Cem anos de Paulo Freire
Cem anos de Paulo Freire: sua vida na nossa vida
Artigo de Jaqueline Moll
O ano era 1997 e eu fazia parte dos estudos de Doutorado na Universidade de Barcelona. Tomei um trem para conhecer um pouco da costa francesa pois era um feriado-puente, como chamavam. Caminhava pelo calçadão na cidade litorânea de Nice. Não era um tempo de facilidades de comunicação. Cartas ou mensagens por email, estas só no computador do laboratório de pesquisas na Universidade. Então, me deparei com a notícia da morte de Paulo Freire em uma banca de jornal, com uma chamada que dizia mais ou menos isso “morre o educador brasileiro, um Pestalozzi dos trópicos”.
Imensa tristeza misturou-se a memórias afetivas que traziam recordações desde os primeiros contatos com sua obra, imortalizada pelo compromisso com os oprimidos do mundo, expressa na construção de generosas e qualificadas reflexões em inúmeros livros e em experiências de alfabetização de adultos, cuja proposta da leitura da palavra vinha entretecida a leitura do mundo.
Me tornei professora quando o Brasil vivia a triste noite da ditadura militar, instalada em 31 de março de 1964, que durou 21 anos, período de uma absurda diáspora que exilou e exterminou pensadores, trabalhadores e estudantes que pensavam e desejavam um país mais justo e humanizado.
A Escola Normal e o curso de Pedagogia, cursados entre 1980 e 1986, traziam informações gerais sobre Paulo Freire, em um contexto no qual ainda se construía a compreensão sobre seu trabalho e sobre o enredo histórico que levou a sua prisão e sua saída do país.
Sergio Haddad, resume de modo assertivo o cerne deste enredo:
“Os militares que assumiram o poder viram no Método Paulo Freire um potencial explosivo capaz de desestabilizar o equilíbrio da tradicional política brasileira dominada por suas elites. Ao planejar alfabetizar 1,8 milhões de pessoas em 1964, o Programa Nacional de Alfabetização faria com que muitos dos currais eleitorais fossem desmontados pelo voto consciente destes novos eleitores. É preciso lembrar que naquela época pessoas que não sabiam ler nem escrever não podiam votar. Eram 15,9 milhões de jovens e adultos em 1960, 39,6% da população nessa faixa etária.” (Haddad, 2021)
Estão criando cascavéis nestes sertões foi o dizer do general que acompanhou o Presidente Jango na formatura dos alfabetizandos de Angicos, em 1963, referindo-se ao processo de alfabetização, que ía muito além do ivo viu a uva e construía consciência sobre as condições miseráveis em que viviam.
Tal perspectiva política e pedagógica era, e continua sendo, uma ameaça para a organização de uma sociedade construída sobre a escravidão, a exploração, o silenciamento, a opressão e todos os tipos de violência, justificadas pela manutenção dos lugares sociais e pela concentração das riquezas.
A obra educacional de Angicos torna Paulo Freire conhecido nacionalmente e sua ida para o Ministério da Educação, com a tarefa de coordenar uma grande Campanha Nacional de Educação de Adultos, foi contextualizada pelas intensas lutas em defesa do alargamento do direito a educação e da escola pública, em oposição a perspectiva privatizante e elitista que persiste há séculos no Brasil, lutas consagradas desde o Manifesto dos Pioneiros da Educação de 1932.
Em uma país de breves e entrecortados intervalos democráticos e de baixa densidade social das instituições republicanas, o labor destemido de homens e mulheres, em diferentes organizações, comprometidos com a ideia de um país para todos, ao longo dos séculos XX e XXI, foi possibilitando as poucas oportunidades que tivemos de fazer diferença nas políticas públicas educacionais.
No intervalo democrático, que durou do fim do estado novo até a instalação da ditadura militar em 1964, importantes vozes e movimentos, que pretendiam reformas estruturais para construir a nação que nunca fomos, escreveram as cenas históricas que, mais uma vez, desafiaram os que sempre se consideraram donos do Brasil.
