Contos de fada no skate
Não existem contos de fada no skate
Por Artênius Daniel
Não existem contos de fada no skate. Depois de 48 horas de comoção e talvez a primeira unanimidade nacional em mais de uma década, fica até parecendo que essa é a pátria do amor e respeito ao shape de quatro rodas. Mas o que há, como em todos os movimentos urbanos de contestação, é a história de perseguição e resistência. No país hipócrita das milhares de famílias de classe média imbecilizadas que prometem agora comprar pranchinhas móveis de Natal para todos seus Enzos e Valentinas, quem vive a cultura do skate ganha mesmo é dura da polícia, cacetada, empurrão, olhares de ódio, preconceito, repúdio da vizinhança ou dos entrevistadores de emprego.
No vídeo da incrível Rayssa Leal voando com asas azuis em um heelflip sobre uma escada no centro de Imperatriz (MA), chama atenção - além do talento da agora medalhista – a força da expressão de uma outra menina. Ela entra no plano logo após a manobra, tênis Converse pretos, um celular na mão. E ela vibra com uma intensidade tão afirmativa quanto reveladora de que estão ali vivendo algo sozinhas, resistindo à margem de um sistema geral que só entende aquilo como delinquência ou vagabundagem, desconstruindo um pedaço daquela sociedade e suas regras.
Skatistas são invariavelmente fruto de uma quase cinquentenária tradição urbana de revolta e reinvenção estética e política das cidades marcadas pelo capitalismo e suas desigualdades. Assim como o hip hop, o punk, o hardcore, o skate é uma herança do desarranjo das massas de trabalhadores e trabalhadoras de Londres, Nova York, Los Angeles e outras cidades diante da falência liberalizante de governos como Margaret Thatcher ou Ronald Reagan em dar sentido às vidas daqueles milhões de jovens das periferias das metrópoles. O skate, assim como o rap, o grafitti, o pixo, as danças de rua, é oposição à tentativa de domesticação burguesa dessa parcela de mão de obra. É tentativa de fissurar o universo cativo da sociedade de consumo em suas caixinhas pré-definidas pelo sistema econômico e sua ofensiva de opressão pela indústria cultural. Skate é contracultura frente a uma cultura hegemônica que não o queria ali.
Por isso, obviamente tem linha de choque com o poder constituído. Quem dá rolê na Roosvelt de São Paulo, no viaduto Santa Tereza em BH ou em tantos pontos das cidades brasileiras sabe qual é a relação com policiais e com o resto dos olhares da sociedade. Nos corrimãos da vida real, a hostilidade contra skatistas não arrefece por mais fantasias de fada que vistam. Além da repressão preconceituosa e caricatural em relação ao estereótipo “skatista maconheiro” – apesar da maconha ser uma droga bem mais leve e inofensiva do que, por exemplo, a legalizada cerveja paixão nacional - o que irrita de verdade o olhar sobre o skate é a ideia do ócio, da liberdade de não estar trabalhando pra alimentar essa máquina econômica que está aí, da sensação de perdição da juventude por ela estar ali fazendo o que quer, do jeito que quer, em um espaço que é público, de propriedade dela mesma. Mãos na parede, você está se divertindo e não produzindo.
Tomara que a visibilidade e a genialidade da gigante Rayssa – que ainda vai muito longe – possam afirmar a cultura do skate e não escondê-la em publicidade de operadora de celular e hipocrisia de político branco tiozão pagando de radical com capacete e cotoveleira. Quando a grande prefeita de São Paulo Luiza Erundina lutou politicamente a favor dos skatistas no longínquo ano de 1989, não queria apenas construir meia dúzia de rampas pra botar na prestação de contas, queria dialogar com esse movimento, entender de onde vem, o que representa e pensar junto com ele a transformação do espaço público. É uma ideia de cidade, esporte, cultura, de ocupação que não pode ser alijada de seu caráter crítico, da compreensão social dos sujeitos que ali se expressam e fazem as suas histórias.
Como diz o maior defensor do skate na música brasileira, Chorão do Charlie Brown Jr, a viatura vai continuar parando e enquadrando. Mas skate, rock e hip hop são a irmandade da rua. Ninguém mata essa cultura. Nem com sirene ligada nem com marketing oportunista de TV no horário nobre.
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