Como funciona o teto de gastos
Entenda como funciona o teto de gastos
11.11.2022
Maiquel Rosauro - Rio de Janeiro - RJ
Mudar a regra do teto de gastos, que limita o crescimento das despesas à inflação do ano anterior, ou abrir um crédito extraordinário estão entre os caminhos cogitados pelo presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT) para garantir, a partir de 2023, a manutenção do pagamento de R$ 600 do Auxílio Brasil e conceder um reajuste maior no salário mínimo – duas promessas feitas durante a campanha eleitoral.
Esse é o ponto de partida para o governo do presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva (PT), que precisa negociar com o Congresso como pretende modificar o Projeto de Lei Orçamentária Anual (PLOA) de 2023 para garantir a manutenção do pagamento do Auxílio Brasil em R$ 600 no próximo ano e reajustar o salário mínimo acima da inflação – duas de suas propostas na campanha eleitoral.
O Novo Regime Fiscal no âmbito dos Orçamentos Fiscal e da Seguridade Social da União, mais conhecido como teto de gastos, está em vigor desde 2017. Em teoria, ele limita as despesas federais – o que também pode significar uma redução na capacidade de investimento público – com o objetivo de equilibrar as contas públicas.
Por outro lado, a medida é vista com ressalva por reduzir a autonomia do governante na tomada de decisões. Além disso, não foi respeitada pelo presidente Jair Bolsonaro (PL), que nos últimos três anos ‘furou’ o teto de gastos a partir de emendas constitucionais aprovadas pelo Congresso.
A seguir, entenda como o teto de gastos funciona e quais são as possibilidades de o governo eleito “furar” esse limite a partir de 2023.
Para honrar promessas de campanha, o presidente eleito Luiz Inácio Lula da Silva busca alternativas para escapar do teto de gastos. Foto Ricardo Stuckert / Divulgação
O que é o teto de gastos?
É uma regra que prevê um limite anual de despesas para os três poderes. O teto foi criado a partir da Emenda Constitucional nº 95/2016, apelidada de Novo Regime Fiscal. A lei estabelece que os gastos federais só poderão aumentar de acordo com a inflação acumulada medida pelo Índice Nacional de Preços ao Consumidor Amplo (IPCA) do ano anterior. Ou seja, limita os gastos para evitar que a despesa cresça mais que a inflação.
Como surgiu o Novo Regime Fiscal?
A Proposta de Emenda à Constituição (PEC) foi apresentada pelo então presidente interino, Michel Temer (MDB), e pelo ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, em 15 de junho de 2016, com o objetivo de frear o rombo nas contas públicas. Naquele ano, o Brasil tinha um déficit nominal do setor público consolidado de 9% do Produto Interno Bruto (PIB), déficit primário de 2,5% do PIB (página 4) e dívida bruta do governo geral de 70% do PIB (página 29).
Conforme o relatório “Teto de gastos: o gradual ajuste para o crescimento econômico do país”, publicado em 2018 pelo Ministério da Fazenda, conter a expansão do gasto público federal traria diferentes benefícios, como, por exemplo, tornar possível expandir a despesa em ritmo inferior ao crescimento do PIB, levar ao reequilíbrio das contas do governo e reduzir despesas com juros (página 5). Outra vantagem apontada na época é que isso permitiria um “ciclo virtuoso”, afastando o risco de crise da dívida, melhorando as expectativas dos empreendedores e aumentando ofertas de crédito (página 5).
A PEC foi promulgada pelo Congresso em 15 de dezembro de 2016, com vigência a partir de 2017 e validade de 20 exercícios consecutivos. Portanto, a Emenda Constitucional nº 95/2016 ficará em vigor até 2036.
Como o teto de gastos é calculado?
Para 2017, ficou determinado que o teto seria definido com base na despesa primária paga em 2016 (incluídos os restos a pagar), com a correção de 7,2%. Desde 2018, os gastos federais só podem aumentar conforme a inflação acumulada em 12 meses, até junho do ano anterior (a partir de 2022 começou a ser corrigido anualmente pela inflação acumulada entre janeiro e dezembro).
No projeto de lei do Orçamento para o próximo ano o teto de gastos primários foi estimado em R$ 1,8 trilhão (R$ 1,7 trilhão para o Poder Executivo e R$ 77,8 bilhões para os demais órgãos), após reajuste do valor previsto para 2022 baseado na estimativa de IPCA de 7,2%. Esse limite foi observado na elaboração da proposta orçamentária (página 9).
