Cem anos do facismo

Cem anos do facismo

CEM ANOS DE FASCISMO

Ao longo da história, políticos fascistas atraem o apoio de pessoas que, se questionadas, rejeitariam o rótulo de fascistas; elas só precisam ser persuadidas de que a democracia não mais atende seus interesses

Jason Stanley|22 nov 2022

Tradução: Caroline Chang

 

Quando os fascistas Camisas Negras marcharam pelas ruas de Roma ao final de outubro de 1922, seu líder, Benito Mussolini, acabava de tomar posse como primeiro-ministro. Embora os seguidores de Mussolini já houvessem se organizado em milícias e começado a aterrorizar o país, foi durante a marcha de 1922, escreve o historiador Robert O. Paxton, que eles “passaram de saquear e atear fogo em QGs locais socialistas, redações de jornais, agências de emprego e casas de líderes socialistas para a ocupação violenta de cidades inteiras, tudo sem enfrentar qualquer oposição do governo”.

A essa altura, Mussolini e seu Partido Fascista haviam sido normalizados, pois foram levados para o governo de centro-direita no ano anterior como um antídoto à esquerda. O governo estava em desordem, suas instituições, deslegitimadas, e os partidos esquerdistas brigavam entre si. E a violência fascista servira de combustível para a desordem que Mussolini, como um escroque, prometia resolver.

Embora Mussolini tenha presidido a primeira experiência do fascismo com um gostinho real de poder político, seu movimento não foi o primeiro do tipo. Para tal, é preciso antes olhar para os Estados Unidos. Como Paxton explica, “é possível que o primeiro fenômeno que pode ser funcionalmente relacionado ao fascismo seja americano: a Ku Klux Klan […] a primeira versão do Klan era, pode-se dizer, um preview digno de nota da maneira como os movimentos fascistas funcionariam na Europa do entreguerras”.

Nivelando por baixo

Por mais importante que sejam tais paralelos entre movimentos e organizações, é no nível da ideologia que se encontra o denominador comum compartilhado pelas variantes americana e europeia (sobretudo alemã) do fascismo. Em 1916, o eugenista americano Madison Grant publicou The Passing of the Great Race (A morte da raça grandiosa), que denunciava a suposta substituição de brancos nos Estados Unidos pelo povo negro e por imigrantes, incluindo “judeus poloneses”. De acordo com Grant, esses grupos representavam uma ameaça existencial à “raça nórdica” – o “povo nativo” dos Estados Unidos. 

Embora não fosse contra a presença de pessoas negras nos Estados Unidos, Grant insistia que elas deviam ser mantidas em situação de subordinação. Seu livro era um exercício de racismo científico, argumentando que “brancos nórdicos” seriam intelectual, cultural e moralmente superiores a todas as outras raças e que, portanto, deveriam ocupar uma posição dominante na sociedade. No âmago de sua visão de mundo estava uma versão racializada do nacionalismo americano: os brancos nórdicos eram os únicos americanos “de verdade”, mas estavam correndo risco de serem “substituídos” por outras raças.

Grant dialogava com uma corrente política poderosa no seu tempo. Nos anos seguintes, o movimento America First (algo como “Primeiro os Estados Unidos”) emergiria para combater o “internacionalismo” e a imigração. Conforme nota Sarah Churchwell, da Universidade de Londres, em seu brilhante livro de 2018, Behold, America: The Entangled History of “America First” and “the American Dream” (Cuidado, América: A história emaranhada do “America First” e do sonho americano), em fevereiro de 1921 o presidente americano Calvin Coolidge “escreveu um artigo para a revista Good Housekeeping chamado ‘Whose Country is this?’ (De quem é este país?)”. A resposta de Coolidge, conforme Churchwell relata, era inequívoca: “Nosso país precisa parar de ser visto como um depósito de lixo” e só deveria aceitar o “tipo certo de imigração”. Ele se referia explicitamente aos “nórdicos”.

Também foi em 1921, Churchwell observa, que a segunda Ku Klux Klan adotou “America First” como parte de seu credo oficial. Com seu compromisso fervoroso com a supremacia branca e papéis de gênero tradicionais, o segundo Klan concentrou esforços em espalhar paranoia sobre judeus marxistas e suas tentativas de usar sindicatos para promover a igualdade racial. Enquanto isso, o industrialista americano Henry Ford financiara a publicação e a distribuição de The International Jew (O judeu internacional), uma compilação de artigos que colocava os judeus no centro da conspiração global. Os judeus, Ford alegava, controlavam a mídia americana e suas instituições culturais, e estavam determinados a destruir a nação americana.