Neste contexto histórico emergiu a força do pensamento de Paulo Freire, enraizado nas contingências reais de um país estrutural e abissalmente desigual. Sua tese de concurso para ingresso na Escola de Belas Artes da Universidade de Pernambuco em 1959, dialogava com o pensamento de Anísio Teixeira a quem citava literalmente e chamava de “mestre”, demonstrando a afinidade de perspectivas com outros intelectuais que lutavam por uma educação pública, universal e de qualidade:
“A essa escola verbalista, propedêutica, antidemocrática, por isso mesmo cada vez mais superposta à sua comunidade, oponhamos uma outra escola. [...] centrada na comunidade e formadora de hábitos, “deverá, assim, organizar-se para dar ao aluno, nos quatro anos de seu curso atual e nos seis a que se deve estender”, diz Anísio Teixeira, “uma educação ambiciosamente integrada e integradora”. Para tanto, continua o mestre brasileiro, precisa, primeiro, de tempo: tempo para se fazer uma escola de formação de hábitos (e não de adestramento para passar em exames) e de hábitos de vida, de comportamento, de trabalho e de julgamento moral e intelectual.”
Os ideais e as ideias de universalidade, obrigatoriedade, gratuidade, laicidade presentes no Manifesto de 1932, são retomados no Manifesto dos Educadores, de 1959 - “Mais uma vez convocados” - que constitui os fundamentos tanto para a primeira Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (1961), quanto para o primeiro Plano Nacional de Educação (1962) que dispôs, entre vários outros temas, sobre a tarefa governamental de alfabetizar jovens e adultos do país, excluídos da vida escolar na infância.
Um trecho inicial desse Manifesto explicita, com força, sua perspectiva:
Precisamos convencer-nos, uma vez por todas, que o futuro do Brasil não está na sombra dos conluios, nem no tumulto das assembleias, mas no milagre eterno da sua juventude, nas mãos dos nossos filhos. Ele brilha, sobretudo, na profundeza de sua alma, na claridade de seu espírito, no ímpeto de seu idealismo, na chama do seu olhar, a aurora dos tempos modernos. (Manifesto de 1959)
O golpe militar de 1964 determina a curta passagem de Paulo Freire pelo então Ministério da Educação e Cultura, seguida de sua prisão nos primeiros meses da ditadura e imediato exílio, explicitando a oposição ferrenha das elites nacionais, aliadas e subservientes ao capital internacional e apoiadas pelos militares, em relação a superação da exclusão social. As estruturas de dominação e de concentração de riquezas dependem da manutenção da ignorância da população. Sob o discurso de combate ao comunismo o poder instalado em 1964 sacrificou, uma vez mais, a perspectiva de construção de um país autônomo e altivo que valoriza e investe na sua população.
A convite da Universidade Federal do Rio Grande do Norte estive, no ano de 2018, na região de Angicos que viveu a experiência inspirada na liderança do prefeito de Natal, Djalma Maranhão, que nos anos 60, incentivou que mulheres e homens, jovens e adultos, até então excluídos das oportunidades educativas, aprendessem a ler e a escrever a palavra, lendo e escrevendo o mundo ao seu redor.
Estas camponesas e estes camponeses, hoje na faixa de 70-80 anos, testemunharam a potência de práticas educativas emancipatórias, construídas através do diálogo e da leitura da realidade, conduzidas pedagogicamente por educadores comprometidos com o aprendizado e com a vida dos estudantes, pensadas interdisciplinarmente e rompendo os limites impostos por uma visão de escola enclausurada sobre si mesma.
Esta potência, traduzida nos círculos de cultura, desencadeada pela força do pensamento pedagógico e político de Paulo Freire, bebeu na tradição das pedagogias humanistas que trouxeram para o centro da cena educacional os sujeitos com suas latências de vida, suas histórias, suas memórias e seus sonhos, secundando (mas não negando) conteúdos, competências ou parâmetros de avaliação, tão ao gosto das agências internacionais ou dos mercadores da educação, que revestem de modernidades as velhas fórmulas coloniais.
