Carta sobre o fracasso escolar
Carta pedagógica sobre o fracasso escolar perseguido e a prisionalização neoliberal da escola
Se antes a escola legitimava o sucesso individual como símbolo da eficiência do sistema, agora ela precisa legitimar o fracasso das massas como culpa individual
Colegas, companheiros de sala e de inquietação,
Certa tarde, exausto após mais um turno duplo de nove aulas consecutivas, fui atravessado por uma frase que, sem querer, quase verbalizei: “eu odeio esse aluno.” Não sei se disse. Talvez não tenha sido a primeira vez que essa perversidade enunciativa tenha governado a possibilidade do meu dizer. E ali estava eu, alguém que se pensa anarquista, crítico dos dispositivos de controle e da lógica carcerária da escola contemporânea, ressentindo não o sistema, mas o estudante. Um estudante de “baixa performance”, “desobediente”, “mal adaptado”, como dizem os relatórios psicopedagógicos e administrativos. Fiquei aterrorizado.
E esse espanto foi meu ponto de partida. Porque compreendi que o que me atravessava não era apenas o cansaço ou a irritação pessoal, era o efeito de um dispositivo maior. Era o que venho chamando de pedagogia do abatimento.
Vivemos uma escola que não apenas reproduz as desigualdades do capital, ela as naturaliza, as celebra como mérito, e as pune como fracasso pessoal. Se antes a escola era um dos palcos da promessa de mobilidade social, com todas as suas ilusões, hoje ela se tornou uma máquina de gestão do fracasso. Não há mais espaço para “subir na vida”. O “sonho americano” ruiu, chegou aos seu limite, a superexploração do trabalho na era digital já não permite histórias de sucesso. Há apenas espaço para não afundar, e para ser culpabilizado caso, ou melhor, quando isso aconteça.
A escola neoliberal contemporânea opera nessa lógica: ela produz espacialmente o fracasso. Os corredores da escola já não são corredores de saber (retiradas as lentes da idealização: nunca foram): são corredores de triagem. A sala de aula se converte em cela simbólica: grades invisíveis delimitam quem pertence e quem será descartado. As planilhas, avaliações e métricas são drones de vigilância.

Nesse sentido, diria que a escola neoliberal é a continuidade da prisão por outros meios. Como dizia Ivan Illich, em seu manifesto Sociedade sem Escola, a escolarização obrigatória é uma instituição totalizante: molda corpos, hierarquiza saberes, legitima desigualdades. Ela não educa: domestica. Illich nos adverte que a escola não é neutra, ela fabrica a aceitação da ordem vigente. E é precisamente isso que a teoria da escola capitalista, de Althusser, de Luiz Antônio Cunha, de Georges Snyders aos estudos mais recentes, nos ajuda a entender. A escola é um aparelho ideológico de Estado. Ela acontece desde o modo de produção capitalista, sendo, portanto, expressão das suas contradições. Opera na reprodução das condições ideológicas necessárias à continuidade da fabricação da socialidade mercantil. A escola ensina muito mais sobre hierarquia, obediência e disciplina do que sobre matemática ou literatura. Ela surge para treinar futuros trabalhadores a aceitar a lógica da empresa: ser avaliável, ser produtivo, ser descartável. Contudo, a escola neoliberal superou tal função.
E é por isso que o fracasso, hoje, é central.
Se antes a escola legitimava o sucesso individual como símbolo da eficiência do sistema, agora ela precisa legitimar o fracasso das massas como culpa individual. Essa é a lógica da governamentalidade neoliberal: faça de si uma empresa. Se fracassar, a falha é sua, não do sistema.
Por muito tempo, acreditamos que a indisciplina era em si uma ferramenta de resistência: que o corpo inquieto era corpo em revolta. Mas hoje percebo que isso também foi capturado. O capitalismo contemporâneo já não teme a desobediência, ele a domestica e a administra. A escola neoliberal, em seu cinismo estrutural, impõe uma arquitetura do fracasso: uma porrada de aulas diárias, imobilidade forçada, ausência de espaço lúdico e cultural, contenção dos corpos. Isso não é um erro, mas sim um dispositivo. Esse ambiente só pode gerar indisciplina, e é justamente essa indisciplina que será usada como prova moral da falência do estudante como gestor de si.
