Censura ao Diário de Anne Frank

Censura ao Diário de Anne Frank

Live debate censura ao Diário de Anne Frank em escolas

Casos em Porto Alegre e São Paulo levam mães, pais, escritores, editora, defensoria pública e ministério público a debater o discurso de ódio e a censura de livros em escolas

Por César Fraga / Publicado em 14 de julho de 2021

Foto: Reprodução/Editora Record/Divulgação

 

Nesta quinta-feira, 15 de julho, às 17 horas, uma live para leitura livre de O diário de Anne Frank em sua versão em quadrinhos está sendo promovida em contraponto à censura ao livro em escolas de Porto Alegre e São Paulo. O livro teria sido retirado da grade de livros adotados pelas escolas a partir de intervenção de pais de perfil conservador, que viram teor erótico na obra.

Quem promove a live é o Fórum de Combate à Intolerância e ao Discurso de Ódio, coordenado pela Defensoria Pública da União (DPU) e pela Associação Mães e Pais pela Democracia (AMPD).

A Leitura livre do Diário de Anne Frank em HQ contará com representantes da Editora Record, de autoridades, escritores e de mães, filhos e filhas, estudantes do 6⁰ ano do Colégio Marista Rosário, de Porto Alegre. A atividade tem apoio da AMPD, Coletivo Voz Materna e da Associação Nacional de História (ANPUH/RS). A live será transmitida pelo Facebook da AMPD.

Entenda o caso

Fragmento do livro O diário de Anne Frank em quadrinhos, de Anne Frank; adaptação de Ari Folman; ilustração de David Polonsky; tradução de Raquel Zampil

Fragmento do livro O diário de Anne Frank em quadrinhos, de Anne Frank; adaptação de Ari Folman; ilustração de David Polonsky; tradução de Raquel Zampil

Foto: Crédito: /Reprodução/Editora Record

A versão em quadrinhos do Diário de Anne Frank foi incluída na lista de leituras obrigatórias do trimestre aos alunos do sexto ano do colégio Marista Rosário, em Porto Alegre, fazendo parte da plataforma digital Árvore – Leitura transforma. De acordo com nota da AMPD, a equipe diretiva da escola (uma das maiores escolas privadas da capital gaúcha) recebeu críticas de algumas famílias que consideram a obra inadequada à faixa etária.

O motivo: o livro apresenta trechos supostamente eróticos e por isso removido da lista de leituras que seriam inicialmente trabalhadas em aula com os estudantes.

Conforme a AMPD, os pais foram informados sobre a alteração durante as reuniões de acompanhamento e avaliação realizadas em maio, ocasião em que muitas famílias manifestaram sua contrariedade à decisão de retirada do livro, até por já terem iniciado a leitura e, em alguns casos, adquirido o livro impresso. Além de, claro, apontarem preocupação com a interferência direta de algumas poucas famílias no plano de aula desenvolvido pelos professores e pela equipe pedagógica do colégio.

Situação semelhante ocorreu na escola Mobile, em São Paulo e a polêmica acabou repercutindo no Jornal Folha de São Paulo e na revista Veja, nas primeiras semanas de junho.

Os alunos do 6º ano do Marista Rosário, conforme os organizadores do evento, estão aprendendo sobre os diversos estilos literários sendo o HQ um dos formatos estudados. “A leitura de uma obra neste estilo, inspirada no livro escrito por uma jovem em situação de isolamento social, em consequência de intolerância extrema, seria uma oportunidade de desenvolvimento cultural que não poderia ter sido cerceada, sob o argumento de adequação etária que não se sustenta pela análise pedagógica da obra nem tem respaldo nas informações dadas pela editora do volume”, explica AMPD, em nota.

O caso foi apresentado em reunião do Fórum de Combate à Intolerância e ao Discurso de Ódio à Prociuradoria Regional dos Direitos do Cidadão, do Ministério Público Federal (PRDC/MPF), pelo Procurador Dr. Enrico Freitas, que sugeriu que fizéssemos um debate ampliado da obra com a leitura online.

