Como funciona o orçamento secreto?
Entenda o que é e como funciona o orçamento secreto
20.10.2022
Maiquel Rosauro - Rio de Janeiro - RJ
Caracterizado pela falta de transparência e por suspeitas de corrupção, o orçamento secreto tem sido um assunto frequente na campanha eleitoral de 2022, principalmente na disputa presidencial. Enquanto o presidente Jair Bolsonaro (PL) insiste que não tem envolvimento com a destinação sigilosa de verbas públicas, opositores associam o sistema à compra de apoio no Congresso.
Mas, afinal, o que é o orçamento secreto? Como foi criado? Qual é o papel do presidente da República em sua operação? Confira a seguir as respostas a essas e outras questões sobre o assunto. A Presidência da República foi procurada por Lupa, mas não se manifestou até a publicação desta reportagem.
O que é o orçamento secreto?
É um novo tipo de emenda parlamentar que não possui distribuição igualitária entre os congressistas – como ocorre com as emendas individuais. Cabe ao relator-geral do Orçamento da União decidir quais deputados federais e senadores terão o direito de destinar os recursos públicos.
As informações sobre o uso dessas verbas, no entanto, não são divulgadas em detalhe – é impossível em alguns casos, por exemplo, identificar qual parlamentar é o responsável pela criação da emenda.Tal informação, por exemplo, não consta sequer no Portal da Transparência.
Quando o assunto veio à tona?
O tema ganhou repercussão nacional em maio de 2021, quando uma reportagem do jornal O Estado de S. Paulo denunciou um orçamento paralelo do governo Bolsonaro, que direcionou R$ 3 bilhões em emendas para aumentar sua base de apoio no Congresso. Parte da quantia, conforme a reportagem, bancou a compra de tratores e máquinas superfaturadas para prefeituras em até 259% acima dos valores de referência fixados pelo governo. O escândalo ficou conhecido como tratoraço.
O Estadão apelidou a prática de 'orçamento secreto' após constatar que, ao contrário do que ocorre com as emendas impositivas (em que o governo é obrigado a liberar a verba para o que foi indicado pelos parlamentares), na nova prática a destinação dos recursos é sigilosa. Isso permite, por exemplo, que o governo possa distribuir dinheiro público aos parlamentares de sua base por razões políticas, sem atender a critérios técnicos.
Como foi criado?
A ferramenta surgiu a partir do Projeto de Lei do Congresso Nacional (PLN) nº 51/2019, que foi apresentado em 3 de dezembro de 2019 pela Presidência da República. O projeto enviado ao Congresso tem uma mensagem assinada por Jair Bolsonaro e, na exposição de motivos que o justifica, leva a assinatura do general Luiz Eduardo Ramos, então ministro da Secretaria de Governo da Presidência.
O texto previa, entre outras medidas, a criação da emenda do relator-geral do Orçamento, identificada como o marcador de resultado primário RP-9. A proposta foi aprovada pelo Congresso Nacional em 10 de dezembro de 2019.
Trecho do PLN 51/2019 que cria as emendas de relator-geral do Orçamento. Imagem Reprodução
No dia 18 do mesmo mês, Bolsonaro vetou dois artigos do projeto, incluindo um que havia sido modificado pelos deputados Elmar Nascimento (então no DEM-BA) e Aguinaldo Ribeiro (PP-PB) e determinava o prazo de 90 dias para consecução do empenho das RP-9 (páginas 6 e 7). No veto, o presidente justificou que o dispositivo proposto era contrário ao interesse público e incompatível com a complexidade operacional.
Com essas ressalvas, Bolsonaro sancionou a Lei nº 13.957/2019. O plenário do Congresso Nacional só analisou os vetos presidenciais, entretanto, em 4 de março de 2020. A decisão foi por manter um dos vetos, evitando que as emendas fossem impositivas e tivessem prazo de 90 dias para serem empenhadas.
Isso só ocorreu após um acordo entre Legislativo e Executivo. Com base nisso, o Palácio do Planalto enviou ao Congresso, um dia antes da votação dos vetos, os PLNs 2, 3 e 4 – que mantinham o orçamento impositivo em 2020. Na prática, o governo Bolsonaro e o Congresso aceitaram dividir o controle dos R$ 30 bilhões previstos.
