Celular: proibir ou limitar?
Celulares nas escolas: proibir ou limitar?
Uso limitado de telas pode ser ponto de partida para repensar a educação digital entre os estudantes, mais interação com a natureza e o livre brincar
Carla BittencourtPublicado em 16.10.2024
Resumo
Projeto de lei deve prever restrições do uso de celulares nas escolas públicas e particulares do país. Em meio ao debate, estudantes, educadores e sociedade contam como é possível equilibrar a tecnologia aliada às atividades pedagógicas.
“Com o celular na mochila, fica todo mundo ansioso, querendo saber o que está acontecendo ou se alguém mandou mensagem”, diz Maria Eloísa, 16. Aluna da Escola de Referencia em Ensino Médio Frei Orlando, em Itambé (PE), ela conta que as turmas já conversam sobre os limites do uso de celulares em sala e opina que “proibir não é desnecessário, mas exagerado”, diz. “Aqui na escola, a gente não fala em proibição, e sim em regulamentação. Ou seja, tem regras para seguir”.
Lá, as salas de aula possuem caixas próprias para os alunos guardarem seus celulares, mas a regra fica a critério de cada professor. Apesar de concordar com o limite para evitar as distrações, Maria Eloísa argumenta que o aparelho às vezes é necessário. “Eu critico a proibição porque usamos o celular também para fazer trabalhos incríveis”.
Atualmente, esse debate mobiliza escolas, famílias, poder público e sociedade civil em todo o país. No mês passado, o governo federal anunciou a produção de um projeto de lei com restrições do uso de celulares em escolas públicas e privadas. A proposta é do Ministério da Educação (MEC) e ainda será apresentada para análise na Câmara e no Senado. As comissões devem aprofundar questões vividas em ambiente escolar e doméstico, dentre elas, o uso excessivo e antecipado de telas, o acesso a conteúdos impróprios, cyberbullying, vício em jogos e bets, além da distração e da falta de interação.
O projeto chegará ao parlamento em um contexto de preocupação sobre a exposição cada vez mais precoce de crianças aos eletrônicos. Conforme a pesquisa “O que a população brasileira pensa sobre a proteção de crianças e adolescentes na internet?”, do Instituto Alana, encomendada ao Datafolha, 75% dos entrevistados concordam que crianças e adolescentes passam muito tempo na internet e nas redes sociais. Além disso, oito em cada dez brasileiros (78%) acreditam que a lei nacional protege menos os pequenos cidadãos do que em outros países. O estudo traz a percepção da população brasileira sobre os impactos da internet para crianças e adolescentes e indica, nesse sentido, a necessidade de uma legislação específica sobre o tema. Para o Instituto Alana, “é preciso proteger na internet e não da internet”.
“Em tempo de saturação de telas no cotidiano das crianças, discutimos essa restrição como pausa para que as escolas possam ampliar o repertório com múltiplas linguagens a partir do digital, para além dos aparelhos celulares.”
A pesquisa em números:
- 93% das pessoas concordam que as crianças e adolescentes estão ficando viciadas em redes sociais
- 86% concordam que os conteúdos mais acessados por crianças e adolescentes nas redes sociais não são adequados para a idade
- 84% afirmam que as plataformas das redes sociais não apoiam as famílias adequadamente para acompanharem o que as crianças e os adolescentes consomem
- 92% dizem que é muito difícil para crianças e adolescentes se defenderem sozinhos de violências e de conteúdos inadequados nas redes sociais
- 87% concordam que a exibição de propagandas e comerciais para crianças e adolescentes nas redes sociais incentiva o consumo em excesso
Fonte: Instituto Alana/Datafolha
“O problema não é o celular, mas o uso dele”
Para Manoel Félix, gestor da escola Frei Orlando, “o uso excessivo de celular e outros dispositivos digitais prejudica o rendimento dos alunos”. Como justificativa, ele cita os índices do Programa Internacional de Avaliação dos Estudantes (Pisa) de 2022, que apontaram que quanto mais horas em telas, pior o desempenho dos alunos. Isso porque houve uma diferença de 49 pontos entre os adolescentes que usam o celular por até uma hora por dia e os que ficam conectados por até sete horas.