A vida de Paulo Freire em nossa vida animou, de modo efetivo, praticamente todos os projetos e políticas educacionais progressistas do intervalo democrático iniciado com a Constituição Cidadã de 1988 e interrompido em 2016 com o impedimento da Presidente democraticamente eleita: das experiências das políticas municipais e prefeituras progressistas como a escola cidadã de Porto Alegre, a escola plural de Belo Horizonte, a escola viva de Campinas, a escola candanga do Distrito Federal às experiências dos movimentos sociais urbanos e do campo às redes constituídas no país inteiro em torno do Movimento de Alfabetização (MOVA) e do Serviço de Educação de Jovens e Adultos (SEJA).
Em todas estas políticas públicas e experiências educativas, a perspectiva do diálogo e da gestão participativa, da pesquisa da realidade e sua compreensão para transformá-la, apresentaram-se como eixos organizadores da ação pedagógica compreendida, sempre, como uma ação política com potência de transformação dos contextos de opressão e de exclusão pela construção da autonomia intelectual e moral dos estudantes.
Mais recentemente, nos governos de Lula e Dilma, com importante representação popular, no contexto de políticas estruturantes das quais derivou o atual, e esquecido, Plano Nacional de Educação, aponto os programas Mais Educação, Educação de Jovens e Adultos integrado a Educação Profissional (PROEJA), Escola Aberta, Ensino Médio Inovador, Saúde na Escola, Mais Cultura, Pontos de Cultura entre outros, como ações governamentais inspiradas na perspectiva freireana e, portanto, ancorados na perspectiva da educação como processo de humanização e superação do forte dualismo ainda presente na educação brasileira.
Humanização no sentido eternizado pelo filósofo e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Ernani Maria Fiori, também expurgado pelo regime militar, no prefácio da Pedagogia do Oprimido: aprender no sentido de existenciar-se, biografar-se e historicizar-se, através de processos educativos dialógicos e potentes para que a vida não seja mera repetição de si mesma e possa haver futuro.
Apesar da inspiração de Freire em tantas e muitas obras por todo país e de sua presença em ações pontuais da educação pública nacional no período recente, no âmbito dos governos federal, estaduais e municipais, suas ideias não chegaram nunca a estruturar as políticas educacionais brasileiras e, mais especificamente, as políticas pedagógicas, com mudanças que permitissem superar mazelas históricas arraigadas nas estruturas do sistema educacional.
Sua vida e sua memória seguirão inspirando a luta de educadoras e educadores comprometidos com uma sociedade mais digna do que essa em que vivemos. Portanto as tentativas, uma vez mais, de exilar e silenciar seu legado e sua memória não terão êxito. Se a história se repete como tragédia e como farsa, haveremos de superar este hiato de atraso, que mais uma vez tenta impedir que sejamos o país igualitário e justo, que certamente seremos.
Paulo Freire vive!
(Jaqueline Moll, Pedagoga, Dra. em Educação, Professora Titular da Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Diretora do MEC 2005-2013 na implementação do Programa Mais Educação e PROEJA. Autora de várias obras no campo da educação)
Referências Bibliográficas
-FREIRE, Paulo. Educação e Realidade Brasileira. Tese para concurso na Universidade Federal de Pernambuco, Recife, 1959
-FREIRE, Paulo. Pedagogia do Oprimido, 3. Ed, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1983
-HADDAD, Sérgio. Paulo Freire – 100 anos. Revista Educação, ano 24, n. 274, 2021, pp.18-21
-Manifestos dos pioneiros da Educação Nova (1932) e dos educadores 1959 Fernando de Azevedo… [et al.]. – Recife: Fundação Joaquim Nabuco, Editora Massangana, 2010. (Coleção Educadores) I
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