Colapso financeiro da educação
Redes de ensino podem perder até R$ 40 bilhões na pandemia, indica estudo
Queda de arrecadação pode levar a 'colapso financeiro da educação', em um cenário de aumento da necessidade de investimentos
Em um momento em que mais precisam de recursos para adequações sanitárias e pedagógicas, as redes estaduais e municipais de ensino no Brasil devem perder entre R$ 13 bilhões e R$ 40 bilhões neste ano. É o que estima um estudo divulgado nesta quarta-feira, 28. Com a pandemia do coronavírus, houve redução de arrecadação tributária e, consequentemente, diminuição da disponibilidade fiscal para investimento em educação.
Realizado pelo Instituto Unibanco e o Todos Pela Educação, em parceria com o Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed), o estudo projetou três cenários diferentes de arrecadação em 2020. No cenário mais otimista, haveria redução de R$ 13,2 bilhões no montante vinculado a despesas educacionais nas redes municipais e estaduais. Já no cenário mais pessimista, essa redução seria de R$ 39,8 bilhões.
A pesquisa indica a possibilidade de um "colapso financeiro das redes de educação", com impacto na ponta: os estudantes. Considerando o total de 38,3 milhões de alunos matriculados nessas redes, a perda significaria uma redução média do investimento anual por estudante de R$ 345 no cenário mais otimista e de R$ 1.038 no cenário mais pessimista.
A pesquisa indica que a arrecadação é diferente entre os Estados, o que deve implicar em políticas regionalizadas. "Enquanto alguns Estados tiveram expansão de arrecadação, outros tiveram quedas sensíveis. A maior parte teve queda. Essa heterogeneidade torna muito difícil o desenho de políticas nacionais unificadas", explica Josué Modesto, secretário da Educação, do Esporte e da Cultura de Sergipe e coordenador da Frente de Melhoria do Gasto Público do Consed.
O estudo identificou que as perdas arrecadatórias mais expressivas ocorreram no Ceará, Acre, Rio Grande do Norte, Bahia e Sergipe. O Estado de São Paulo também teve redução, entre 5% e 10%. "Sabemos que o próximo ano será de intensificação de aprendizagem, de muita atividade. Resta saber: teremos recurso para mobilizar mais gente, pagar horas extras?", indaga Modesto.
Em 82 redes municipais analisadas, os gastos adicionais relacionados ao ensino remoto devem variar de R$ 230 a R$ 490 por estudante matriculado. Já nas redes estaduais, estima-se que o gasto total com ações extraordinárias de enfrentamento à pandemia no exercício de 2020 será de no mínimo R$ 2,1 bilhões, podendo chegar até R$ 5,3 bilhões.
Para Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco, a volta à escola exigirá uma gestão "ainda mais fina e customizada" para identificar as necessidades de cada um dos alunos. Ele destaca que o longo período de fechamento das escolas por causa da pandemia do coronavírus vai aprofundar as desigualdades entre os estudantes, até mesmo dentro da sala de aula.
Redes de ensino devem focar no que é essencial, mas haverá a necessidade de recursos novos diante da crise que se avizinha. "Uma boa estruturação do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica) vai ser importante, e implementar o sentido equitativo do Fundeb", diz Henriques.
O Fundeb é o principal mecanismo de financiamento da educação básica pública no Brasil. Embora a renovação do fundo tenha sido aprovada pelo Congresso Nacional este ano, falta ainda a aprovação de uma lei para regulamentá-lo. Essa norma indicará qual deverá ser a modelagem para a distribuição dos recursos do fundo.
Segundo Caio Callegari, coordenador de produção técnica e legislativa do Todos Pela Educação e especialista em financiamento da Educação, além da regulamentação do Fundeb, há uma série de ações que podem ser realizadas para mitigar o impacto orçamentário. "Precisamos ampliar o orçamento federal do PNAE, que é o programa da merenda, e do PDDE, que é dinheiro que vai direto para as escolas", disse nesta quarta-feira, em webinário de lançamento do estudo.