Rita Becco, mãe de um aluno do 6º ano do Marista Rosário disse que a situação não foi um caso particular e sim uma restrição definida pela escola a partir da manifestação de algumas poucas famílias que consideram a obra O Diário de Anne Frank em HQ inadequada à faixa etária, por apresentar trechos supostamente eróticos.

“Como resultado o livro foi retirado da lista de leituras trabalhadas em sala de aula. Como mãe fiquei muito preocupada com a interferência direta de algumas famílias no plano de aula definido pelos professores e pelo corpo técnico do colégio. Em conversa com outras mães e pais tive certeza de que o pequeno grupo contrário à leitura de um clássico tão rico e pertinente ao momento que nossos filhos estão vivendo, não representa a comunidade escolar e que, portanto, o colégio teria agido de forma mais prudente se tivesse sustentado o plano de aula dos seus professores”, argumenta.

Para Rita, o papel da escola seria o de explicar aos reclamantes o quanto a leitura do Diário se integra ao processo de aprendizagem proposto aos alunos, “que neste ano estão estudando inclusive sobre o estilo literário HQ. Infelizmente, com a exclusão do livro da lista leitura, todos os alunos do sexto ano foram prejudicados”.

“Fico imaginando o quanto teria sido rica a experiência de leitura do diário de uma adolescente em situação de isolamento e crise social. Afinal, estamos falando de um clássico que nos inspira há décadas. E é em defesa do direito a esta experiência que, como mães e pais, nós nos organizamos e propomos a Leitura Livre do Diário de Anne Frank em HQ”, desabafa a mãe.

Pedagoga aponta perdas para os estudantes

A pedagoga Natália Gil, doutora em educação pela USP e professora da Faculdade de Educação da Ufrgs destaca três pontos para enumerar o que se perde ao retirar um livro como este da proposição pedagógica do 6º ano ou dos anos finais do ensino fundamental. Natália também é mãe de dois estudante do 6º e 8º anos do Marista Rosário.

O primeiro aspecto, segundo ela, é que se trata de um livro que já havia sido proposto e já fazia parte do planejamento que os professores e a equipe pedagógica da escola tinham organizado para trabalhar com esses adolescentes.

“É uma escola grande e com um equipe pedagógica qualificada. Trata-se de um trabalho qualificado e que tinha um sentido pedagógico. E essa escola acabou voltando atrás, ou seja, retirando de última hora uma peça de toda uma programação. Isso obviamente altera o trabalho que estava planejado e pretendido. E essa mudança se dá por uma interferência externa e por uma razão pouco importante, mais associada a um preconceito”, explica.

Outro aspecto destacado pela pedagoga é tratar-se de um livro clássico com um texto de riqueza cultural e histórica para ajudar a entender o século 20.

“É um livro que a gente tem que querer que os adolescentes leiam no seu processo de formação. Portanto, é muito complicado que se comece a tirar da formação dos jovens referências importantes como é o caso de O Diário de Anne Frank. Pois o que se espera é que esses adolescentes tenham um repertório amplo com muitos elementos culturalmente relevantes, o que é o caso desta obra. E o livro que colocaram no lugar não chega nem perto do que o que foi retirado permite trabalhar“, justifica a pedagoga

E o terceiro ponto que Natália considera como perda para os estudantes é a pertinência de ler O Diário De Anne Frank num momento de pandemia, em que os adolescentes estão restritos em sua circulação, com menos possibilidades de contato social em seu grupo etário. “Portanto, ler a experiência de uma adolescente que vive circunstâncias semelhantes, mesmo que por outras razões, pensando sua própria vida e seu futuro é riquíssima! O compartilhamento dessas ideias e a experiência de ler o que a escrita de uma outra pessoa num contexto semelhante se perde completamente”, conclui.

Caso parecido aconteceu em São Paulo

Conforme aponta matéria publicada pela Folha de São Paulo na última quarta-feira, 2, pais de estudantes da Escola Móbile, em São Paulo, entraram em contato com a direção do colégio por considerarem que a versão em quadrinhos do “Diário de Anne Frank” estava erotizando a personagem.

O livro em questão era a versão em inglês da obra, usada pelos alunos na aula do idioma estrangeiro.

