Como estão os professores?
Como estão os professores que tiveram redução salarial na pandemia?
Corte na remuneração prejudica educadores que dizem trabalhar dobrado no ensino remoto emergencial
POR: Ana Paula Bimbati 23 de Julho | 2020
As fotos desta reportagem foram tiradas remotamente pela fotógrafa Tainá Frota, através de videochamada com o professor Roberto*
“Meu filho faz tratamento para imunidade e é um tratamento caro. Tem restrição alimentar, medicações e é algo que me deixa bem preocupada, porque são muitas contas e tem também o aluguel”, desabafa Simone*, professora do Ensino Fundamental 1 da rede municipal de São Gonçalo (RJ). Desde abril deste ano, um mês após o início da pandemia do novo coronavírus, a remuneração da educadora teve um corte de 60%. “Emagreci e tive queda de cabelo por conta das preocupações”, conta a educadora.
O cenário vivenciado por Simone é parecido com o de outros educadores espalhados pelo Brasil que tiveram diminuição de salário, suspensão de benefícios e gratificações. Roberto*, Antônio* e Renata* são alguns desses professores que também enfrentam o desafio de equilibrar as contas em meio a quarentena. Veja nesta reportagem como tem sido esse período para quem sofreu redução na renda e entenda o que é possível fazer caso o seu salário tenha sido reduzido sem conformidade com a lei.
Dupla regência, mas sem salário
Foi no final de abril que Simone, professora de uma turma de 3º ano do Fundamental 1, foi surpreendida com uma publicação no Diário Oficial do município de São Gonçalo. “Só fiquei sabendo por esse comunicado e, quando saiu o meu contracheque, vi que a dupla regência havia sido cortada do meu salário”, relembra. De acordo com o Extrato de Decisão sobre o Processo Nº 14.369/2020, publicado no Diário Oficial do município em 24 de abril, não houve redução salarial, mas, além da dupla regência, foram suspensos os pagamentos sob a rubrica de auxílio transporte, adicional de risco de vida, adicional de insalubridade/periculosidade, gratificação por difícil acesso, gratificação de exercício em classes regulares de alunos portadores de necessidades especiais e gratificação por aula extra.
“A suspensão se deu devido a pandemia ocasionada pela covid-19, que mantém as aulas suspensas até o dia 31 de julho, e foi publicada em decreto municipal. Sendo assim, a suspensão se deu pelo fato do servidor não estar exercendo o fato gerador à percepção da respectiva parcela”, explica a prefeitura.
Apesar disso, Simone não abandonou suas atividades da dupla regência já que ela dá apoio a um aluno com deficiência, que precisa de atendimento constante para realizar as atividades. Como ela, Simone diz que muitos docentes do município possuem dupla regência como forma de complementar o piso salarial, que na cidade é baixo.
O que é dupla regência?
Professores concursados podem complementar a carga horária para preencher vagas ociosas em suas redes cobrindo, por exemplo, educadores que saíram de licença ou se aposentaram. Ou seja, os professores concursados com contratos de 20 horas, recebem a mais para exercer a segunda função, com adicional de outras 20 horas na carga horária, que pode ser a de professor de apoio na Educação Infantil, dar suporte para alunos com deficiência no contraturno ou pegar mais uma turma para lecionar, por exemplo.
“Teve professor aqui na cidade que recebeu R$ 100 por conta desses cortes”, diz. Ela tem recebido cerca de R$ 1.100, mas, com os gastos com o filho que precisa de medicamentos e uma alimentação diferenciada, as contas já estão se tornando uma bola de neve.
Apesar da diminuição na renda, a professora reclama que o trabalho só aumenta no dia a dia e, principalmente, em um cenário como esse de ensino remoto. “A gente se apoia como equipe e se ajuda mesmo. A comunidade em que leciono é carente e sabemos que além da dificuldade de aprendizagem há outros elementos de desigualdade que enfrentamos”, explica. “A gente precisa se reinventar todos os dias ainda”.
Roberto*, professor de Educação Infantil da rede municipal de Feira de Santana (BA), também possui dupla regência e teve seu salário reduzido em abril. Ele conta que a prefeitura publicou um decreto informando sobre a diminuição dos salários de servidores municipais, mas especificamente prefeito, vereador e cargos comissionados. “O texto falava da possibilidade de redução, mas no mesmo mês o corte no salário ocorreu”, explica.
No caso de Roberto, ele não está em contato direto com os alunos, mas aponta que não foi uma decisão dele e sim da rede. “As decisões vêm lá de cima”, pontua. “Em nenhum momento os professores foram consultados sobre essa estratégia da secretaria”. Para o educador, seria justo que a prefeitura apresentasse dados que mostram a necessidade da diminuição do salário e conversasse sobre alternativas.
O que tem ajudado a suprir as dificuldades é a ajuda do sindicato dos professores, que tem ofertado cestas básicas. O corte de renda dele foi de 43%.
Segundo o secretário de Educação de Feira de Santana, Marcelo Neves, o município tem 2,2 mil professores concursados e, desses, cerca de 650 passaram no concurso de 20 horas e recebem mais 20 horas extras para ocupar vagas que existem no sistema, como é o caso de Roberto. Os cortes realizados são referentes à carga complementar dos educadores. "Isso é uma situação sazonal. Em algum momento o município pode precisar de professores, quando há educadores de férias, afastados por motivo de saúde. Mas o município pode também não precisar, contratar e dispensar", justifica o secretário.
