Concepções da base da formação

Concepções da base da formação

Uma base para a formação: que concepções a informam?

O CNE disponibilizou para consulta em seu site, a 3a. versão do Parecer sobre as Diretrizes Curriculares Nacionais e Base Nacional Comum para a Formação Inicial e Continuada de Professores da Educação Básica. 

Chama atenção a capacidade da  equipe que compõe a Comissão Bicameral de formação de Professores, de ignorar, secundarizar, desprezar o esforço de construção das DCNs de 2015  no interior do próprio Conselho, após dois anos de debates, consultas e audiências públicas, nos quais foram recuperadas e sistematizadas, não sem dilemas e conflitos no próprio CNE,  concepções importantes construídas pelo movimento dos educadores ao longo dos últimos 40 anos de luta por uma politica nacional de formação e valorização dos profissionais da educação.

Mas, o CNE deixou de lado também outras questões importantes. No afã de tornar os professores responsáveis pelo sucesso ou fracasso dos estudantes nos processos de aprendizagem, deletou de sua memória histórica o quadro em que se desenvolve a formação de professores em nosso país.

Fez uma escolha: optou por referenciar-se em outros países, entre eles Chile, laboratório das politicas neoliberais na América Latina nos tempos pós- ditadura Pinochet e a Austrália, berço das politicas neoliberais juntamente com a Inglaterra na era Tatcher, nos anos 90. Países que agora amargam duramente os impactos de tais politicas na formação da infância e da juventude. Saudosos dos tempos passados, retomam velhas idéias com nova roupagem, que já não cabem no quadro atual da formação de professores.

Do que falamos nós, educadores?

Temos afirmado ao longo dos últimos 40 anos, que a formação de professores se relaciona intrinsecamente ao desenvolvimento da educação básica, comprometida com a formação integral das novas gerações. A exigência de uma politica global de formação, que contemple a formação inicial e continuada, condições de trabalho, salário digno e carreira, sintonizada com as demandas do processo de trabalho pedagógico e as demandas formativas da infância e da juventude, é uma necessidade histórica,   profissional.  Mas esta formulação se mostra há décadas, insuficiente, o que mobilizou os educadores a avançar para outras formulações que incluem a exigência de formação superior de todos os professores em Universidades, pelo caráter elevado da formação, dada a indissociabililidade entre ensino-pesquisa e extensão no trabalho docente universitário, em que pese as dificuldades enfrentadas ao longo dos anos.

O fortalecimento das Faculdades de Educação, no interior das Universidades, por sua responsabilidade cientifica e acadêmica, na produção de conhecimento na área das ciências da educação e das ciências pedagógicas, é outra das condições necessárias para o desenvolvimento de projetos sintonizados com as demandas de nosso tempo e de estudantes comprometidos com um projeto histórico de sociedade que busca a superação da desigualdade, da discriminação, da opressão, da violência e da miséria que toma grande parte de nossas crianças na escola pública

Hoje, grande parte das licenciaturas se desenvolve em instituições privadas, em Faculdades – com professores horistas, sem carreira e alheios a pesquisa – em cursos noturnos e grande parte à distância, conforme Censo do Ensino Superior 2018 .  Mesmo a desenvolvida em Universidades privadas, há que se considerar a expansão desenfreada de cursos de licenciatura à distância, condição que não contribui para a formação de professores que logrem responder aos desafios com que se defrontam cotidianamente nas escolas públicas.

Assim, as condições perversas que contribuem para degradação de uma profissão –  a baixa qualidade da formação e a ausência das condições adequadas de trabalho entre as quais se inclui a baixa remuneração, a ausência de uma carreira para além da ascensão por titulação, e de jornada adequada, concentrada em apenas uma escola – estão presentes em nossas escolas públicas há décadas, comprometendo o desenvolvimento pleno das potencialidades dos professores em seu trabalho pedagógico, submetendo grande parte deles a dupla jornada em 02 ou mais escolas e a condições de stress provocadas pelo sentimento de auto responsabilização diante das demandas constantes dos sistemas em decorrência das avaliações nacionais.