Rebatendo as acusações, representantes da Escola Móbile disseram que “Anne’s Frank Diary: The Graphic Adaptation” é uma versão oficial da história da menina judia, defendendo que o livro, inclusive, é recomendado pela Fundação Anne Frank e pela Unicef, da ONU — que considera a escrita um patrimônio da humanidade.

Com a repercussão da reclamação, a Fundação Anne Frank se manifestou oficialmente por meio de uma nota divulgada na Revista Veja São Paulo, na qual considera as acusações dos pais dos estudantes como “ultrajantes e ridículas”.

Parceira da Fundação Anne Frank no Brasil, a Editora Record também se manifestou, dizendo que a acusação é “totalmente infundada e descabida”.

“A versão em quadrinhos, publicada com muito orgulho pela Editora Record, assim como a sua versão em inglês, retrata de forma fiel o trecho do diário em que a autora, a adolescente judia Anne Frank, fala sobre a descoberta do próprio corpo, algo comum nesta fase da vida., diz a nota”

Quem foi Anne Frank

Anne Frank, depois do período de confinamento registrado em diário, foi capturada e transportada até o campo de concentração de Bergen-Belsen, falecendo de febre tifoide pouco antes da libertação do local, em 1945, quando tinha apenas 15 anos

Anne Frank, depois do período de confinamento registrado em diário foi capturada e transportada até o campo de concentração de Bergen-Belsen, falecendo de febre tifoide pouco antes da libertação do local, em 1945, quando tinha apenas 15 anos

Foto: Fundação Anne Frank/Reprodução/Divulgação

Meses após a Alemanha nazista invadir os Países Baixos na Segunda Guerra Mundial, a pequena Anne Frank começou a relatar em seu diário os momentos vivenciados pelo grupo de judeus confinados em um esconderijo.

Anne, pouco depois, acabou sendo capturada e transportada até o campo de concentração de Bergen-Belsen, falecendo de febre tifoide pouco antes da libertação do local, em 1945, quando tinha apenas 15 anos.

Com os judeus em liberdade após anos de perseguições e dizimação, o pai da jovem, Otto, recebeu da ajudante Miep Gies as anotações feitas por Frank. Segundo o site Anne Frank House, a princípio, Otto não suportou ler os textos escritos pela filha. “Não tenho forças para lê-los”, escreveu em carta para sua mãe em agosto daquele ano. Mas depois acabou por publicá-los.

Uma versão revista e integral dos diários foi editada após a morte de Otto Frank, o Diário completo, incluindo pela primeira vez todas as passagens que Otto Frank havia retirado da versão anterior. Portanto, a versão original e integral, que foi adaptada aos quadrinhos está disponível ao público desde 1991.

Nota de esclarecimento do Marista Rosário

Conforme a nota do Colégio Marista Rosário enviada ao Extra Classe, o processo de escolha e análise dos livros indicados para leitura dos estudantes do Colégio Marista Rosário é feito pelos educadores da escola e tem como premissa a intencionalidade pedagógica do nível de ensino, que está fundamentada nas Matrizes Curriculares, que balizam a atuação docente e a escola como um todo. “A partir dessa análise, observamos que a obra Diário de Anne Frank em quadrinhos, solicitada para leitura do trimestre e disponibilizada por meio da plataforma digital Árvore de Livros, não atendia à faixa etária do 6º ano EF “, diz a nota .

E ainda: “optamos por disponibilizar uma outra opção adequada à faixa etária, atendendo, inclusive, a indicação da plataforma. O Diário de Anne Frank em quadrinhos continua à disposição na Árvore de Livros e foi apenas retirado do quadro de leituras obrigatórias. Salientamos que o Colégio Marista Rosário mantém firme o seu compromisso de fomentar a leitura, e que o planejamento é de total competência da escola, a partir de critérios como tema, gênero literário trabalhado na série e a idade dos estudantes que terão acesso à obra, além da já citada intencionalidade pedagógica”.

(Texto atualizado em 15/7, às 17h27min pelo redator)

 

https://www.extraclasse.org.br/educacao/2021/07/live-debate-censura-ao-diario-e-de-anne-frank-em-escolas/ 




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