Marcelo explicou que a situação de pandemia "fez com que administração tomasse essa medida" e reduzisse os salários dos educadores. "Como secretário lamento qualquer decréscimo e uma situação que venha diminuir os rendimentos das pessoas", diz.
O secretário afirmou que a prefeitura tem contribuído todos os anos para a Educação. No ano passado, de acordo com ele, foram repassados quase R$ 9 milhões para pagar o salário dos professores. "Eles recebem através do Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica], mas o município fez essa complementação."
O sindicato entrou na justiça para que Feira de Santana pagasse o salário integral dos professores e teve um parecer favorável. A prefeitura, entretanto, recorreu e a determinação aguarda nova análise. Caso a decisão seja mantida, a prefeitura precisará fazer o pagamento integral dos professores.
Sem complemento do governo
Em Ponta Grossa (PR), a professora Renata*, de Ensino Fundamental 1, não teve redução de salário da rede pública, mas o corte veio do colégio particular em que leciona. “Chamaram uma reunião na escola e informaram que reduziriam nosso salário em 50%, mas o governo federal pagaria o complemento”, conta. A instituição aderiu à Medida Provisória (MP) 936.
A Medida Provisória 936 foi publicada em abril deste ano com o objetivo de “preservar os empregos durante a pandemia”. A MP autorizou as empresas a negociarem a suspensão do contrato por até 60 dias e a redução de salário por até 90 com seus funcionários.
No dia 6 de julho, o documento foi convertido na Lei 14.020, sancionada pelo presidente Jair Bolsonaro (sem partido), que alterou o prazo para 120 dias. No entanto, não podem ser incluídos no programa pessoas que estiverem ocupando cargo ou emprego público.
Quando entendeu do que se tratava, Renata explicou para direção da escola que não estava apta a receber o complemento do governo, pois era funcionária pública, o que a excluiria do benefício. No entanto, a gestão escolar insistiu que não haveria problema. A professora confiou na informação recebida, assinou o documento feito pela instituição e aguardou, mas os outros 50% nunca vieram.
A dedução da renda chegou em abril e ela não conseguiu qualquer negociação com a escola. Em contrapartida, Renata avalia que a carga horária triplicou: além das tarefas convencionais enquanto professora, ela precisa enviar de 3 a 4 vídeos por semana para sua turma, além de atender aos pais e responsáveis – tarefa que não tem hora para acontecer.
“É exaustivo, faz semanas que não durmo, porque se eu não concordo, eles vão me demitir”, desabafa a educadora.
Contrato rescindido e sem respostas
Faltando um mês para acabar seu contrato, o professor de Geografia Antônio*, da rede municipal de Itaitinga (CE), teve o mesmo rescindido pela prefeitura. “Não recebemos nenhum tipo de orientação, trabalhei os 30 dias de junho, mas recebi apenas por 15 deles”, conta.
Antônio é professor contratado pela rede a cada 6 meses. Segundo ele, o município todo ano faz um contrato por esse período e, em agosto, renova. No entanto, desta vez, o acordo foi encerrado antes do tempo previsto e não há qualquer informação de renovação. “Tentei dar entrada no auxílio emergencial, mas até o momento não tive nenhuma resposta”, diz.
A NOVA ESCOLA tentou contato com a secretaria de Itaitinga (CE) por duas semanas para entender ao que se referiam as reduções, mas até o fechamento desta reportagem não houve retorno.
O que pode ser feito?
A redução salarial só pode acontecer se houver redução da carga horária. É o que explica Adriane Reis, Procuradora Regional do Trabalho e coordenadora nacional da Coordenadoria Nacional de Promoção de Igualdade de Oportunidades (Coordigualdade) do Ministério Público do Trabalho (MPT).
De acordo com Adriane, no caso da professora Renata, cortar o salário é necessário que se tenha um controle da jornada. “Se a instituição não consegue fazer isso, não tem como se beneficiar da MP 936, porque, neste caso, pode acontecer uma situação do trabalhador ter uma carga horário maior e receber menos”, diz.
Segundo a procuradora, a educadora pode procurar o Ministério Público do Trabalho e entrar com uma reclamação trabalhista na Justiça. “Em um caso como o da professora Renata, o colégio poderia oferecer algumas trocar no lugar desse complemento que ela não receberá do governo federal”, afirma. Ela também informa que toda decisão de redução salarial deve ser feita em conjunto com o funcionário. “Recomendamos até a presença do sindicato, se houver”.
No caso dos professores concursados, como Simone e Roberto, ao publicar um decreto, o município ou estado tem autorização para reduzir o salário de funcionários estatutários. “A categoria pode procurar o Ministério Público Estadual para que abra uma investigação”, exemplifica.
Para além das questões de remuneração, Adriane alerta que os profissionais da Educação se atentem a outras questões como não permitir trabalhar em um horário ininterrupto e façam uma reposição de energia aos fins de semana. “É uma mudança muito abrupta esse cenário para os professores e a gente não pode sair da pandemia protegido da covid-19, mas com outro tipo de sequela na saúde mental ou física”, destaca.
Em caso de qualquer tipo de intimidação ao professor, assédio moral, redução salarial ilegal, a procuradora recomenda que os educadores façam suas denúncias ao MPT. Confira aqui a nota técnica disponibilizada pelo ministério sobre os direitos dos professores no home office durante a pandemia.
*nomes fantasias. Os professores optaram por se manterem anônimos.