Encontra-se esse mesmo tipo de nacionalismo racializado ao longo de Mein Kampf (Minha luta), o manifesto que Hitler escreveu na prisão em 1924. Hitler estava com raiva da presença de estrangeiros, sobretudo judeus, em Viena, mas ele deixava claro que seu ódio não era pela religião judaica. Antes de chegar a Viena, Hitler escreveu, ele rejeitava o antissemitismo, porque via nisso uma forma de discriminação contra alemães tendo por base a religião.

Mas Hitler acabou por encarar os judeus como o inimigo máximo, retratando-os como membros de uma raça estrangeira que se assimilara na Alemanha com o objetivo de tomar conta do país. Isso, ele alegava, seria atingido por meio do afrouxamento das leis de imigração para “abrir as fronteiras”, incentivando o casamento interracial a fim de destruir a raça ariana, e por meio do controle da mídia e das indústrias culturais para se destruir os valores tradicionais alemães. De acordo com a propaganda nazista, os judeus eram a força por trás do comunismo internacional e a fonte da mítica “facada nas costas” que supostamente fizera a Alemanha perder a Primeira Guerra Mundial.

Hitler buscou inspiração nos Estados Unidos, que, seguindo a ascensão do movimento America First, adotara políticas imigratórias que favoreciam europeus do norte. Ao examinar os primeiros genocídios perpetrados pelos colonos americanos contra os povos originários do continente em nome do “Destino Manifesto”, ele encontrou um modelo para suas próprias ações posteriores em busca da Lebensraum (expansão territorial). E, conforme o historiador Timothy Snyder mostra em seu livro de 2015 Terra negra: O Holocausto como história e advertência, Hitler esperava conseguir recriar na Ucrânia o regime escravagista do Sul pré-Guerra Civil.

Descumprimento da lei

Ofato de que o racializado nativismo americano e o fascismo alemão constituíam práticas compartilhadas, e não apenas crenças compartilhadas, merece ser examinado com mais atenção. Conforme a teórica americana Kimberlé Crenshaw mostrou, práticas legais reforçaram historicamente e perpetuaram hierarquias injustas de valor de maneiras que muitas vezes passam despercebidas. Assim, o objetivo de leis antidiscriminação não é o de oferecer proteção especial para qualquer grupo específico – digamos, mulheres negras; em vez disso, o objetivo é assegurar que a lei não reproduza hierarquias de valor discriminatórias do ponto de vista social, político e histórico.

Esta é uma das sacadas principais da teoria crítica da raça (CRT), que evoluiu a partir do trabalho de Crenshaw, Derrick Bell e outros acadêmicos que exploraram de que forma práticas legais perpetuam a discriminação – às vezes como um efeito colateral de um raciocínio motivado por aqueles que estão no poder, às vezes como intenção explícita de uma política. E, como a CRT se tornou um dos instrumentos teóricos mais importantes na prática antifascista, é também o novo alvo da direita branca nacionalista.

CRT nos insta a reconhecer a lei como a manifestação cabal da ideologia política. No caso do fascismo, a ideia de cidadania se baseia na identidade racial, que por sua vez se baseia em um mito fundador de hierarquia e superioridade. Ao passo que uma concepção de identidade nacional com um fundo racial não era algo central para o fascismo italiano, foi a força motriz por trás do nazismo. Com as Leis de Nuremberg de 1935, o conceito de cidadania alemã passou a se basear na superioridade ariana. Apenas aqueles de “sangue alemão” poderiam ser cidadãos alemães com direitos políticos. Judeus, pelo defeito de serem não arianos, eram excluídos dessa cidadania e, portanto, privados de direitos políticos.

Não por coincidência, os negros americanos sofreram por muito tempo um tratamento similar no Sul do país pós-Guerra Civil. Conforme documenta James Q. Whitman da faculdade de direito de Yale em Hitler’s American Model: The United States and the Making of Nazi Race Law (O modelo americano de Hitler: Os Estados Unidos e a invenção da lei racista dos nazistas), a ideologia nazista bebeu diretamente no uso das práticas legais do regime Jim Crow a fim de estruturar a natureza da ideia de cidadania. Ao passo que a vitória aliada acabou por encerrar o fascismo racial alemão em 1945, o regime Jim Crow nos Estados Unidos sobreviveria por mais uma geração.