“O Pisa também colocou o Brasil entre os últimos em criatividade. Embora isso não seja apenas culpa do celular, ele contribui para que os alunos busquem respostas prontas, até com a ajuda da inteligência artificial, sem desenvolver repertório para argumentar ou construir textos”, destaca Félix.
O gestor espera que, a partir do projeto de lei, a sociedade participe do debate, conforme aconteceu na construção da regulamentação para a Frei Orlando. O resultado partiu de uma escuta atenta dos estudantes e das famílias, garantindo a participação de todos. “Não adianta ter restrição na escola e o pai ou a mãe entregarem o telefone sem limites, assim como não dá para ter uma regra mais firme em casa e o professor desconsiderar isso”, explica Félix.
Representante da turma, a estudante Maria Eloísa, 16, acha que estabelecer regras funciona melhor do que proibir. “Também usamos o celular para fazer trabalhos incríveis".
Nesse sentido, a escola tenta equilibrar o uso do celular e o momento de desativá-lo. Isso porque, a partir de uma experiência bem sucedida, o vice-gestor, professor Jayse Ferreira, entendeu que proibir a tela teria menos efeito do que usá-la de forma pedagógica. Em 2017, ao se sentir desafiado pela pergunta de um aluno, que o questionou “por que a escola nunca trabalha o que a gente gosta?”, criou o projeto “Vamos encurtar essa história?”. Os estudantes, então, produziram curtas-metragens com smartphones, usando recursos básicos de filmagem e edição, e os filmes foram exibidos na praça principal da cidade.
Essa experiência levou o professor a ficar entre os 50 melhores do mundo, segundo o Global Teacher Prize, comparado ao prêmio Nobel da Educação, e a defender que “apenas proibir [o uso de celulares] não funciona”. Para ele, a educação na rede pública aliada à tecnologia é desafiadora, mas não limitante. Além disso, é preciso considerar cada realidade para entender o que é melhor para os estudantes. “Temos uma biblioteca que já está antiga, por isso, o que garante a leitura é uma plataforma virtual. Também temos alunos com Transtorno do Espectro Autista, que precisam do celular para se comunicar”, conta.
Diante desse cenário, Manoel Félix confirma que “o assunto é complexo e a responsabilidade é de todos: estudantes, escolas, famílias, governo e empresas de tecnologia”, diz o gestor.
“Evitar o celular não significa excluir a tecnologia das escolas”
Segundo Rodrigo Nejm, especialista em educação digital do Instituto Alana, famílias e escolas não podem dar conta da tarefa de mediação e proteção nos ambientes digitais sozinhas. “As empresas de tecnologia devem assumir sua responsabilidade nesse processo“, defende. Ele também sugere que os próximos passos para a aprovação da lei tenham indicadores e processos de avaliação com o apoio das secretarias de educação. Além disso, é importante considerar o contexto de cada escola, especialmente as que enfrentam vulnerabilidade e violência.
A conversa, para Nejm, vai além do uso pessoal dos alunos porque, segundo ele, os eletrônicos se tornaram mais prejudiciais do que educativos. “Isso tem provocado distração em sala de aula e, na maior parte do tempo, os estudantes estão em redes sociais, aplicativos de mensagens e sites de entretenimento. Um uso passivo, pouco crítico e não vinculado ao processo pedagógico”.
O especialista explica que “evitar o celular não significa excluir a tecnologia das escolas”, mas o importante é “colocar a experiência digital como objeto de estudo e de reflexão”, diz. Para isso, Nejm indica dispositivos mais coletivos e, de preferência, que possam explorar outras linguagens em atividades pedagógicas criativas. Assim, defende que é possível trabalhar o assunto em sala de aula, mesmo que de forma desplugada. É o caso do Colégio Medianeira, em Curitiba (PR), onde os alunos aprenderam sobre a história da internet com atividades totalmente analógicas.