Entram nessa conta as despesas primárias dos poderes Executivo, Legislativo, Judiciário; Ministério Público da União e Conselho Nacional do Ministério Público; e Defensoria Pública da União. Na tabela abaixo, desenvolvida pelas consultorias do orçamento do Senado e da Câmara dos Deputados, confira os limites para cada órgão:
O que são despesas primárias?
As despesas primárias são os gastos do governo com o custeio da máquina pública. Isso inclui o pagamento de salários de servidores públicos, compras de materiais e equipamentos, investimentos em obras, benefícios sociais, aposentadorias — basicamente, todos os gastos que não são destinados ao pagamento da dívida pública, que são denominados “despesas financeiras”.
O que está fora do teto de gastos?
Além das despesas financeiras, a legislação determina que não se aplicam ao teto de gastos:
1 - Transferências constitucionais relativas ao Fundo Constitucional do Distrito Federal; repartição de recursos arrecadados a título de participação no resultado e de compensação financeira referentes à produção de petróleo e gás natural, de recursos hídricos para fins de geração de energia elétrica e de outros recursos minerais; repartição de impostos; repartição da contribuição do salário educação; e à complementação da União ao Fundo da Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica - Fundeb (página 28).
2 - Créditos extraordinários somente para atender a despesas imprevisíveis e urgentes, como as decorrentes de guerra, comoção interna ou calamidade pública;
3 - Despesas não recorrentes da Justiça Eleitoral com a realização de eleições;
4 - Despesas com aumento de capital de empresas estatais não dependentes.
Qual é o efeito esperado pelo teto de gastos?
Projeção do Tesouro Nacional, publicada em junho deste ano, é de que ocorra a reversão para superávit primário (resultado positivo de todas as receitas e despesas do governo, excetuando gastos com pagamento de juros) em 2024, pela primeira vez desde 2013. Contudo, o estudo indica que tal cenário só será concretizado se for mantido o crescimento das receitas combinado com a manutenção do teto de gastos (página 22).
O Relatório de Acompanhamento Fiscal publicado em outubro pela Instituição Fiscal Independente (IFI), do Senado Federal, aponta que a meta de resultado primário de 2022 deve ser cumprida com larga folga, mas o cenário para 2023 preocupa (página 36). Existe a expectativa de que as despesas primárias assumam valores maiores que os projetados no PLOA 2023, o que exige cautela. “A prorrogação de gastos e benefícios tributários para o próximo exercício elevam o risco de descumprimento das regras fiscais”, diz o estudo (página 37).
A partir de 2026, o presidente da República poderá alterar a forma de correção de despesas uma vez a cada mandato presidencial, enviando um projeto de lei complementar ao Congresso Nacional.
O que acontece se o teto de gastos não for cumprido?
A legislação estabelece que o Poder que descumprir o teto será impedido, no ano seguinte, de adotar medidas como dar aumento salarial, contratar pessoal, realizar concurso público e criar novas despesas. Por causa disso, para “furar” o teto é preciso modificar a legislação.
O teto de gastos já foi furado?
O governo Bolsonaro “furou” o Novo Regime Fiscal cinco vezes, sempre com aprovação do Congresso por meio de Propostas de Emenda à Constituição (PECs). No total, foram mais de R$ 200 bilhões acima do teto (página 26):
– Emenda Constitucional nº 102/2019 - Permitiu ao governo federal não contabilizar no teto de gastos transferências para estados e municípios relacionadas à repartição da cessão onerosa do pré-sal. No total, foram repassados R$ 46,1 bilhões para os entes federativos.
– Emenda Constitucional nº 109/2021 - Durante sua tramitação no Congresso ficou conhecida como PEC Emergencial, por tramitar durante a pandemia da Covid-19. Permitiu ao governo reservar, em 2021, até R$ 44 bilhões do Orçamento para pagar o auxílio emergencial sem precisar cumprir regras fiscais, como limites de gastos e endividamento. Como contrapartida ao novo auxílio, a PEC aprimorou gatilhos que são acionados quando os gastos do poder público atingem um determinado patamar (95% das despesas totais) – basicamente, visam controlar as despesas com funcionalismo público, como a proibição de reajustar salários e promover concursos.