Os grandes guarda-chuvas fascistas

Para derrotar a Alemanha nazista, fora necessário que os Estados Unidos superassem domesticamente o poder do movimento isolacionista America First. As políticas draconianas de imigração inspiradas pelo movimento nos anos 1920 ainda estavam em vigor nos anos 1930, quando os Estados Unidos fecharam de forma infame as portas para muitos refugiados judeus que tentavam fugir da Europa antes do Holocausto.

Em um ensaio publicado em 1939 na Reader’s Digest intitulado “Aviation, Geography, and Race” (Aviação, geografia e raça), o principal porta-voz do America First, o aviador Charles Lindbergh, escreveu: “É hora de deixarmos de querelas e voltar a construir nossas muralhas brancas. A aliança com raças estrangeiras não significa nada senão morte para nós. É nossa vez de proteger nosso legado contra mongóis, persas e mouros, antes que sejamos engolfados em um imenso mar estrangeiro.” Lindbergh defendia neutralidade na guerra entre a Grã-Bretanha e a Alemanha, enxergando os dois países como aliados contra a imigração desabalada para a Europa e para os Estados Unidos por parte de povos não brancos.

Na Alemanha, fascistas haviam entrado para o governo como resultado de sua popularidade na política eleitoral – popularidade essa que cresceu rapidamente, começando em 1928. A economia alemã havia experimentado uma série de choques terríveis, da hiperinflação ao crescente desemprego. Os nazistas de Hitler, naturalmente, atribuíam a culpa por tais problemas aos judeus, ao comunismo e ao capitalismo internacional. Como os Camisas Negras de Mussolini, eles atacavam violentamente esquerdistas e abertamente provocavam confusão nas ruas – e então se apresentavam como a única força que poderia restaurar a ordem.

A ideologia nazista atraía um eleitorado variado. Com sua promessa de fortalecer a nação por meio da defesa de papéis de gênero tradicionais e da criação de grandes famílias arianas, seduzia conservadores religiosos. E, com sua hostilidade para com o comunismo e o socialismo, prometia proteger grandes empresas contra trabalhadores organizados. Os nazistas se opunham ao capitalismo apenas enquanto doutrina universal – isto é, como uma doutrina que dava aos judeus o direito à propriedade – e se apresentavam como protetores da propriedade privada ariana contra o “judeu-bolchevismo”.

No front cultural, cabe enfatizar que os partidos fascistas sempre foram defensores violentos de uma concepção de gênero estritamente binária. Nos anos 1920, Berlim era uma cidade culturalmente efervescente e centro da emergente vida gay europeia, que a ideologia nazista associava aos judeus. A cidade também era onde se localizava o Instituto de Estudos Sexuais de Magnus Hirschfeld, uma vasta biblioteca e arquivo que abrigavam uma ampla variedade de expressões de gênero. Quando os nazistas começaram a queimar livros, a biblioteca de Hirschfeld foi um dos primeiros alvos.

Não é nenhuma surpresa que os fascistas sempre tenham se aliado a religiosos conservadores. Enquanto que na Itália e na Alemanha o fascismo e o cristianismo forjaram uma aliança de conveniência, nos outros lugares eles praticamente se fundiram numa só ideologia. Na Romênia, por exemplo, a Legião de São Miguel Arcanjo foi o mais cristão e o mais violento dos partidos fascistas e antissemitas europeus.

No Brasil, uma forma de fascismo católica e integralista foi importada diretamente da Itália por Plínio Salgado. O papel do cristianismo também é óbvio na estrutura do fascismo russo hoje em ascensão. Os russos e a Rússia são retratados como os últimos bastiões a defender o cristianismo contra as forças pagãs do decadente liberalismo e da fluidez de gênero ocidentais. E, é claro, o cristianismo sempre animou o fascismo americano, com seu âmago ideológico de nacionalismo branco e cristão. 

Do golpe ao parlamento

Ao final dos anos 1920, os nazistas haviam conseguido atrair múltiplos grupos que não se viam como nazistas. E, devido à desconfiança generalizada suscitada por partidos políticos e instituições mainstream, eles se tornaram o segundo maior partido no parlamento depois da eleição de 1930 e, após a eleição de 1932, o partido líder.

Embora olhassem torto para os nazistas, os conservadores alemães viam Hitler como preferível a qualquer outra opção de esquerda. Assim, com o apoio do establishment conservador, Hitler foi nomeado chanceler pelo presidente da Alemanha, em 1933. Embora em seus discursos e escritos Hitler tivesse deixado abundantemente clara sua virulenta oposição à democracia, os conservadores alemães lhe entregaram o poder mesmo assim, demonstrando – na melhor das hipóteses – uma ingenuidade indesculpável.

