Como o Brasil saiu das urnas?

Como o Brasil saiu das urnas?

O Brasil saiu das urnas menos bolsonarista, mas não menos conservador

Boletim Ponto 

As eleições também significaram, até aqui, um basta à política do tensionamento permanente promovido por Bolsonaro e pelos terraplanistas - Carolina Antunes / Fotos Públicas

 

O primeiro turno trouxe a política de volta às eleições depois da onda anti-sistema dos últimos anos

O primeiro turno trouxe a política de volta às eleições depois da onda anti-sistema dos últimos anos. Trouxe também de volta a esquerda. Já a covid-19 que nunca nos deixou, também “está de volta”.

1. Gregos e troianos. O Brasil que saiu das urnas neste domingo é menos bolsonarista, mas não menos conservador, com uma esquerda com menos prefeitos e vereadores, mas renovada e mais plural. Não há motivos para euforia, nem para depressão, sintetiza Rodrigo Vianna no Brasil de Fato, e há pistas do que poderá ser 2022, ainda que muita água vá passar por esta ponte. Por enquanto, talvez seja possível afirmar que a onda da antipolítica virou marola. 

Em tempos de pandemia e com a população preocupada com os temas locais, candidatos identificados como políticos e gestores experientes tiveram sucesso, a exemplo do considerável número de prefeitos reeleitos em primeiro turno nas capitais. Outro indício do esgotamento da onda antipolítica é a participação eleitoral.

Embora o grau de abstenção tenha sido maior do que em 2018, o índice de 23% pode ser considerado moderado considerando a pandemia e ficou aquém das previsões de alguns integrantes do TSE. Para Helena Chagas, o primeiro turno também significou um basta à política do tensionamento permanente promovido por Bolsonaro e pelos terraplanistas e o que o segundo turno definirá qual será a condição de governabilidade de um Bolsonaro desidratado.

2. Romeu e Julieta. De um lado, Bolsonaro foi um desastre em todos os quesitos e modalidades como cabo eleitoral: de cada 5 candidatos a vereador apoiados por Bolsonaro, 4 não se elegeram e dos 78 “Bolsonaros” inscritos na eleição, apenas Carlos se elegeu. Já a direita tradicional travestida de “centro”, surfou nas ondas da ideologia antiesquerda e nas relações privilegiadas com quem tem as chaves do Orçamento Geral da União.

É verdade que ideologicamente o centrão tem mostrado afinidade com as reformas e o programa ultraliberal de Guedes e Bolsonaro. Por outro lado, um presidente enfraquecido é como o cheiro de sangue para os tubarões do Centrão. É provável que Bolsonaro fique cada vez mais refém dos partidos da centro-direita e tenha que envolver-se crescentemente nas tradicionais distribuições de cargos e de verbas para governar.

Isto pode levar a uma completa auto-destruição do “mito” que o tornou viável eleitoralmente em 2018. Seria uma espécie de Bolsonaro sem bolsonarismo. Para Antônio Martins, Bolsonaro repetiria o governo Sarney: o Centrão arrancará concessões, sangrando o governo aos poucos, mas se o sentirem demasiado fraco e se enxergarem que há uma alternativa segura, os partidos fisiológicos abandonarão Bolsonaro à própria sorte. Mas, pergunta Paulo Pinto no Poder360, e se a direita não produzir esta alternativa viável?

Bolsonaro por enquanto é presidente e, até o momento, não encontrou um desafiante à altura e eleitoralmente viável para 2022. “Se Bolsonaro retiver a capacidade hegemônica sobre seu campo, esse "centro" agora vitaminado não terá como deixar de endossá-lo, nem que seja num eventual segundo turno” escreve Alon Feuerwerker. Neste caso, a sua principal ameaça seriam justamente os candidatos da centro-direita, os ensaios de um "bolsonarismo sem Bolsonaro".

3. Acabou a mamata. Independente dos resultados desta eleição, o fato é que em 2022 Bolsonaro não será mais uma incógnita e será julgado pelos eleitores pelo que realmente fez no governo. Além do risco de se tornar refém do Centrão, outros sinais de alertas estão acesos no Planalto. Em primeiríssimo lugar, a economia.