– Emenda Constitucional nº 113/2021 - Chamada inicialmente PEC dos Precatórios, foi responsável por mudar as regras para pagamento das dívidas do setor público reconhecidas pela Justiça. Criou uma nova metodologia para o cálculo do teto de gastos da União – até então corrigido anualmente pela inflação no intervalo entre julho do ano anterior e junho do ano corrente. Pela nova regra, o teto passou a usar a partir do Orçamento de 2022 a inflação acumulada entre janeiro e dezembro. O recálculo do teto abriu R$ 69,6 bilhões no orçamento e viabilizou o pagamento do Auxílio Brasil de R$ 400, em substituição ao Bolsa Família.
– Emenda Constitucional nº 114/2021 - Segunda parte da PEC dos Precatórios, estabeleceu um limite máximo de pagamento dessas dívidas, a partir de um cálculo que leva em conta o valor pago em 2016, o que reduziu o total para cerca de R$ 43 bilhões em 2022, que foram empregados em seguridade social e no programa Auxílio Brasil.
– Emenda Constitucional nº 123/2022 - Conhecida como PEC Kamikaze, permitiu ao governo Bolsonaro gastar, fora do teto de gastos, mais R$ 41,2 bilhões até o fim deste ano para aumentar benefícios sociais (apenas para o Auxílio Brasil foram direcionados R$ 26 bilhões), conceder ajuda financeira a caminhoneiros e taxistas, ampliar a compra de alimentos para pessoas de baixa renda e diminuir tributos do etanol.
Por que Lula pode ‘furar’ o teto de gastos?
Um dos pontos que tem feito o governo eleito cogitar alterações no teto de gastos envolve a manutenção do pagamento de R$ 600 mensais do Auxílio Brasil. O benefício, originalmente fixado em R$ 400, recebeu um reforço de R$ 200 por meio da Emenda Constitucional nº 123/2022, cuja validade termina em 31 de dezembro deste ano.
Técnicos do Senado e da Câmara apontam que a manutenção do valor de R$ 600 exigirá aporte adicional de R$ 52 bilhões e rediscussão das regras fiscais vigentes (página 11, item 14). Afinal, o projeto de lei do Orçamento para 2023 não contempla os R$ 600 prometidos por Lula e Jair Bolsonaro (PL) durante a campanha (página 9, item 4).
Como Lula pode ‘furar’ o teto de gastos?
Para “furar” o teto de gastos e aumentar a margem no orçamento, Lula tem, pelo menos, duas opções: protocolar uma PEC, como fez Bolsonaro durante seu governo, ou abrir crédito extraordinário via Medida Provisória, que teria força de lei assim que publicada.
A PEC pode ser apresentada pelo presidente da República, por um terço dos deputados federais ou dos senadores ou por mais da metade das Assembleias Legislativas, desde que cada uma delas se manifeste pela maioria relativa de seus componentes. Ela é discutida e votada em dois turnos, em cada Casa do Congresso, e será aprovada se obtiver, na Câmara e no Senado, três quintos dos votos dos deputados (308) e dos senadores (49).
Até a publicação desta reportagem, a apresentação de uma PEC era a possibilidade mais provável cogitada pelo novo governo para ultrapassar o teto de gastos. A proposta também permitiria reajustar o salário mínimo acima da inflação.
Já a Medida Provisória é uma norma com força de lei editada pelo presidente da República em situações de relevância e urgência. Apesar de produzir efeitos jurídicos imediatos, precisa da posterior apreciação pelas Casas do Congresso para se converter definitivamente em lei ordinária.
A edição da Medida Provisória, tão logo Lula assuma o Palácio do Planalto, é vista por parte da equipe do presidente eleito como a mais eficiente para garantir o Auxílio Brasil a R$ 600, já que a PEC exige um esforço parlamentar para ser aprovada. Entretanto, uma preocupação é quanto à segurança jurídica para abrir crédito extraordinário da forma tradicional fora do teto de gastos – uma das exceções previstas é justamente a abertura de crédito extraordinário para atender despesas imprevisíveis e urgentes. Por outro lado, esses recursos não podem ser usados para pagar despesas previsíveis, conforme avaliação do Tribunal de Contas da União (TCU).
Editado por