Na verdade, todo e qualquer exemplo canônico de um sucesso fascista ocorrido na Europa no século XX envolveu partidos políticos que ascenderam ao poder por meio de um processo eleitoral normal, após ter expressado amplamente seus sentimentos antidemocráticos e às vezes até mesmo suas intenções expressas. Líderes conservadores e eleitores escolheram o fascismo em detrimento da democracia, acreditando que, no final das contas, sairiam ganhando.

Para vencer as eleições, partidos e políticos fascistas geralmente precisam atrair o apoio de pessoas que, se questionadas, rejeitariam em alto e bom som o rótulo de fascistas. Mas tal tarefa não é necessariamente difícil: os eleitores apenas precisam ser persuadidos de que a democracia não mais atende seus interesses.

O fascismo hoje

Se pensarmos no fascismo como um conjunto de práticas, fica imediatamente evidente que o fascismo ainda está entre nós. Conforme apontou Toni Morrison em um discurso de 1995, os Estados Unidos frequentemente preferiram soluções fascistas para seus problemas domésticos. Consideremos, por exemplo, os achados da Prison Policy Initiative sobre os índices de encarceramento global em 2021: “Não apenas os Estados Unidos têm o índice de encarceramento mais alto do mundo; todos os estados americanos encarceram, individualmente, mais pessoas per capita do que virtualmente qualquer democracia do planeta.”

Este é um fardo que recai de forma desproporcional sobre a população outrora escravizada do país. E, diferentemente do que ocorre em muitas outras democracias, prisioneiros de 48 estados americanos por lei não podem votar. Na Flórida, leis de privação de direitos tiraram de 1 milhão de pessoas – o suficiente para fazer o eleitorado do estado pender para o lado republicano – o direito de votar apenas por elas terem em suas fichas ocorrências policiais antigas. E, sob o atual governador republicano do estado, Ron DeSantis, uma força policial eleitoral foi criada para tratar de uma fraude eleitoral fictícia. No período que antecedeu as eleições de 2022 de meio de mandato, foram realizadas prisões amplamente divulgadas de pessoas negras fichadas na polícia que pensavam que podiam votar (e que, em alguns casos, haviam recebido do próprio estado orientações contraditórias sobre a questão).

Devemos reconhecer isso pelo o que é: o retorno das táticas Jim Crow pensadas para intimidar eleitores negros. Diferentemente do que ocorreu no Terceiro Reich, o regime Jim Crow nunca sofreu derrota ou eliminação via guerra. Em vez disso, suas práticas persistiram silenciosamente sob formas variadas, muitas vezes servindo como um modelo para leis como as citadas na Flórida. Na maioria dos casos, leis racistas são feitas de forma a parecerem racialmente neutras. Testes para verificar o nível de alfabetização de eleitores, por exemplo, são ostensivamente neutros, mas, de fato, são discriminatórios.

Essa tática tampouco se limita aos Estados Unidos. Na Índia, o partido nacionalista incumbente criou um registro nacional para codificar a situação legal dos cidadãos e expulsar “imigrantes ilegais”, cinicamente explorando o fato de que um número significativo de muçulmanos indianos não tem documentos oficiais. Nacionalistas hindus agora podem ter como alvo os muçulmanos indianos e ameaçar deportá-los para Bangladesh. Ao mesmo tempo, o Citizenship Amendment Act de 2019 dá a imigrantes não muçulmanos do Afeganistão, de Bangladesh e do Paquistão um caminho burocrático mais rápido para obter a cidadania.

A manipulação das leis de cidadania a fim de privilegiar um grupo como sendo os verdadeiros representantes da nação é uma característica de todos os movimentos fascistas. Como Tobias Hübinette, da Universidade de Karlstad, apontou, o partido de extrema direita da Suécia, os Democratas da Suécia, tem “uma linhagem organizacional ligada diretamente ao nazismo da época da Segunda Guerra Mundial”. Sua plataforma prega uma identidade nacional sueca racialmente homogênea, e seus candidatos “fizeram campanha pela instalação de um programa de repatriação com a proposta explícita de fazer com que imigrantes não ocidentais voltem para seus países de origem”. Na eleição de setembro de 2022, os Democratas Suecos se tornaram o segundo maior partido no parlamento – ecoando o feito do Partido Nazista em 1930.