O assédio mercantil dos últimos anos sobre estados e municípios, hoje praticamente tomados pelas ONGs, entidades assistenciais, fundações empresariais como Leman, Itau Social entre inúmeras outras e universidades  privadas , abriu a disputa do “mercado educacional” criado pela centralidade da formação de professores nos processos de mudança em curso.

Do que fala o CNE 

O presente Parecer,  que necessita melhor análise, é a materialização da reforma empresarial no campo da formação de professores, reforma almejada desde os anos 90, interrompida pelos governos progressistas que se sucederam a partir de 2003, e retomada em 2012, pelos diferentes setores dentre os quais se destaca o empresariado, organizado no Todos pela Educação e no Movimento pela Base.

Estes setores têm na BNCC construída por eles, o seu carro chefe para consolidar um currículo nacional obrigatório, padronizado, que possibilite melhor avaliar os estudantes, os professores e as escolas. Com isso, criam-se as bases para uma politica de responsabilização educacional que se fundamenta na meritocracia, com distribuição de bônus e incentivos a escolas, gestores e comunidade escolar com melhor desempenho nas provas nacionais,  como prevê a Estratégia 7.36  do PNE.

Nesta 2a. etapa da reforma da formação de professores, temos o retorno de um quase currículo minimo, já superado nos anos 90 com as DCNs de todos os cursos. A proposta que ora se desenha, caminha na mesma direção da BNCC e funcionará na mesma lógica – padronizar a formação para poder aumentar o controle sobre o trabalho docente, avaliar, premiar, certificar através de exames , creditar as instituições que se “alinhem” à proposta em curso. O Parecer é claríssimo quanto a este objetivo:

“A experiência internacional também mostra que para formação inicial de professores, os referenciais podem estar alinhados aos mecanismos de avaliação e acreditação dos cursos de formação inicial e avaliações dos estudantes ou recém-graduados. Também podem estar articulados à mecanismos de certificação ou registro para controlar o ingresso na carreira docente. Ao longo da carreira, eles podem impactar o desenvolvimento profissional e a formação continuada, e podem estar vinculados à permanência e progressão na carreira por meio de certificações, avaliações e aumentos salariais. Vale, entretanto, salientar que não é necessária a adoção de todos esses mecanismos, mas que algum mecanismo seja adotado de forma que os referenciais impactem nos processos de ensino e de aprendizagem. 

Resta saber como, em tempo de Corte dos gastos, de reforma trabalhista e uberização do trabalho docente e reforma previdenciária que retira direitos, ainda teremos jovens que queiram abraçar uma profissão que além de desvalorizada, eleva o controle do trabalho dos professores.

Como vimos no post anterior (acesse aqui), a proposta de BNC da Formação de Professores,  consubstanciada na 3a. versão do Parecer do CNE divulgado no ultimo dia 23,  fundamenta suas proposições nas experiências de países que implementam, desde a década de 90, as reformas empresariais na educação.

Neste momento em que debatemos as concepções presentes no Parecer que pretende revisar as DCNs de 2015 amplamente discutidas durante dois anos, no âmbito do CNE e das IES formadoras, é importante que desvelemos a que vieram estas proposições, no atual momento histórico estabelecendo as relações necessárias entre as concepções construídas nos últimos 40 anos no campo da formação de professores e aquelas que pretendem desconstruir, de forma autoritária, tais proposições, reduzindo o debate a uma audiência pública e a consultas públicas via internet.

Este Parecer revela em seus fundamentos, a sintonia com politicas educativas e de formação de professores desenvolvidas em países que adotaram a agenda neoliberal desde a década de 90, como Austrália e Chile. Tais reformas educativas visaram conformar as políticas da educação básica às novas exigências demandadas pelas alterações no âmbito da organização do trabalho, criando currículos padronizados, testes censitários e avaliações em larga escala,  privatização de escolas via vouchers e entrega de escolas a organizações sociais e fundações empresariais, gerando, nos diferentes países, um quadro de crise educativa e em alguns casos, de aprofundamento da exclusão escolar.