O auxílio emergencial termina em dezembro e o governo não conseguiu propor nada para o seu lugar. Nem o natimorto Pró-Brasil e nem qualquer planos de obras saiu do papel. Com a crise tendendo a se agravar, Bolsonaro precisa desesperadamente de uma agenda positiva real e de efeito rápido, constata Thales Guaracy. Para isso, não deve contar com muita imaginação e nem eficiência da parte de Paulo Guedes. Muito menos com a cumplicidade do Congresso: para os parlamentares, 2020 vai terminar sem a votação de nenhumas das reformas considereadas centrais pelo governo, nem a tributária, nem a administrativa. No horizonte de curto prazo do Congresso está, no máximo, a votação da Lei de Falências.

Além disso, depois das eleições norte-americanas, aumentam as pressões para que ministros mais radicais como Ernesto Araújo e Ricardo Salles, sejam demitidos, o que pode esvaziar ainda mais o bolsonarismo raiz. Ao mesmo tempo, uma parte da ala militar dá sinais de que não pretende sustentar indefinidamente as aventuras de Jair. Evidentemente, é muito difícil também governar quando seu filho é denunciado pelo Ministério Público por 146 depósitos com origem desconhecida e a ABIN e o Gabinete de Segurança Institucional precisam ser mobilizados para defendê-lo, como deve apurar a notícia-crime instaurada pela Procuradoria Geral da República (PGR).

4. E pur si muove. Do lado de cá da trincheira, as eleições trouxeram certo alívio. Mesmo que Boulos não vença em São Paulo, a esquerda já conquistou uma vitória moral, mostrou que segue viva e que tem um papel a cumprir. Neste caso, os símbolos são mais fortes que os números, pois do ponto de vista de prefeitos e vereadores eleitos, a esquerda continua desidratando.

Mas há mudança de qualidade, com vitórias em cidades importantes, adesão de setores jovens, maior pluralidade de organizações e de ideias e representatividade social. Além disso, de acordo com Maria Victoria Benevides no IHU, o segundo turno surge como uma oportunidade para reforçar o espírito de unidade da esquerda, pelo menos em torno das candidaturas de Guilherme Boulos (PSOL),  Manuela D´Ávila (PCdoB) e José Sarto (PDT).

Em tempos de bolsonarismo, o simbolismo é forte, já que isto significa que há luta na sociedade e que as urnas podem ser um canal de expressão da resistência. Neste sentido, a esquerda tem alguns desafios pós-eleitorais. O primeiro deles, como alerta Valério Arcary, é os partidos não se deixarem reduzir a meras agrupamentos parlamentares, já que a lógica da política partidária brasileira tem incentivos para isso.

O segundo será o de articular a força das pautas identitárias com um projeto político e econômico alternativo ao neoliberalismo. Mais do que o discurso eleitoral, isto vai depender da capacidade dos prefeitos e vereadores eleitos governarem efetivamente para a maioria da população, contando com poucos recursos e sob permanente ataque da direita.

5. Representatividade. A esquerda também deve comemorar a vitória simbólica da eleição de mais mulheres, negros, indígenas, homossexuais e transgêneros. A bancada LGBTi+ triplicou o número de eleitos. Em 13 capitais do país, mulheres negras e trans ficaram entre os dez candidatos mais votados, e o número de prefeitos identificados como indígenas subiu de 6 para 8. Houve um avanço significativo, mas a esfera política ainda está muito longe de representar a diversidade da sociedade. Como exemplo, cerca de 17% dos municípios brasileiros continuam sem nenhuma vereadora eleita.

Ao mesmo tempo é preciso reconhecer que a esquerda não detém o monopólio da representatividade dos setores historicamente oprimidos da sociedade. Isso não apenas na esfera partidária. A Rede Globo é uma das organização que, depois da eleição de Bolsonaro, passou a apresentar-se como a campeã da igualdade racial e da diversidade de gênero, como demonstram iniciativas como a Plataforma Celina e a forte cobertura do movimento Black Lives Matter nos Estados Unidos. O mesmo acontece no âmbito partidário em nível municipal. 

