Combate à corrupção substitui racismo
Jessé Souza: combate à corrupção substitui racismo oficial no Brasil
PEDRO ALEXANDRE SANCHES - São Paulo (Brasil)
O sociólogo Jessé Souza, autor do livro A Elite do Atraso, afirmou que a permanência da escravização, hoje sob novas formas, é traço fundamental na sociedade brasileira, em conversa com o jornalista Breno Altman, no programa 20 MINUTOS desta terça-feira (06/09).
Interditado de ser expressado livremente na esfera pública, o racismo se camufla de diversas maneiras.
“Monta-se um racismo de outro tipo, o racismo de combate à corrupção, para substituir o racismo oficial, exatamente do mesmo modo, dizendo que o povo é a causa da própria pobreza e miséria”, propõe o professor. "Para ser racista hoje, tem que ter outro nome.”
A operação construída por uma elite majoritariamente improdutiva encobre seu racismo e a contraditória perpetuação da miséria no Brasil: “Como se mantém o povo atrasado? Como explicar às pessoas que elas são pobres, miseráveis, e moram num país que todo mundo sabe que é rico, com terras férteis, petróleo, onde é só ajudar os mais pobres um pouquinho que a economia já passa da 16ª para a sexta maior do mundo? A explicação que a elite dá é que a política é feita por corruptos, e a corrupção é a causa da miséria”.
Lançando os livros A Herança do Golpe e Brasil dos Humilhados: Uma denúncia da ideologia elitista, pela Civilização Brasileira, Souza reivindica em seu trabalho uma reinterpretação do Brasil, que coloque a mentalidade escravista como ponto de partida. “Gilberto Freyre diz que o Brasil vem de Portugal. A escravidão para ele é um fato secundário. Todo brasileiro acreditou nessa bobagem, inclusive a esquerda”, desafia.
A elite, segundo ele, humilha a população para espoliá-la, culpabilizando-a pela própria pobreza: “Você é inconfiável, um corrupto que elege corruptos. A elite conseguiu com isso criminalizar a participação popular ao voto, à política e ao Estado. São os conceitos básicos de Sérgio Buarque de Holanda e de mais de 90% da intelectualidade brasileira até hoje: com o patrimonialismo do Estado você esconde e invisibiliza o assalto do mercado, e diz que o povo é ladrão”.
De Getúlio Vargas à Operação Lava Jato, o tema da corrupção serve a uma cultura de golpes de Estado, como num golpe contínuo: “Corrupção é a única mensagem que essa elite tem para manter seu horizonte de poder”.
Para o sociólogo, há uma continuidade desde o Brasil colonial até os dias atuais, num pirâmide social que se perpetua: "No século 19 já existe a elite de proprietários de terras, que é a que continua hoje, de assassinos e ladrões. Essa lavoura arcaica que está com Bolsonaro é exatamente isso”.
Dos brancos livres do Brasil-colônia, que não eram nem escravizados nem senhores de terras, descende a classe média como a conhecemos hoje. “O que a elite dava para o homem livre era a auto-estima de que ele era superior a alguém. No Brasil, a classe média foi subordinada, procura adivinhar os desejos mais íntimos da elite que quer agradar. Ela passa de mão armada do senhor de terras para aparelho de Estado, Sergio Moro”, compara.
Essa estrutura ajuda a compreender a persistência do apoio popular ao atual presidente da República: “Há os brancos que ascenderam, que é a classe média real, 99% branca, e o branco pobre. É esse que está com Bolsonaro, não por acaso. Não teve acesso aos privilégios, foi injustiçado também, mas tem às vezes um sobrenome alemão e se sente superior em relação à população mestiça e negra. É o caminhoneiro do Bolsonaro, um pobre remediado, e tem raiva da ciência, da cultura”.
Na base da pirâmide estão aqueles que Souza classifica como condenados à barbárie: “É gente que não é só abandonada, é perseguida. Tem uma polícia para matar, é humilhada constantemente, tem escola, saúde e família precárias”.
Jessé Souza emprega o conceito de racismo cultural, por seu caráter multidimensional, praticado não só contra minorias raciais, mas também contra pobres, trabalhadores, mulheres e outros grupos oprimidos.
“Toda a grande ciência mundial, inclusive a contemporânea, é racista. O racismo cultural é um não-tema. Ninguém fala nisso, como ninguém fala de imperialismo mais”, pondera. “Todos os intelectuais do mundo estudaram em universidades nas quais era ensinado o racismo cultural, de que Estados Unidos e Europa são representantes do espírito, da inteligência, da moralidade distanciada e da beleza. Isso reduz América Latina, África e Ásia ao corpo: menos produtivo, preguiçoso e corrupto”.
Partindo do exemplo da Lava Jato, o sociólogo critica a lógica que se reproduz seja interna ou externamente: “Fala-se da corrupção brasileira sistêmica, cultural, que ninguém pode controlar, como se o capitalismo todo não fosse corrupção, baseado em paraíso fiscal, origem ilegal de dinheiro, lavagem de dinheiro. Como se o capitalismo norte-americano não fosse a maior corrupção do planeta”.