Ele destacou ainda a necessidade de um socorro emergencial da União direcionado à educação básica e de coordenação nacional para um retorno gradual e seguro às aulas presenciais. As projeções do rombo orçamentário ocorrem em um contexto em que o Ministério da Educação (MEC) se mostra ausente do planejamento das ações para garantir a aprendizagem dos estudantes.
A liberação de recursos para estruturação das escolas, da ordem de R$ 525 milhões por meio do Programa Dinheiro Direto na Escola (PDDE), só ocorreu em setembro, seis meses após o início da pandemia. Neste mês, a pasta divulgou um guia de implementação de protocolos para o retorno às atividades presenciais nos colégios, depois que boa parte das redes de ensino já havia elaborado suas próprias diretrizes.
Procurado para comentar as projeções feitas pelo levantamento, o MEC não havia respondido até as 19 horas.
Volta à escola impõe gestão customizada e estruturar o Fundeb é essencial, diz especialista
Para Ricardo Henriques, do Instituto Unibanco, haverá uma série desafios para reduzir desigualdades entre alunos
Júlia Marques 28 OUT 2020
A volta às aulas exigirá uma série de adequações nas escolas públicas. Para reduzir o abismo de aprendizagem entre os estudantes, escolas terão de implementar políticas de avaliação e reforço, com olhar para a realidade de cada um dos alunos. A gestão pedagógica "precisará ser ainda mais fina e customizada", segundo Ricardo Henriques, superintendente executivo do Instituto Unibanco, organização que apoia o gerenciamento de redes de ensino e escolas do País.
O aumento das necessidades educacionais, no entanto, vai na contramão dos recursos. Estudo do Instituto Unibanco e do Todos Pela Educação, em parceria com o Conselho Nacional dos Secretários de Educação (Consed), estima que redes estaduais e municipais de ensino no Brasil devem perder entre R$ 13 bilhões e R$ 40 bilhões neste ano.
Para Henriques, o cenário de escassez de recursos demanda ainda mais uma boa estruturação do Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica (Fundeb). Aprovado no Congresso, o Fundo precisa ainda de regulamentação para que os recursos se direcionem, de fato, aos que mais precisam.
Quais as principais dificuldades de gestão que escolas e redes vão enfrentar na retomada das aulas presenciais?
Viabilizar, dar condições objetivas para que os protocolos de saúde e distanciamento sejam implementados de forma adequada é o primeiro desafio. A equipe toda tem de estar capacitada e adequada para isso. Nunca tivemos essa prática de ser integrado, intersetorial. Isso será muito importante tanto para a segurança em si, mas também para a confiança. Confiar que a retomada funcionará dependerá dessa prática sobre os protocolos sanitários. A segunda coisa é a estratégia de acolhimento.Sempre tivemos experiência de acolher alunos na retomada das aulas, mas não com o grau de complexidade que esse acolhimento agora solicita, sobretudo em função de situações de trauma e pela longa duração das aulas suspensas. É fundamental uma disponibilidade para acolher as vulnerabilidades emocionais, que têm a ver com perdas de parentes, violência, vulnerabilidades materiais e das expectativas de aprendizagem. A terceira dimensão é um bom diagnóstico. Precisamos tanto de um diagnóstico emocional quanto cognitivo e que seja personalizado. Não me interessa só a média da escola: precisamos saber aluno a aluno como foi o acesso ou não ao ensino remoto, quanto tempo pôde dedicar, se não pôde. Os procedimentos dessa avaliação solicitam tempo.
Essa retomada parcial, em que algumas cidades voltam ou só algumas escolas, pode dificultar o planejamento das ações?