A proposta foi investigar como as tecnologias impactam a vida dos adolescentes. Para isso, os alunos trocaram cartas com pessoas de outras gerações, que contaram como se comunicavam quando não existiam smartphones. Eles também tiveram uma aula de campo, no Parque Barigui, com um dia inteiro em contato com a natureza e sem telas, como faziam seus pais e avós.
“Já nos primeiros minutos, as turmas entregaram os celulares e saíram da escola para uma agenda alternativa”, lembra a professora Suzana Kawai. Teve quem pensou em deixar um celular velho e levar o novo escondido, mas desistiu. Ainda no ônibus, veio a dúvida: O que fazer quando não dá para ver mensagens, passar tempo com joguinhos ou saber quais são os virais e memes do momento?
Maria Catarina, 14, aproveitou para conversar. “Eu já uso o celular de forma bem restrita, assim, acabei falando mais com umas meninas que estavam ao meu lado, dormi um pouco e escrevi”, lembra. O mesmo aconteceu com Caroline, 13. “Sem o celular, tivemos a oportunidade de conhecer e de ficar amigos de muita gente”, conta.
Os estudantes fizeram trilha ecológica, oficina de pilates e lanche coletivo, enquanto os smartphones permaneciam na escola. Luiza Ueno, 14, prestou atenção às flores e passarinhos daquela região de Mata Atlântica, de um jeito que dava para esquecer que ali era tão perto da confusão urbana. “Eram tantas coisas bonitas e legais para fazer que foi mais fácil do que a gente pensava”, conta. Ao final, quase todos afirmaram que nem viram o tempo passar.
“Estar na natureza ensinou muito, especialmente para quem tem o hábito de buscar todas as respostas na internet.”
“Banir o smartphone é varrer a poeira para debaixo do tapete”
De acordo com a pesquisa TIC Educação 2023, seis em cada 10 escolas no país têm regras sobre quando e onde os celulares podem ser acessados pelos estudantes. As restrições também já estão presentes em leis municipais e estaduais pelo Brasil, como na cidade do Rio de Janeiro (RJ), que proíbe os telefones nas aulas, mas permite para fins didáticos. “Essa exceção é justamente o que nos interessa”, observa Bruno Ferreira, coordenador pedagógico do Instituto Palavra Aberta, organização que atua pela promoção de liberdades democráticas, como expressão, imprensa, educação e cultura. “Os professores do Rio dizem que, apesar dessa intencionalidade pedagógica, quando os alunos usam o próprio celular, acabam se dispersando”, conta.
Para o especialista, é preciso considerar a diversidade entre as redes escolares, a forma de cada uma promover a inclusão digital e a educação midiática com o uso de telas. Plataformizar ou gamificar o ensino também entram nessa conta, porém, com resultados mais difíceis para as escolas públicas. Ferreira explica que a regra única não vai funcionar para todas as instituições, mas é importante que as escolas garantam recursos para pesquisa e criação de conteúdo em educação digital.
“O celular pessoal do estudante não deve ser item do material didático. Isso pode acabar virando um elemento de exclusão, porque uns vão ter e outros não. O ideal é trabalhar em uma ferramenta neutra, que pertença à escola.”
Desse modo, “restringir o uso é uma solução melhor do que proibir”. O coordenador acredita que, ao estabelecer condições, a escola fortalece a construção da autonomia do estudante para um uso crítico e saudável desse dispositivo. “Ao banir o celular, estamos varrendo a poeira para debaixo do tapete. Não dá simplesmente para ignorar a complexidade desse uso. O ambiente escolar é o lugar para refletir até mesmo sobre as ambivalências que envolvem as tecnologias”.
Outro desafio é garantir a formação de professores para a cultura digital, ação que o Educa Mídia e o Instituto Palavra Aberta fazem em parceria com diversas redes pelo país. A educação midiática, aliás, é algo que deve começar desde a primeira infância, afirma Ferreira. “Se é possível falar de matemática e de língua portuguesa, por que não das mídias?”, questiona. “Mesmo crianças bem pequenas, que ainda não estão alfabetizadas, podem analisar capas de livros ou recontá-los. Isso ajuda a aprender a diferenciar histórias verdadeiras e falsas. Assim, a semente da educação midiática estará plantada“.