Líderes da extrema direita em outros lugares da Europa também têm feito campanha contra a democracia multirracial, embora minorias muçulmanas tenham substituído, no papel de Quinta Coluna, a população judia massacrada na teoria da “grande substituição” dessas lideranças. Na Hungria, o primeiro-ministro Viktor Orbán usou as cortes de justiça e a lei para silenciar a mídia de oposição e vender uma nostalgia nacionalista-cristã por uma Hungria grandiosa e perdida. Estimulando medos suscitados por minorias sexuais e religiosas, ele mostrou como um líder pode vencer as eleições várias vezes ao mesmo tempo em que faz campanha contra a imprensa, universidades e a própria democracia.

Uma nova onda?

No século que se passou desde a marcha de Mussolini sobre Roma, líderes e partidos que concorrem abertamente com a democracia florescem de forma fácil demais nas eleições. No Brasil, o presidente Jair Bolsonaro advogou pela remoção das instituições democráticas e repetidamente elogiou a ditadura militar ocorrida no país. E, apesar de seu desastroso primeiro mandato, chegou ao segundo turno das eleições, no dia 30 de outubro. E nos Estados Unidos, o Partido Republicano se transformou em um culto à personalidade graças a um líder branco nacionalista que liderou o esforço – a maior parte do qual tramado publicamente – de derrubar a democracia americana.

Fascistas podem vencer quando os conservadores do ponto de vista social decidem que o fascismo é o mal menor. Podem vencer quando um número suficiente de cidadãos decide que pôr fim à democracia é um preço razoável a se pagar para se atingir algum objetivo desejado – como a criminalização do aborto. Podem vencer quando um bando escolhe pôr fim na democracia para preservar sua primazia cultural, financeira e política. Podem vencer quando atraem votos daqueles que apenas querem fazer cara feia para o sistema ou agir de forma agressiva em função de ressentimentos. E podem vencer quando as elites empresariais decidem que a democracia é apenas um acréscimo substituível.

Partidos fascistas alimentam um anseio nostálgico pela inocência nacional – razão pela qual utilizam narrativas de glória nacional para apagar crimes passados. Daí que alguns pais e mães apoiam partidos fascistas ao mesmo tempo em que veementemente rejeitam o rótulo de fascistas – a fim de evitar que seus filhos aprendam sobre os legados racistas que sustentam a permanência de resultados racistas.

Hoje, como no passado, os movimentos fascistas frequentemente têm uma dimensão simbólica poderosa que os torna internacionalmente contagiosos. Na figura de Giorgia Meloni, a Itália tem sua primeira líder de extrema direita desde Mussolini. Tendo por muito tempo promovido a admiração pelo legado de Mussolini e o ódio por imigrantes e minorias de gênero em sua busca por cargos dentro do partido e no governo, a ascensão de Meloni ao cargo de primeira-ministra é o símbolo potente de um fascismo global.

Finalmente, o mundo tem seu líder mais abertamente fascista desde Hitler na figura do presidente russo Vladimir Putin, que demonstrou por que nunca podemos nos tornar complacentes quanto a essa ideologia e suas implicações. A guerra genocida de Putin contra a Ucrânia mostra que ele não é um ator pragmático, e sim um fanático que busca recriar o império russo perdido. Ao reunir uma resistência tão eficaz, os ucranianos confirmaram a antiga verdade sugerida no famoso discurso fúnebre de Péricles: as democracias lutam melhor do que as tiranias porque cidadãos democráticos lutam por escolha própria.

Quando as instituições são deslegitimadas por atuarem diante de enormes disparidades econômicas, clientelismo e crises geracionais, a mudança social massiva se torna possível. Às vezes, essa mudança é positiva, como quando o movimento operário ajudou a estabelecer a ideia de final de semana, a melhorar a segurança no local de trabalho e a abolir o trabalho infantil. Mas tais movimentos são inerentemente perigosos. O fascismo é o lado sombrio da libertação, e a história mostra que frequentemente ele é a opção feita por sistemas políticos democráticos.

Texto originalmente publicado pelo Project Syndicate (2022) e cedido à piauí.

Jason Stanley

Professor de Filosofia na Yale University. Autor de How Fascism Works: The Politics of Us and Them (Random House, 2018).

 

https://piaui.folha.uol.com.br/cem-anos-de-fascismo/?utm_campaign=a_semana_na_piaui_137&utm_medium=email&utm_source=RD+Station 




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