Pode. Mas dificultar não quer dizer que é impossível. Será mais trabalhosa, requer mais diagnósticos e instrumentos. Cada diretora de escola e sua equipe precisa de mais apoio e assistência técnica da secretaria. As regionais têm de ser mais ativas. Na mesma cidade, tenho uma rede municipal e estadual que voltam em momentos diferentes. Isso requer muito mais coordenação. Pode ser que uma escola não volte porque 70% dos professores estão à beira de se aposentar. A secretaria precisa de planejamento para entender qual o tamanho da escola, se é possível oferecer ensino híbrido para os estudantes em outro espaço físico ou nesse espaço com outros professores. É preciso subir significativamente a qualidade e a responsabilidade do planejamento, porque estão em jogo vidas e aprendizagem, simultaneamente. E sabemos que é incontornável que vão aumentar as desigualdades.
Avaliações diagnósticas podem ser únicas para a rede ou específicas para cada escola?
Cada rede define, há vantagens nas duas direções. O que é preciso é qualidade na aferição, e engajamento dos professores e professoras para fazer o duplo diagnóstico: cognitivo e emocional. Os protocolos precisam ser capazes de identificar os traumas. A educação como área tem de conversar mais com a saúde e assistência social, não podemos achar que teremos super mulheres e super homens professores. É preciso endereçar (situações de traumas) para a assistência e a saúde.
Há uma imprevisibilidade da situação da pandemia. O Brasil parece caminhar para um declínio das infecções, mas não sabemos como a doença vai se comportar. Essa imprevisibilidade impacta muito o planejamento e como as redes e escolas podem contornar isso?
O que o planejamento e a gestão solicitam é flexibilidade e adaptabilidade. Uma abordagem rígida, em um contexto de tamanha incerteza, é errado. Tem de ter planejamento com os dados que você dispõe e consciência de imprevisibilidade sobre algumas variáveis muito importantes, como a incidência da doença. Tem de ter capacidade de ser flexível e adaptável.
As salas de aula devem ganhar ainda mais heterogeneidade; as crianças vão voltar em níveis muito diferentes de aprendizagem. Isso demanda ajuste fino no planejamento?
Quando as pessoas pensam desigualdade, talvez pensem só no macro. A desigualdade entre o setor privado e público deve aumentar, entre redes também. Mas, além disso, a desigualdade no interior de cada rede deve aumentar e no interior de cada escola. A desigualdade é em todos os recortes que você fizer, até dentro da sala. A gestão pedagógica precisa ser ainda muito mais fina e customizada. Temos de olhar ainda mais para cada estudante. E a professora e o professor têm de estar capacitados para isso e apoiados. O trabalho entre professores aumenta, passa a ter uma pressão positiva para ser mais cooperativo. A ideia de ter abordagens interdisciplinares e intersetoriais passa a ter mais acolhimento. Esse planejamento da sala de aula também terá aumento de complexidade.
É possível que os próprios estudantes consigam se apoiar e como fortalecer os grupos de estudantes para reduzir desigualdades?
O melhor caminho para se pensar nisso é ver como os estudantes nesse momento de ensino remoto estão criando redes de apoio entre eles, até no WhatsApp. Isso é mais intenso com o pessoal do 3.º do ensino médio. Sobretudo para os mais velhos, (é possível) aumentar as redes de colaboração com protagonismo de estudantes. Isso será tão mais bem feito quanto mais as escolas estiverem disponíveis para acolher isso. Em algumas culturas, se recusa isso, mas deveria fazer o contrário: estimular.
Quais as experiências de gestão da redes no Brasil para essa retomada?
Os Estados estão tentando caminhos que têm elementos variados. Uns estão mais atentos à qualidade da avaliação, outros à qualidade do acolhimento ou à forma do ensino híbrido. Nas redes estaduais, a grande maioria está tentando ter essa lucidez de que precisa ter uma estratégia ainda mais estruturada do que tinha antes. E há cada vez mais trocas entre as secretarias.
Precisamos de mais dinheiro para essas ações de retomada?
Há recursos que podem ser melhor direcionados do que estavam, porque essa complexidade aumenta a necessidade de foco, mas é óbvio que vai ter necessidade de recursos novos diante da crise que se avizinha. Uma boa estruturação do Fundeb (Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica, cuja renovação foi aprovada em agosto) vai ser importante, e implementar o sentido equitativo do Fundeb.