Contradições da EaD no país
Seminário aponta contradições da EaD no país
Com uma expansão sem precedentes no Brasil, modalidade domina o ensino privado, rebaixa a qualidade da educação e precariza o trabalho docente
Por Gilson Camargo / Publicado em 27 de outubro de 2023
O percentual de alunos que ingressam na educação superior por Educação a Distância cresceu de 1,5% em 2001 para 65% em 2022. Isolada, essa estatística destacada pelo vice-reitor da Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos), Artur Eugênio Jacobus, no painel de abertura do Seminário Nacional Profissão Professor desta sexta-feira, 27, em Porto Alegre, já oferece uma dimensão do crescimento desenfreado do ensino remoto no país na última década.
“O problema da EaD no Brasil é que essa modalidade é o plano A. Não temos um plano B”, alerta o professor.
O Seminário Profissão Professor realizado pelo Sindicato dos Professores do ensino privado do Rio Grande do Sul (Sinpro/RS), com o apoio da Federação dos Trabalhadores em Estabelecimentos de Ensino (FeteeSul), Sinpro/Noroeste e Sinpro/Caxias, debateu na tarde desta sexta-feira, 27, o crescimento dessa modalidade de ensino nas mãos das empresas de educação e os impactos dessa expansão na qualidade do ensino e nas condições de trabalho dos professores.
Essa foi a primeira edição do seminário após a pandemia. O evento foi criado em 2013 para discutir os grandes temas da educação, mas teve sua sequência interrompida em virtude de eventos como a pandemia.
Na abertura desta quinta edição, o diretor do Sinpro/RS, Marcos Fuhr, lembrou que a educação a distância na educação superior brasileira não tem paralelo em qualquer país que seja minimamente referência no cenário educacional mundial.
“A EaD, nos seus muitos e variados formatos expandiu-se no Brasil de forma desordenada, pautada fundamental, senão exclusivamente, pelos interesses econômicos e financeiros dos empresários do ensino privado”, constata.
A modalidade é absolutamente predominante em número de alunos.
“Para além da sua superioridade numérica em comparação com o ensino presencial, o lobby privado vem conseguindo ampliar o percentual da carga horária também nos cursos presenciais”, aponta.
Essa trajetória de expansão da EaD no país, pontua o dirigente, expressa a mercantilização do ensino e se alicerça na precarização das condições de trabalho dos professores.
“Faltaram leis e ação política na defesa do exercício profissional da docência e da essência do processo educacional, relativizando cada vez mais a qualidade do ensino. Mas esse processo de expansão da EaD continua em curso na educação superior e hoje ameaça também a educação básica”, alertou Fuhr.
Além de denunciar o comprometimento do processo educacional e as ameaças que a EaD representa para a profissão docente, o seminário apontou linhas de ações política e jurídica para a defesa da educação de qualidade e delineou estratégias de luta das entidades em defesa das condições de trabalho dos professores.
“Presenciamos no dia a dia tentativas de acabar com a profissão de professor, com ataques ao fazer docente e aos direitos dos professores e demais trabalhadores da educação, resumiu Ademar Sgarbossa, dirigente da Feteesul.
Valdir Kinn, do Sinpro Caxias e Sinpro Noroeste reiterou a defesa das condições de trabalho dos professores e da qualidade do ensino e lembrou as recentes campanhas das entidades: “Educar tem valor” e “Educação não é mercadoria”.
Expansão sem precedentes no mundo
Não existe um paralelo no mundo para o fenômeno de expansão do ensino a distância no Brasil, um crescimento que se dá no segmento das instituições de ensino privadas com fins lucrativos, mapeou Jacobus.
“Nossa visão é bastante crítica. Na virada dos anos 1990 para 2000, me envolvi na formação de professores para a EaD, uma modalidade que na época era só uma promessa, apenas uma ideia. Já coordenei cursos com ótimos resultados, sei de experiências fabulosas e de gente que fez formação à distância com qualidade, aprendeu muito. Então, a nossa crítica não é generalizada para a EaD, mas para o modelo”, explicou o vice-reitor da Unisinos ao abrir o painel Panorama da EaD no Brasil e em países-referência: impactos da expansão da modalidade.
“O problema no Brasil é a gente ter a educação a distância como o plano A e não como uma complementação”, antecipou.
Em uma retrospectiva dos marcos do surgimento da educação a distância no país, Jacobus lembrou que em 1996 a nova LDB abriu espaço do ensino à iniciativa privada, o que coincidiu com a criação da secretaria de EaD do MEC.
Em 1997, um decreto regulamentou o sistema federal de educação e fez menção às Instituições de Educação Superior (IES) com fins lucrativos, que respondem por 89,8% do ensino privado, enquanto 10,2% não têm fins lucrativos.
“Se tivéssemos uma máquina do tempo e pudéssemos alterar o passado, deveríamos voltar para 1997″.