Assim, o Congresso, de forma inédita, passou a definir o destino de R$ 20,1 bilhões do orçamento como emendas de relator. Coube, então, ao relator do Orçamento de 2020, deputado federal Domingos Neto (PSD-CE), decidir, em negociações informais e sem critério definido, para quem e para onde o dinheiro seria destinado.
Qual o envolvimento de Bolsonaro com o orçamento secreto?
Em dezembro de 2019, o presidente da República assinou mensagem enviada ao Congresso com a proposta de criação da emenda identificada como o marcador de resultado primário RP-9 – que deu origem ao orçamento secreto.
Já em 2020, após um acordo entre Legislativo e Executivo, a Presidência da República enviou ao Congresso os PLNs 2, 3 e 4 – que mantiveram o orçamento impositivo em 2020 apesar de os parlamentares terem mantido veto de Bolsonaro à proposta original.
As emendas de relator foram aprovadas pelo Congresso nas leis de diretrizes orçamentárias (LDO) de 2020, 2021 e 2022. Em agosto de 2021, Bolsonaro vetou a aplicação das emendas de acordo com a ordem de prioridade determinada pelos autores – a decisão foi referente à proposta da LDO para o exercício de 2022.
Trecho vetado por Bolsonaro sobre as emendas de relator, presentes na proposta da LDO para 2022.
Imagem Reprodução
Dessa vez, porém, o Congresso derrubou o veto. Na Câmara dos Deputados, dos 453 votantes, 431 parlamentares votaram pela derrubada do veto e 22 pela manutenção. No Senado, foram 55 votos pela derrubada do veto. Com essa decisão, o governo teve de pagar as emendas conforme prioridade definidas pelos parlamentares.
Já em 2022, as emendas do relator-geral foram novamente mantidas na proposta da LDO de 2023 aprovada pelo Congresso. Entretanto, o relator da proposta de LDO, senador Marcos do Val (Podemos-ES), retirou do texto final a proposta de tornar a execução obrigatória. Desta forma, as emendas de relator-geral não serão impositivas, ou seja, o governo federal não é obrigado a pagá-las.
Por que o orçamento secreto é associado à corrupção?
Após o Estadão divulgar o escândalo do tratoraço, em maio de 2021, outras denúncias ganharam destaque na imprensa. A mais recente delas ocorreu em 14 de outubro de 2022, quando a Polícia Federal (PF) deflagrou uma operação para investigar um suposto esquema de desvio de verbas públicas do orçamento secreto.
Foram cumpridos mandados nos estados do Maranhão e do Piauí, com duas prisões. Um dos presos fez pedidos de R$ 69 milhões no orçamento secreto na condição de "usuário externo". Desse total, R$ 36 milhões foram liberados pelo governo.
Também repercutiram denúncias sobre construção de "escolas fake", fraudes em compras de ambulâncias, desvios na Companhia de Desenvolvimento dos Vales do São Francisco e do Parnaíba (Codevasf), construção irregular de mirante, suspeitas sobre a eleição de Arthur Lira (PP-AL) à presidência da Câmara dos Deputados e fraudes no Sistema Único de Saúde (SUS).
Levantamento de O Globo apontou que 10 dos 13 deputados beneficiados com valores do orçamento secreto acima de R$ 100 milhões, ao longo do mandato, foram reeleitos com desempenho melhor nas urnas do que em 2018.
Qual é o posicionamento do STF sobre o assunto?
A ministra do Supremo Tribunal Federal (STF), Rosa Weber, suspendeu o pagamento das emendas de relator do Orçamento de 2021. A decisão foi publicada em 5 de novembro do ano passado, a partir de ações ajuizadas por PSOL, Cidadania e PSB, que apontaram violação de princípios da legalidade, transparência, controle social e regime de emendas parlamentares. Em 10 de novembro de 2021, por 8 votos a 2, o STF suspendeu a execução das RP-9.