Nesse processo, tensões e desafios no campo da formação de professores se  intensificam, aprofundando as contradições históricas e revivendo os embates entre projetos históricos de educação, escola e sociedade e seus  dilemas práticos e teóricos ainda não enfrentados adequadamente pelas politicas públicas.  A formação de professores, como área estratégica para o capital por agregar valor ao seu processo de exploração e acumulação, é o alvo principal das atuais politicas educativas  no âmbito da união, dos estados e municípios demandando articulações com as áreas de gestão, currículo, avaliação e financiamento.

No Brasil, assim como em todo o mundo, observamos nos ultimos anos, a intensificação do interesse dos setores empresariais pelos problemas da educação, principalmente o Todos pela Educação, Fundação Lemman, Fundação Itaú Social e, ultimamente, o Movimento pela Base no âmbito do currículo, com a BNCC. Este interesse do empresariado pelas questões de currículo e de avaliação da educação básica e da formação dos professores,  entretanto, não permitirá enfrentar os reais problemas educativo na direção que as forças progressistas esperam e que nosso povo necessita. Como já alertava a ANFOPE, em 92, (acesse aqui) “as soluções liberais contêm seu próprio projeto político. Ainda que sua implantação não se dê sem algum grau de contradição, no geral, visa adequar a escola e os professores às necessidades do novo padrão de exploração da classe trabalhadora, como vem ocorrendo desde os anos 80 e 90, com as alterações no âmbito do desenvolvimento econômico e produtivo”.

Foi na esteira destas reformas já em curso no MEC, que a LDB , em 96, estabeleceu originalmente, a necessidade de base nacional comum, formulação que, sem adjetivar “curricular”, demarca a diferença entre uma base comum de caráter unitário e universal, e um currículo minimo obrigatório. Mas, 18 anos depois, no contexto de construção do impeachment e do golpe jurídico parlamentar de 2016, que o MEC, sob pressão do empresariado reunido no Movimento pela Base e no Todos pela Educação, dá andamento à elaboração da BNCC juntamente com a reforma do ensino médio. Ficam claras, então, as intenções e as razões que justificaram a presença massiva destes movimentos na implementação de uma reforma empresarial no campo da educação, na defesa de um currículo nacional padronizado para avaliar gestores e professores como afirmava o Todos pela Educação em 2012. Um currículo nacional padronizado – a BNCC – de caráter obrigatório para todos os sistemas de ensino, de modo a aumentar o controle ideológico sobre o  que se ensina  e como se ensina nas escolas públicas, criando uma cadeia de ações que objetivam, na sequência, avaliar e responsabilizar professores e gestores; premiar e punir gestores, professores e escolas, criando as bases para um processo de  privatização das escolas que não logrem atingir as metas do Ideb.  Ao criar a competição entre classes, escolas, e redes, tais politicas impactam negativamente no desenvolvimento emocional e na autoestima dos estudantes, acentuam o individualismo, potencializado com a concepção de empreendedorismo pessoal e a competição, dificultando o desenvolvimento da solidariedade, do respeito a diversidade, a pluralidade de concepções e de metodologias, fortalecendo o incremento de iniciativas como a política de padronização do material didático passo a passo e plataformas on-line que padronizarão as “soluções pedagógicas” aos professores, acrescidas do material passo a passo para implementá-las. Quem não se lembra dos Parâmetros em Ação dos antigos PCNs?

A proposta de BNCC , no entanto, impõe outra lógica à organização da escola, rompendo com a idéia de ciclos de aprendizagem, ao propor a objetivos por série/disciplina para melhor avaliar professores e estudantes; fragmentação disciplinar que contraria o princípio fundamental da unidade metodológica no trabalho coletivo e interdisciplinar na educação básica.

Mas o caráter essencial da BNCC (leia aqui)o  é sua sintonia com as competências e habilidades emocionais necessárias ao capital em sua fase atual, que desenham a formação de um novo trabalhador,  com novas e mais complexas habilidades, considerando os processos de informatização e robotização que conformam o novo padrão de exploração da classe trabalhadora pelo capital em sua fase atual.