Quando se abriu a educação brasileira para instituições com fins lucrativos foi como abrir a caixa de pandora”, situou. Seguiram-se a criação do Sinaes e do Prouni, em 2004, o que ele ressalta como “políticas com resultados” para a educação e, no ano seguinte, a EaD foi regulamentada.
Em 2017, por pressão das empresas de educação, houve uma flexibilização da educação a distância: “os números da EaD mudam rapidamente a partir dessa flexibilização”.
De acordo com o painelista, houve um salto no número de matrículas na educação superior depois dessa medida.
“Não estamos falando de uma crise de falta de alunos, que é o que está acontecendo em alguns países. No Brasil, o número de alunos continua subindo. Em 2022 já são 9,4 mil alunos”.
Jacobus aponta um aumento do número de matrículas nas universidades privadas a partir de 2017 e depois a diminuição progressiva da participação das universidades públicas no ensino superior. O Plano Nacional de Educação previa que 40% das novas matrículas deveriam ser em instituições públicas.
Em, 2015 esse percentual ficou em 11% no número de ingressantes.
“Nas instituições privadas sem fins lucrativos, disse “impressiona a queda de ingressantes. No RS, de 2016 para 2021 caiu 45% o número de alunos nos cursos de graduação. Enquanto isso, nos cursos EaD das instituições privadas do estado, o crescimento foi de 289% no mesmo período”.
Em 2001, 98,5% dos ingressos eram em cursos presenciais e, em 2022, esse percentual caiu para 34,8%. A tendência nos próximos anos é crescer ainda mais, aponta: dois de cada três alunos ingressam no ensino superior pelos cursos a distância.
“É preciso atuar coletivamente por financiamento e por maior regulação da EaD. A falta de regulação só é boa para quem não tem qualidade”, concluiu.
EaD gera perfil elitizado
Doutor em educação e autor do livro Qualidade em Educação Superior (135 p., Apris, 2021), o pesquisador Júlio Bertolin apresentou o painel EaD e iniquidade na educação superior brasileira, no qual identificou uma mudança no perfil dos alunos que concluem a educação superior a distância.
Detalhe: em qualquer tipo de análise, os alunos presenciais têm desempenho melhor do que os que ingressaram por EaD.
“A EaD está de alguma forma dilapidando o que as políticas de democratização da educação ajudaram a construir para melhorar a equidade do sistema”, apontou.
Bertolin revelou dados de uma pesquisa internacional que mostra que entre 1999 e 2002, apesar de uma hiperexpansão, em que o número de matrículas mais que dobrou na EaD, os ganhos para os estudantes desfavorecidos foram escassos.
Os estudantes provenientes de famílias dos 50% de renda mais baixa caiu de 8,6% para 7,5% e a porcentagem dos estudantes do grupo dos 10% de renda mais alta caiu de 43,9% para 41,4%.
“Esse período de expansão, apenas com a ampliação da oferta privada, beneficiou quase exclusivamente estudantes de grupos sociais favorecidos”, constatou.
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Professores pagam o preço da expansão da EaD
Íntegra no Seminário Profissão Professor no canal do Sinpro/RS no Youtube
FONTE:
Professores pagam o preço da expansão da EaD
Seminário Profissão Professor conclui que expansão das ofertas educacionais em EaD se alicerça na precarização das condições de trabalho e de saúde e no empobrecimento dos professores
Por Caren Souza e Igor Sperotto (fotos) / Publicado em 28 de outubro de 2023
A urgência da retirada das licenciaturas da EaD devido ao aumento exponencial do número de professores de Literatura e Língua Portuguesa formados a distância foi defendida pelo diretor da Universidade Federal da Fronteira Sul (UFFS), Jaime Giolo, durante o V Seminário Nacional Profissão Professor, realizado pelo Sinpro/RS na tarde desta sexta-feira, 27, em Porto Alegre.
Jaime Giolo apresentou o painel A regulação permissiva da EaD no ensino superior, a ameaça para a educação básica e a necessária resistência e reversão.
Em sua explanação sobre regulamentação e impacto da EaD no Brasil, o painelista apontou dados que ele considera preocupantes do Censo de Educação Superior do Inep.
“Entre 2015 e 2022, o número de matrículas em cursos de licenciatura EaD deu um grande salto, enquanto nos cursos presenciais observa-se queda acentuada”, destacou.
Giolo sustenta que a educação a distância no Brasil sempre foi permissiva. “No entanto, a cultura elaborada precisa de um espaço e tempo específicos”, enfatizou.
O palestrante considera que o que está em xeque é a qualidade do ensino nessa modalidade: “não se pode formar professores de disciplinas tão importantes a distância”, constata.
Rodrigo Perla Martins, diretor do Sinpro/RS, professor universitário e também de educação básica, reafirmou a resistência do Conselho Estadual de Educação (CEEd/RS) e do Sinpro/RS quanto à expansão desenfreada da EaD.
Perla lembrou que, na educação básica, essa modalidade de ensino não se desenvolveu de forma significativa.