Se antes a escola ensinava a obedecer, hoje ela ensina a fracassar responsavelmente. A pedagogia do abatimento não busca a docilidade pura, mas a autoinculpação permanente. O estudante “indisciplinado” será exibido como exemplo do que não soube se gerir, alguém que falhou diante das demandas do empreendedorismo de si.
Por isso, nosso desafio é ainda maior. Não basta defender a indisciplina enquanto tal. Precisamos politizá-la novamente, arrancá-la do jogo que o sistema montou. Indisciplina que apenas performa a fragmentação e a exaustão reforçam a máquina; indisciplina que se sabe coletiva, crítica e organizada aponta para outra direção. Nos interessa uma desobediência insurgente, que não legitime o fracasso produzido, mas que exponha seu caráter estrutural e recuse a pedagogia da culpabilização. Este é, talvez, um dos nossos trabalhos mais difíceis hoje… reconstruir, junto aos estudantes, práticas de indisciplina que sirvam à luta e não à gestão neoliberal do fracasso.
Lá atrás, nos corredores de uma escola instalada no presídio, aprendi com dor o que Ruth Gilmore nos ensina: prisões não existem para “corrigir” indivíduos, mas para administrar populações, para gerir precariedades, para organizar a morte social. E agora, ironia brutal, vejo que a escola dita “livre” em que atuamos repete os mesmos dispositivos. Antes, a escola formava corpos para a fábrica. Hoje, forma para o desemprego e para a prisão. Antes, prometia o emprego disciplinado. Hoje, prepara para a instabilidade radical ou para a contenção carcerária.
O capital, hoje, não quer mais o corpo fabril, imóvel, repetidor do gesto fordista. Ele quer o corpo exausto, sempre em movimento, sempre plugado, sempre em dívida consigo mesmo. É esse corpo que vejo nos pais de meus alunos, e às vezes neles próprios: trabalham mais de 12 horas por dia; nunca separam trabalho e descanso; saem do expediente formal para “fazer Uber, Ifood”; ao chegar em casa, tocam o pequeno empreendimento familiar até tarde da noite; às cinco horas da manhã, já estão ligando o aplicativo em busca da próxima corrida, enquanto se deslocam para seus trabalhos formais (para aqueles que tem a “sorte” de serem CLT).
Esse é o corpo neoliberal: não um corpo disciplinado, mas um corpo permanentemente exaurido, um corpo que nunca se permite parar, sob pena de fracasso pessoal. E a escola, contraditoriamente, lhes impõe a imobilidade. Nove aulas seguidas, em salas lotadas, sem ar-condicionado. Refeitório improvisado, quadra restrita, espaços verdes interditados. Nos intervalos, são confinados aos corredores e pátios cobertos, como nas prisões.
O corpo que o capital quer hoje é inquieto e exausto e a escola impõe a contenção e o silêncio. Resultado: adoecimento psíquico generalizado. E aqui se fecha o círculo da pedagogia do abatimento. Quando o sujeito adoece, ansiedade, depressão, burnout, o sistema diz: “é fraco, não soube gerir suas emoções”. Não há palavra sobre a exploração estrutural, sobre a lógica do extermínio lento.
Em 2022, tive a oportunidade de visitar uma comunidade zapatista em um caracol, em Chiapas, no México. Ali vi uma experiência radical. Uma sociedade que aboliu a prisão e a escola, mas não a educação, nem a condição de vida social harmoniosa (já que é isso que a prisão vende como forma de justificar sua necessidade). Sem prisões e sem escolas formalizadas, vi crianças, jovens e adultos profundamente envolvidos em processos de aprendizagem real. Em assembleias, em práticas coletivas, em rodas de estudo, em momentos de cuidado comunitário. Foi ali que compreendi com mais força o que Illich já dizia, escola não é sinônimo de educação. Ao contrário, muitas vezes, quanto mais escola, menos educação real. Quanto mais prisões, menos harmonia social. A experiência zapatista não nega a educação, ela a restitui ao tecido social, descolonizada dos aparelhos de Estado. Essa visita me deixou com um dilema profundo: como conciliar essa visão com o cotidiano das escolas em que atuo?
E então me vejo, logo eu, anarquista, elogiando a obediência, punindo a desobediência, ressentindo quem não “entrega resultados”. Esse é o grau de captura a que chegamos. Mas aqui também reside uma contradição.