Como também afirmava a ANFOPE, em 92, no calor das proposições neoliberais do Educação para Todos, no novo padrão de exploração da classe trabalhadora, “o grau de instrução não é um fator secun­dário. Novas habilidades, e mais complexas, estão sendo requeri­das, como a capacidade de trabalhar em equipes integradas, maior capacidade de abstração, maior capacidade para comunicaç­ão lateral com os colegas, mais iniciativa e cooperação na operação da maquiná­ria. Estas habilidades não podem ser desenvol­vidas em cursinhos rápidos no interior das fábricas ou a partir do próprio exercício no posto de trabalho. São habilidades típicas de serem desenvol­vi­das pela escola, pelo ensino regular”.

É por essa razão que a formação de professores passa a ser estratégica para a implementação das reformas curriculares.  A aprovação da reforma do Ensino Médio em 2017  deu o 1º passo no aprofundamento da regulação da formação, ao propor a alteração da LDB em seu Art.62 , § 8o para indicar que Os currículos dos cursos de formação de docentes terão por referência a Base Nacional Comum Curricular.  A extensão do controle sobre a formação inicial dos professores, sobre os conteúdos e percursos formativos dos cursos de licenciatura,  retoma a proposição de currículos organizados por competências e  habilidades sócio emocionais obrigatórias para os futuros professores da educação básica.

Como afirma o Parecer, (pág 18) É bem verdade que as competências socioemocionais sempre foram desenvolvidas no âmbito escolar, contudo, no momento em que se evidencia que o desenvolvimento delas promove avanços no aprendizado dos estudantes e impactam suas vidas no momento atual e no futuro, estas deixam de ser ocasionalmente promovidas por docentes bem-intencionados e passam a configurar como prática pedagógica altamente relevante, intencional e, no bojo da BNCC, obrigatórias. Como tais, demandam que os próprios professores também as desenvolvam e as dominem. O conceito de competência da BNCC envolve a mobilização de conhecimentos, habilidades cognitivas e socioemocionais, atitudes e valores para o enfrentamento de demandas complexas. As habilidades socioemocionais são essenciais para o desenvolvimento das 10 competências gerais da BNCC. 

O alinhamento da formação de professores à BNCC, tal como se apresenta no Parecer do CNE, representa um retrocesso na concepção de formação, com a  retomada de proposições derrotadas na década de 90, pós-LDB, tais como

  1.  rebaixamento da formação teórica (Cf  pag 28 1123-1144) no campo dos fundamentos  das ciências da educação e ciências pedagógicas, em conflito com as mais avançadas proposições  construídas pela área da educação e das licenciaturas nas áreas especificas, pelos educadores em suas entidades cientificas, como  ANFOPE e Anped,  que vêm indicando a necessidade de uma sólida formação teórica tanto no campo das disciplinas especificas da educação básica quanto nos fundamentos da educação e das ciências pedagógicas;

  2. a recusa do conceito de base comum nacional , construído pelo movimento dos educadores em luta pela formação de professores desde a década de 70, como um conjunto de princípios orientadores da organização dos percursos formativos em todas as licenciaturas, e na pedagogia, e contemplados nas DCNs 2015, aprovada pelo CNE e assumida pelas IES desde 2015.

  3. a secundarização das IES formadoras publicas dos processos de formação continuada, bem como sua entrega preferencial a organizações sociais e fundações empresariais (leia aqui)

  4. o retorno a uma concepção de formação continuada de caráter técnico -instrumental, reduzindo o professor a um “prático”, que circunscreve sua formação  contínua “alinhada” exclusivamente à BNCC, desenvolvida na própria escola e nas Escolas ou Institutos de Formação das redes, utilizando-se exclusivamente do tempo de 1/3 da carga horária destinada a um conjunto de atividades de avaliação, planejamento e organização do trabalho pedagógico de caráter individual e coletivo.

Outras duas complexas questões são abordadas no Parecer sob análise: a provável alteração da carreira docente, desconhecendo a proposta construída no âmbito do CNE, em 2009, para as Diretrizes Nacionais da Carreira Docente (veja aqui) e os processos de acreditação de instituições formadoras e certificação de estudantes e professores vinculadas à implementação da BNC de Formação de Professores.

 

https://formacaoprofessor.com/2019/09/27/uma-base-para-a-formacao-que-concepcoes-a-informam-ii/

 




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