“A educação básica utilizou a EaD somente no momento crítico da pandemia. Fora isso, ela pode ser utilizada como um complemento ou em situações emergenciais”, ilustrou.
Novas tecnologias e contrato de trabalho
De acordo com Adriane Reis de Araújo, procuradora regional do Trabalho em São Paulo (SP), o principal desafio a ser vencido pelos docentes, hoje, é a regulamentação dos contratos.
Soma-se a isso a utilização de novas tecnologias, que mudam completamente as relações trabalhistas. Adriane foi a primeira a se manifestar no painel Condições de Trabalho na Educação a Distância – Desafios Jurídicos e Sindicais.
As universidades têm espaços físicos e virtuais e, segundo ela, é necessário pensar o que elas podem realmente oferecer.
“Qual é a potência de um simples vídeo postado na internet?”, questiona. “Uma explicação sobre uma lei atual pode ficar desatualizada em breve, mas continuará circulando. Isso sem falar na exposição excessiva dos professores, que frequentemente sofrem assédio no trabalho, inclusive de alunos”, destacou.
A procuradora ressaltou que a tecnologia não tem mais limites temporais nem espaciais. “É ampla e é preciso pensar também em como remunerar essa amplitude”, pontua.
Adriana sugere um aprofundamento na Convenção 190 da Organização Internacional do Trabalho (OIT) sobre violência e assédio no trabalho.
“Não é apenas sobre a proteção de empregos, mas de condições de trabalho, saúde mental e integridade física”, ressaltou.
Expansão e problemas
De acordo com Marcos Fuhr, diretor do Sinpro/RS, a expansão da modalidade EaD trouxe uma série de problemas trabalhistas difíceis de serem resolvidos. A “desterritorialização” das universidades (com inúmeros polos em todo o país), frente a uma representação sindical territorialmente limitada, trouxe consequências graves, revelou.
“Uma delas é o aumento vertiginoso do número de alunos, sem ampliação de salário ou mesmo de direitos da categoria”, ilustra.
Alguns dos principais entraves do EaD
– Desterritorialidade dos cursos e do trabalho dos professores X Representação sindical territorialmente limitada.
– Carga horária alocada por turma/disciplina.
– Número de alunos por turma.
– Pagamento da produção de materiais por disciplina (sem parâmetro objetivo).
– Pandemia e confusão social entre cursos EaD, disciplinas EaD e presenciais, disciplinas síncronas e assíncronas, cursos híbridos.
Falta de parâmetros para a Justiça
O advogado Henrique Stefanello Teixeira, terceiro painelista do bloco que abordou as condições de trabalho, pontuou que as novas tecnologias já estão consolidadas e, no entanto, não há parâmetros estabelecidos para as questões jurídicas. “Um novo arcabouço tecnológico está surgindo e vai abranger toda a atividade docente”, projetou.
“Hoje, a EaD funciona com áudios, textos e vídeos, e o professor atua como responsável técnico. É isso que permite um grande número de alunos”, explica. Enquanto a modalidade presencial limita a 22 alunos por professor, a EaD permite até 171 alunos. “O salário diminuiu abruptamente”, contrapõe.
Carta aberta ao MEC, Congresso e Conselhos
Ao final do evento, o Sinpro/RS e demais sindicatos de professores e trabalhadores da educação aprovaram uma carta aberta a ser enviada ao ministro da Educação, Camilo Santana, ao Conselho Nacional de Educação, ao Congresso Nacional e ao Conselho Estadual de Educação do RS.
No documento, as entidades manifestam preocupação com a predominância de estudantes nessa modalidade e solicitam “a revisão urgente de toda a regulação da EaD com vistas ao seu aperfeiçoamento e real sintonia com os princípios da educação superior”.
Precarização, excesso de trabalho e adoecimento
As representações dos professores do ensino privado registram que a realidade de expansão da oferta da Educação a Distância no Brasil “constitui um fato sem paralelo dentre os países referência em Educação no mundo” e alertam que “tamanha proliferação” atendeu prioritariamente aos interesses econômicos e financeiros dos grandes grupos empresariais do ensino.
Também registram inconformidade com a trajetória “marcadamente permissiva do arcabouço regulatório da Educação em relação à Educação a Distância”.
“As evidências colhidas junto ao mercado de trabalho atestam a formação precária e deficiente dos egressos dos cursos em EaD”, aponta o Sinpro/RS e demais sindicatos, que lamentam “que todo esse processo de expansão das ofertas educacionais em EaD tenha se alicerçado na precarização das condições de trabalho, de saúde e do empobrecimento dos professores”.
Além de propor a revisão urgente de toda a regulação da EaD, reivindicam comprometimento efetivo com a qualidade nessa modalidade na educação superior, definição de exigências rigorosas para aprovação e reconhecimento de cursos a distância; e fiscalização, avaliação e encerramento de cursos e ou instituições que não cumpram os indicadores do Sinaes, entre outras reivindicações.
FONTE:
https://www.extraclasse.org.br/educacao/2023/10/professores-pagam-o-preco-da-expansao-da-ead/