Contudo, em 6 de dezembro, Weber determinou a retomada da execução dos recursos. Em sua decisão, a ministra justificou que há “potencial risco à continuidade dos serviços públicos essenciais à população, especialmente nas áreas voltadas à saúde e educação” (página 15). Ela também levou em consideração as regras de transparência (PRN 4/2021) aprovadas pelo Congresso, em 29 de novembro, que confirmaram a regulamentação das RP 9. Em 16 de dezembro, os demais ministros do STF referendaram a decisão.
Em 14 de setembro de 2022, a ministra Rosa Weber – então na condição de presidente do STF – decidiu manter a relatoria de processos que questionam o orçamento secreto. Os processos já foram liberados para a pauta de julgamentos, mas, até a publicação desta reportagem, ainda não haviam sido apreciados pelos ministros da Corte. A previsão é de que o julgamento ocorra após as eleições.
O que diz o TCU?
O Tribunal de Contas da União (TCU) aprovou com ressalvas, em 29 de junho deste ano, as contas de Bolsonaro relativas ao exercício de 2021. O relatório indica que o Orçamento do ano passado apresentou atipicidades decorrentes das emendas de relator e “algumas perplexidades e dificuldades em sua operacionalização” (página 345).
De acordo com o TCU, foram alocados, inicialmente, R$ 18,5 bilhões a título de RP 9, dos quais foram "empenhados R$ 16,7 bilhões e pagos R$ 6,3 bilhões referentes a despesas do mesmo exercício (37,72%)". Porém, a prática levou à "supressão de programações necessárias e suficientes para a União honrar despesas obrigatórias (R$ 7,4 bilhões) e despesas discricionárias, inclusive as priorizadas pela Lei de Responsabilidade Fiscal para preservação do patrimônio público".
Os técnicos do órgão apontam que a distribuição de emendas RP 9 para as áreas de Saúde e Assistência Social não atende critérios objetivos previstos constitucional e legalmente para alocação dos recursos da União nessas áreas. O estudo também demonstrou preocupação em relação aos pleitos eleitorais.
“Não há evidência de observância de critérios objetivos nas escolhas alocativas e dos pressupostos que orientam o planejamento governamental, fatores críticos que comprometem a governança orçamentária, com risco potencial de afetar, em razão de disfunções do processo orçamentário, a igualdade de oportunidades entre candidatos nos pleitos eleitorais”, diz o TCU.
O relatório ainda indica que o perfil de distribuição verificado em 2020 foi substancialmente alterado em 2021, com a concentração de repasses mais elevados em apenas 14 cidades. Chamou atenção dos técnicos o fato de que as transferências realizadas para os municípios de Arapiraca (AL), São Félix do Xingu (PA), Campina Grande (PB) e São Gonçalo (RJ) totalizaram R$ 343,6 milhões. “Os repasses federais a esses 4 municípios variaram de 737% a 5.237% na destinação das emendas RP 9, em relação ao que receberam no ano anterior”, informa o órgão fiscalizador.
O orçamento secreto seguirá em 2023, já que a LDO já foi enviada ao Congresso?
O projeto de lei enviado pelo governo ao Congresso Nacional, em 31 de agosto, com a proposta de Orçamento para 2023, prevê R$ 38,8 bilhões para emendas parlamentares, sendo R$ 11,7 bilhões para emendas individuais, R$ 7,7 bilhões para emendas de bancada e R$ 19,4 para bilhões emendas de relator-geral.
No Orçamento de 2022, a quantia autorizada chegou a R$ 16,5 bilhões. Conforme dados da plataforma Siga Brasil, do Senado Federal, R$ 11,3 bilhões já haviam sido pagos até o dia 17 de outubro de 2022. Para o ano de 2021, foram autorizados R$ 18,5 bilhões para as emendas de relator. Em 2020, R$ 20,1 bilhões.
Situação das emendas individuais do Orçamento de 2022, em 17 de outubro de 2022. Fonte: Siga Brasil
Na prática, nos últimos três anos, R$ 55,1 bilhões do Orçamento da União foram destinados para as emendas de relator. Caso a LDO de 2023 seja aprovada sem modificações, o total de verba pública liberado para as RP 9, desde 2020, será de R$ 74,5 bilhões.