Talvez o que mais me espante, ao refletir sobre tudo isso, é lembrar da minha própria experiência como professor em uma escola prisional. Lá, por mais que o aparato repressivo do Estado estivesse claramente presente dentro do pedagógico, havia, paradoxalmente, mais espaço para trabalhar as contradições da imobilidade e da indisciplina. Eu conseguia, por exemplo, permitir que minhas alunas dormissem quando estivessem cansadas, que jogassem dominó ou uno, que mobilizassem seus corpos e afetos de forma coletiva, e isso sem necessidade de uma justificativa pedagógica forçada. Era um pequeno espaço de humanização, mesmo dentro da brutalidade do contexto carcerário. Já na escola prisionalizada neoliberal em que atuo hoje, essas brechas se fecham. Tudo deve estar atrelado a uma performance de conteúdo, mesmo quando sabemos que o estudante já não copia nada (e ainda somos levados ao saudosismo da mecanização do ensino: pelo menos copiavam… credo!!!), que está exausto, que a imobilidade imposta só aprofunda seu fracasso. Ainda paira a crença, ou a farsa, de que devemos “encher o quadro”, cumprir as horas, manter a aparência de uma normalidade pedagógica que só serve para mascarar o esgotamento de todos.
A escola é, sim, um espaço de reprodução do capital e da luta de classes, mas é também um espaço potencial de resistência. Como Gramsci nos lembrava, as superestruturas são campos de disputa. Há brechas, há contradições, há momentos em que podemos subverter o script. A escola pode sim, ser disputada, ser transmutada, vez ou outra, em espaço de educação real.
Por isso escrevo esta carta. Para confessar minha perplexidade, mas também para reafirmar um compromisso.
Não quero ser operador do Estado-drone.
Não quero ser gestor da pedagogia do abatimento.
Não quero converter a escola em mera antessala da prisão ou do subemprego.
Quero, nas frestas, cultivar práticas abolicionistas também na escola.
E me recuso, também, a ideia romantizada que circula por aí de que a educação “tem que ser chata”. Não, a educação que se faz chata como princípio é já uma educação que se alinha à pedagogia do abatimento. Já não é educação. É mais escola, e como sabemos, apenas um dispositivo de reprodução da ideologia burguesa.
Se Gilmore nos ensina que o abolicionismo não é apenas fechar prisões, mas abolir as condições que tornam as prisões possíveis, talvez devamos também abolir as condições que tornam a escola um espaço de punição e fracasso, ou ainda, que tornam a escola, no imaginário social e na imaginação política, a possibilidade única da educação.
Isso passa por resistir, no cotidiano, aos discursos da gestão, aos manuais de controle emocional, aos roteiros de “alta performance”. A educação verdadeira não cabe em instituições fechadas. Por isso, então, nosso desafio seja abrir frestas, abrir os muros, abrir as janelas… até onde pudermos. E sobretudo, resistir à captura dos nossos próprios afetos.
Hoje, vejo que é preciso assumir um horizonte abolicionista também na escola. Isso começa, por resistir no cotidiano. Isto é, recusar a lógica da imobilidade; abrir espaços de movimento, de criação, de jogo; proteger os vínculos afetivos contra a captura neoliberal; questionar a pedagogia da autoexploração; sustentar, contra a máquina, a ideia de que ninguém é fracassado, que o fracasso foi produzido.
Quando me flagrei odiando o estudante desobediente, entendi o grau de captura a que cheguei. Mas também entendi que é possível recusar esse ódio. É possível amar a desobediência. É possível proteger aqueles que ainda se recusam a ser plenamente governáveis. Porque quando começamos a odiar o oprimido, que também somos, já estamos prontos para ser carcereiros…
E isso, companheiros, é um papel que me recuso a desempenhar.
E agora posso mais tranquilamente expressar: não odeio o estudante, odeio a escola, odeio a escola capitalista, sua lógica de naturalização da exploração, sua natureza classista, sua gestão do fracasso, sua forma de preparar nossos jovens para o subemprego, para o desemprego, para as prisões, para o trabalho servil em plataformas de aplicativo, odeio a escola neoliberal prisionalizada, uberizada…
Com a desesperança combativa daqueles que não depositam sua fé em sistemas formais de educação,
Rick Afonso-Rocha é doutor em Letras: Linguagens e Representações (UESC), professor da rede pública de educação do Estado de Pernambuco, advogado, anarquista e pesquisador independente.
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