O caso dos indígenas é sintomático, pois a maior parte dos 8 prefeitos eleitos são vinculados a partidos de centro ou direita. Os prefeitos eleitos identificados como pretos ou pardos têm presença em diferentes extremos do espectro partidário. Já no caso da comunidade LGBT a esquerda está melhor, pois PT, PSOL e PDT concentram a maior parte dos eleitos. Em especial, porque a nova direita considera um valor ser machista, racista e homofóbico. No dia seguinte à eleição, o vereador Valter Nagelstein, derrotado na disputa para prefeitura de Porto Alegre, distribuiu um aúdio classificando os vereadores negros eleitos como “sem experiência, sem trabalho e sem qualificação”. Já a professora Ana Lúcia Martins (PT), primeira vereadora negra eleita em Joinville (SC), sofreu ameaças de morte e ataques de neonazistas.

6. Ataque preventivo. Para quem estava acostumado a rir do processo eleitoral nos EUA, o atraso de duas horas e meia na apuração do primeiro turno frustrou a expectativa em conhecer os novos eleitos rapidamente. Pela primeira vez, a apuração foi centralizada nacionalmente e o atraso foi causado por um componente do supercomputador responsável pela contagem geral. A falha não teve nenhuma relação, mas acabou fortalecendo um outro movimento coordenado, o de ataques por hackers ao TSE na manhã de domingo, tornando lento o sistema, e o de bolsonaristas nas redes sociais pelo voto impresso.

Como prova de que se tratava de uma ação coordenada também politicamente, na segunda-feira (16), Bolsonaro falou na necessidade de um “sistema eleitoral aperfeiçoado” e de que “a população quer uma apuração que possa demorar um pouco mais”, mas que “o voto que essa pessoa deu vá para aquela pessoa de fato”.

Com a aposta no papel de vítima de um misterioso complô, além de reproduzir a fala do seu ídolo Donald Trump, Bolsonaro prepara o terreno para uma reação a uma provável derrota em 2022, resume Thomas Traumann. Como lembra o professor Odilon Caldeira Neto (UFJF), do Observatório da Extrema Direita, esta deslegitimação do sistema eleitoral é um dos elementos que caracterizam a mitologia do Bolsonarismo e do Trumpismo: o estímulo à antítese entre uma ideia de "elite corrupta" e o "povo verdadeiro".

7. Tsunami. Falar em uma segunda onda de infecções da Covid-19 seria pressupor que em algum momento a primeira onda se esgotou. Na prática, houve uma desaceleração, mas durou apenas uma semana entre o registro do menor índice de mortes dos últimos seis meses e a retomada dos casos. Na quarta-feira (18), o Conselho Nacional de Secretários de Saúde (Conass) informou que a média móvel de mortes chegou a 584 e indicam alta no número de contágios, com 34.091 novas infecções pelo coronavírus.

Oito capitais têm apontado tendências de crescimento e Rio e São Paulo já registram aumento da taxa de ocupação de leitos. Diante de um cenário de recrudescimento, o que os cientistas sugerem? A adoção das medidas que demonstraram eficácia como o isolamento social.

E o que o governo Bolsonaro pretende fazer? O mesmo que tem feito desde o início da pandemia, ignorar o vírus e tentar combatê-lo com o poder da imaginação. No encontro dos BRICS Bolsonaro criticou a OMS por seu “pretenso monopólio do conhecimento” e defendeu reformas na instituição. Já internamente, cogita inclusive organizar uma frente de prefeitos eleitos anti-isolamento para pressionar os governadores.

Enquanto isso, com o recrudescimento da pandemia, escolas particulares que haviam retomado as aulas presenciais começam a fechar novamente. Se na economia, o governo deve extinguir o auxílio emergencial e não prevê nenhum outro mecanismo de proteção; na saúde, o horizonte é menos auspicioso: em plena pandemia, Bolsonaro deve cortar R$43 bilhões do orçamento da saúde, enquanto o lobby privado na saúde ameaça o Sistema Único de Saúde (SUS) no Congresso.