Em vez de proibir, que tal conversar?
Em Salvador (BA), na Escola Municipal Carlos Murion, que está entre as dez com os maiores indicadores do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) do estado, a orientação é evitar o celular durante as aulas, mas a comunidade não descarta outras tecnologias porque os estudantes já têm a educação digital no currículo.
Aluna da instituição, Alice, 10, explica que quando precisa dar conta de alguma atividade online, utiliza as ferramentas da escola. A menina já tem um celular próprio mas conta que vai esperar a adolescência para entrar nas redes sociais e pensa em fazer vídeos comentando livros. “Acho que vou seguir pessoas que falem de balé e que tragam conteúdos úteis”, diz. Durante o recreio, a maioria dos colegas usa o celular para acessar vídeos e jogos, porém, Alice diz que não se incomoda em ser uma das poucas crianças sem um smartphone naquele horário, já que prefere seus objetos analógicos. “Eu leio muito! Desde pequena, minha mãe me fez gostar dos livros, que também me ajudam com a produção de textos. De tanto ler, eu tenho mais ideias e todo dia escrevo em meu diário”, conta.
Alice não utiliza seu celular como os colegas porque, em diálogo com a mãe, Lilian do Nascimento, o presente que ganhou de aniversário veio com alguns combinados. “Só pode usar 20 minutos por dia sem acessar redes sociais; apenas a família e a professora de balé estão cadastradas no WhatsApp e o aparelho não vai para a aula”, conta Lilian, que é auxiliar de desenvolvimento infantil na mesma escola.
As duas sempre conversam sobre o assunto e, para elas, essa proximidade fortalece a cumplicidade e faz Alice compreender melhor os limites do uso do celular. “Sempre conversei com ela que o celular mais atrapalha do que ajuda, porque prejudica a concentração”.
Na escola, a diretora Tatiane Salvador explica que a ideia é incentivar o contato com os eletrônicos aliados às atividades pedagógicas. Por isso, as crianças podem acessar, em notebooks e tablets disponibilizados pela secretaria de educação, as plataformas da rede municipal de ensino. Mesmo com dificuldades básicas de conexão à internet, a diretora afirma que “a relação entre educação e tecnologias próprias melhora o desenvolvimento dos alunos”. Para ela, “a política de não proibir, mas orientar, também dá bons resultados”.
Saiba quais lugares já possuem leis sobre o uso de celulares nas escolas:
- Amazonas
É proibido o uso de celular nas salas de aula de todas as escolas públicas e privadas do estado, exceto nas áreas comuns.
- Ceará
Celulares e aparelhos similares não podem ser usados durante as aulas em todas as escolas do estado.
- Paraná
Tem exceção de uso de eletrônicos em sala de aula apenas para atividades pedagógicas, com supervisão de um professor.
- Pernambuco
Escolas públicas e privadas do estado não permitem o uso de celulares em salas de aula, a menos que haja autorização prévia para fins pedagógicos. Os aparelhos só podem ser usados em outros espaços, como bibliotecas, se estiverem no modo silencioso ou para ajudar nas aulas.
- Rio de Janeiro
A lei estadual proíbe celulares, videogames, fones de ouvido, agendas eletrônicas e câmeras em todas as escolas, exceto com autorização para uso pedagógico. Em decreto mais recente, os aparelhos são liberados para alunos com deficiência ou condições de saúde que demandem o uso. Além de casos de emergência na cidade (temporais, incidentes de trânsito ou segurança pública).
- Rio Grande do Norte
Celulares são proibidos na sala de aula de todo o estado com uso permitido para fins pedagógicos, com a supervisão de um professor.
- Rio Grande do Sul
O uso de celulares é liberado apenas para atividades pedagógicas, com supervisão do professor.
- São Luís
O município proíbe celulares e outros eletrônicos que fazem barulho e atrapalham as aulas.
- São Paulo
Proíbe o uso de celular em todas as escolas do estado durante as aulas.
- Tocantins
Nas escolas públicas, os celulares devem ficar desligados durante as aulas.
FONTE:
O Instituto Alana sugere as seguintes restrições para os diferentes níveis de ensino: