcitrantes, “combinações” unilaterais, advertências, querelas e mais ameaças. Tem sempre algo de patético (beirando o cômico) nessas condutas coercitivas e patrulhadoras adotadas pela escola. O professor que se engaja nessas tentativas torna-se figura mal quista e risível, alvo do riso escarninho merecido de alunos que detectam a famosa “síndrome da pequena autoridade”.

A novíssima baleia branca dos docentes é a tal câmera aberta. Virou uma neurose, deixando muitos na beira da psicopatia. Alguns (como eu mesmo, no início o fazia), pedem gentilmente. Outros numa linha mais passivo-agressiva pedem-no “por consideração”, outros mais vociferantes, exigem e reclamam e, finalmente, há aquelas escolas que impõe a obrigatoriedade da câmera aberta, indo até as últimas conseqüências, judicializando a questão (!). Já virou uma celeuma institucional, debate nacional, discussão bizantina.

Contudo, como dizia meu avô, no Direito o absurdo é discutível. Ainda não há regra, é muito novo o problema. Mesmo que venha a haver, quem garante que será uma regra compreensiva, humana e acolhedora? Sinceramente, mal posso esperar para desobedecê-la: “Queridos, abre a câmera quem quer. Às favas com a PEC da câmera aberta!”.

Enfim, tem pano para a manga e eu, aqui, sei que estou abrindo flanco para ser apedrejado, pois já temos aí uma verdadeira turba de fanáticos da câmera aberta e todos seus supostos benefícios. Podem perguntar: “Professor, então o senhor gosta de dar aula para um paredão preto?”. Claro que não! Preferiria que todos abrissem suas câmeras, interagissem nas malditas aulas crônicas, que tudo fosse do meu jeitinho, que todos me amassem e que o Sars-Cov-2 fosse extinto. Mas eu tenho um coração. Deus aquinhoou-me com a virtude da piedade, da empatia e da compreensão. Sou um Educador, afinal. Por isso esforço-me, tal como o fazia/faço, para competir com o celular, para promover aulas nas quais eles tenham vontade de abrir a câmera. Nas quais esse comportamento venha espontaneamente (o que é muito mais agradável).

Obviamente, nem sempre funciona. Vez que outra lá vou eu dar aula para o paredão. Resisto e não reclamo. Reflito sobre a intervenção, reviso, reformo e tento outra vez.

Uma das pragas da pandemia são as pequenas neuroses cultivadas nos tubos de ensaio da casa de cada um, todas fermentando o mau humor de uma vida suprimida à laives & mits. E agradeça quem, como eu, pode dar-se ao “luxo” do tele-trabalho. Logo, não seria oportuno pensarmos em quão chatos estamos sendo com nossos alunos? Chatos mesmo, malas, velhos azedos e turrões.

Por tudo isso, nesse eterno refletir-reinventar que é o magistério, lanço uma lista de perguntas, para as quais desconheço respostas prontas, à guisa de suscitar uma reflexão [A melhor é a última.]:

1) Será que todo aluno tem uma conexão suficientemente rápida para transmitir sua imagem na aula (será que todos podem pagar pelo super combo turbo master um zilhão de gigas por nanossegundo)?

2) Será que todo aluno tem um cenário bonito e adequado para expor? Estantes de livros, jardins verdejantes ou vistas para o mar.

3) Será que um adolescente (com todas suas angústias de juventude) não sente vergonha (por N motivos) de mostrar-se em vídeo para os colegas e professores?

4) Será que aquele jovem da câmera fechada não está vivendo um drama familiar com pais, amigos e entes queridos à morte num hospital, ou simplesmente abalado psicologicamente por um ano de pandemia?

5) Será que nossa aulinha preciosa não está um petardo de tédio?

6) Será que nossa lição maravilhosa não é maravilhosa só para alguns e para outros é fastidiosa e sem sentido? (Ver definição de “aula” no Abecedário Deleuze).

7) Será que eu REALMENTE preciso constranger meus alunos e gerar um mal estar pelo capricho de dar aula para uma plateia viva e ativa ? (Isso parece síndrome de prima dona).

8) Será que não é o momento de sermos um pouco compreensivos por estarmos vivendo o fim do mundo?

9) Será que aqueles que precisam desesperadamente de plateia não têm um gato ou um cachorro para lhe olhar enquanto expõe toda sua sapiência e graça? Dica: Há milhares de pets precisando de lar.

10) Será que estamos nos esforçando o suficiente para fazer uma aula na qual o aluno sinta-se convidado a participar e abrir a maldita câmera?

11) Será que não podemos aguentar mais um pouco nesta dureza, afinal em breve todos viraremos jacarés e poderemos voltar ao presencial?

12) Impor abertura de câmeras não soa algo fascista (lembrando R. Barthes, que nos ensina que o fascismo não cala, mas “obriga a falar”)?

13) Não parece uma linguagem violenta e burra essa de impor e exigir que as pessoas se deixem filmar como condição para atestar seu aprendizado?

14) Estamos todos tristes, cansados e magoados, quem sabe um pouco mais de flexibilidade não deixaria o ambiente menos estressante? (Um flagelo a menos para nos fazer sofrer.)

15) Qual é o estudo científico que comprova que alunos aprendem mais se estão com o diabo da câmera aberta?

Felizmente trabalho em lugares em que há esta compreensão e aceitação do momento do aluno, mas sei que muitos estão passando por situações diferentes e muitos colegas pensam como eu, ou estão com esta inquietação viva. Vamos pensar um pouco no quanto de amor é preciso para lecionar na pandemia. Vamos cuidar de nossos alunos, mais do que nos preocupar com caprichos e com a “transmissão de conteúdos” neste momento em que morremos a 3.000 por dia. Cumpre-nos redefinir nossas prioridades abrir as mentes, antes das câmeras. Finalmente, vamos tentar encher menos a paciência das pessoas e trazer mais leveza a esta vida dura, porque de psicopatas nos atormentando, já basta aquele que nem vou nomear.

Guy Barcellos

Professor de Biologia desde 2010

Doutor em Educação em Ciências e Matemática

[Em tempo, um adendo ao item 15: O aluno com a câmera aberta está prestando atenção? Ele aprende mais e melhor que aquele da câmera fechada? Ele não pode estar olhando para a tela com algo alheio a aula? - É tempo de repensar onipotências.

Em tempo 2: Faltou dizer que, se estivéssemos no presencial, estaríamos todos mascarados sem nos vermos os rostos.

 

Guy Barcellos

https://www.facebook.com/guy.barcellos 




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