Se por um lado, os anúncios dos desenvolvedores nesta semana foram positivos - Moderna e Pfizer anunciaram eficácias acima de 90% de suas vacinas - e da chegada das primeiras doses da Coronavac em São Paulo; por outro, o governo brasileiro restringiu suas apostas unicamente à vacina da AstraZeneca/Oxford e agora corre atrás dos outros fabricantes, o que significa entrar no fim da fila ou disputar as doses no mercado global, tendo agora a sombra dos Estados Unidos, campeão de infecções e com uma nova gestão disposta a enfrentar o vírus com ciência.

8. Sem luz. Sim, passou-se o primeiro turno das eleições, chegou a segunda onda da pandemia e o Amapá segue sem luz. Isso apesar da promessa feita por Bolsonaro em sua live de que na quarta-feira (17) o problema estaria resolvido. O ministro de Minas e Energia agora deu uma nova data, 26 de novembro, para a volta a normalidade no abastecimento. Pelo menos será antes do natal! Bolsonaro prefere evitar tocar no assunto e ignora as perguntas de jornalistas.

O apagão foi iniciado no dia 3 de novembro e somente quatro dias depois a Companhia Elétrica do Amapá conseguiu estabelecer um precário sistema de rodízio. No segunda-feira (16) chegou a Macapá uma carga de geradores termelétricos para restabelecer o fornecimento de energia de forma emergencial, mas no dia seguinte um novo apagão total agravou novamente a situação.

Agora o juiz federal João Bosco decidiu afastar por trinta dias a diretoria da Agência Nacional de Energia Elétrica (Aneel) e do Operador Nacional do Sistema (ONS) até que sejam concluídas as investigações que o Tribunal de Contas da União (TCU) e a Polícia Federal estão fazendo sobre o incidente. Uma comitiva do Ministério de Minas e Energia foi recebida com protestos no estado nesta quinta-feira (19). 

reportagem de Catarina Barbosa para o Brasil de Fato afirma que há evidências de que a Aneel e a ONS sabiam da possibilidade de um apagão no Amapá e de que a subestação Macapá operava no limite da capacidade há cerca de dois anos.

Natural do estado e com um irmão na disputa pela prefeitura de Macapá, o presidente do Senado David Alcolumbre pressiona o governo federal para criar um auxílio emergencial específico pelos atingidos pelo apagão, além de um crédito compensatório já aprovado no próprio Senado. Apesar da gestão privada da energia elétrica no estado, o socorro proposto pelo governo federal sairá da Conta de Desenvolvimento Energético (CDE), um fundo destinado a políticas públicas do setor elétrico e financiado por todos todos os consumidores brasileiros, que pagarão com acréscimos na conta de energia elétrica.

9. Ponto Final: nossas recomendações de leitura

Por que votei de novo em Donald Trump. O El País demonstra como os resultados positivos na economia alimentaram a votação de Donald Trump em Ohio.

O exército de obreiros da Universal na guerra santa por votos. Investigação da Agência Pública demonstra os métodos irregulares da Igreja Universal para alavancar candidatos nos seus templos.

Uma agenda econômica para resgatar o Brasil. Os economistas Pedro Rossi, Marco Antonio Rocha, Esther Dweck, Ana Luiza Matos de Oliveira e Guilherme Mello propõe uma agenda de crescimento econômico com preservação ambiental e transformação social para atacar as múltiplas desigualdades do país.

A contagem regressiva para a próxima pandemia. Destruição da natureza, produção de alimentos e animais em escala industrial e urbanização são as três receitas pelas quais novas epidemias vão eclodir nos próximos anos.

E se o mundo, de repente, virasse um grande Amapá? No El País, o cientista Miguel Nicolelis parte da crise energética no Amapá e explora os riscos que uma tempestade geomagnética representaria para a vida humana.

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Edição: Rogério Jordão

 

https://www.brasildefato.com.br/2020/11/20/o-brasil-saiu-das-urnas-menos-bolsonarista-mas-nao-menos-conservador 




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