Criança com fome

Criança com fome

324 P

 

CRIANÇA COM FOME NÃO BRINCA – parte II

faces da miserabilidade 

Ivane Laurete Perotti

[…]a pobreza não é natural. É feita pelo homem[…] Nelson Mandela

Julho ameaçava o fim das férias. Aulas em retorno. Escola cheia.

Não muito longe do portão da escola, três crianças espiavam o movimento. O frio não acenara adeus, as roupas esfarrapadas mal cobriam os três corpos. Sujas, remelentas, pareciam ter saído da tela de Portinari, Retirantes (1944). A deslealdade da vida sempre foi categórica: a fome é inglória e serve de moeda às manipulações do capital. Ali estava uma prova. Outra prova em desvalia.

Quando o sinal fechou os portões da escola, as crianças sentaram na calçada. Uma ao lado da outra. Sem sorrir, sem falar, apenas sentaram. Mas a calçada é um território estranho. Eis que uma senhora passante expressa o seu incômodo diante da cena:

_ Vocês não têm vergonha? Vão para casa. Lugar de crianças não é na rua.

_ Não estamos fazendo nada.

_ Vocês estão imundos! Onde estão os pais de vocês?

_ …

_ Vão embora. Aqui não é lugar para vagabundagem.

_ A senhora dá um pão?

_ Pão? Eu não alimento a sem-vergonhice…isso é uma vergonha. Vocês já aprenderam a pedir, é?

_ Minha irmãzinha, ela… está… sem…

_ E os seus pais? Por que fizeram vocês? Devem estar pedindo para eles comprarem drogas, né? Se eu der um pão, vocês irão vender, né?

_ A gente …

_ Isso não é coisa de gente! É uma vergonha!

_ …só…

_ Saiam daqui, este bairro é de família. De gente trabalhadora!

A senhora passou e as crianças ficaram. Uma nuvem conhecida pairou sobre as cabeças desgrenhadas. O sol que se foi abrindo muito lentamente não pintou poesia sobre a calçada. Outras pessoas trabalhadoras passaram por ali e também se foram com olhares entre incomodados, indiferentes e penalizados. Mas ninguém parou. Não havia tempo para pensar e mesmo se houvesse, alimentar uma criança, duas, três, não resolveria o problema. O problema, em existindo, não fazia parte da vida corrida de quem trabalha e luta pelos seus.

A hora tão aguardada se aproximava. O horário do lanche movimentava os alunos para fora de sala: as vozes, os cheiros, as brincadeiras atravessavam a rua. Então, o quadro de Portinari tomou voz: a menina que parecia ser a mais velha, beirando os cinco anos, colocou um sorriso no rosto ao anunciar uma certeza:

_ Vocês podem esperar, a tia vem hoje. Tem aula. Se tem aula, tem merenda.

As outras duas crianças, uma menina esquálida e um menino que lembrava outro quadro do grande pintor brasileiro, sorriram no encolhimento da fome e da esperança.

O intervalo para o lanche jogou-lhes de encontro à barriga uma verdade inaudita: a comida existia ali. Ali, na escola de muros verdes, as crianças comiam. Comiam os sabores imaginados, cujos odores insistiam em permanecer flutuantes.

O portão é aberto, vagarosamente, e a funcionária diz aos pequenos:

_ Hoje não sobrou nada! Sinto muito. Vocês podem voltar amanhã?

Continua…


Imagem de destaque: Retirantes, Candido Portinari (1944). Foto: João Musa/Acervo MASP

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14 de agosto de 2019

– a fome nunca foi embora: criou garras maiores e mais poderosas –

Ivane Laurete Perotti

Agosto ganhava fôlego. O que parecia ser um fenômeno natural, descrevia o mês com cheiros de maus agouros. Empilhados pelas calçadas, involuntários moradores de rua desenhavam uma paisagem urbana deplorável, sinistra e dolorosa. Bolsões de pobreza extrema abriam novas trilhas diante dos passantes. As sementes da indiferença plantavam-se em solo fecundo: não mais do que um incômodo estético. Não mais do que o odor das fezes compiladas em verbos de ação: a ordem estabelecia-se no extermínio das metáforas de vida. Nenhuma figura de linguagem sobrevivia ao poder dos investimentos na morte. O mapa da fome estendia o seu território nauseabundo.

Era agosto. Deploráveis bocarras serpenteavam as línguas do poder insano. Mesmo que todos soubessem mais do mesmo, e acumulassem justificativas nas faces da repressão, dividia-se o povo: criança na rua é vagabunda. Talvez, levada por tal motivação, a “tia” da escola de muros verdes estranhou a ausência da pequena pedinte. Não sentira a falta da menina. Não era isso. Ela apenas estranhara a ausência daquele incômodo que se chegava com dois olhos de criança velha: uma velha criança. A “tia” não queria ser exigida pela consciência reclamante. Inconscientemente, temia o que via e não dava conta de explicar o que sentia. Melhor oferecer “graças a deus” por não mais precisar pensar “naquilo”: o seu coração sofria.

Agosto corria a escola. Professores e crianças do Fundamental I alternavam-se no consolo individual. Em casa, separadamente, as famílias suspiravam: poderia ser pior! Crianças, famílias e escola pareciam aceitar passivamente o que vinha: presságios agourentos do mês do desgosto.

Era agosto também para a senhora de boa família que, incomodada com as crianças esfarrapadas à solta no bairro, ligara para a prefeitura e registrara uma reclamação.  Entre todos, parecia satisfeita a tal senhora, pois compreendia ter sido rapidamente atendida. Sem crianças vadias depreciando as calçadas. Boas famílias moravam ali.

Quando algumas sobras de merenda deitavam à sua frente, a funcionária da escola lembrava-se rapidamente da menina suja e esfomeada. Sempre esfomeada, aquela criança. Aceitava qualquer resto, qualquer pedaço de coisa qualquer e ainda agradecia. A “tia” não se dera ao dever de pensar mais sobre o assunto. Ou era coisa de deus, ou do governo. Ambos estavam distantes.

Mas agosto cobrava a história. No final de uma semana muito agitada na escola, um professor que morava em outro bairro indagou:

_ Não viram mais a menininha da calçada?

Alguns responderam negativamente e outros sequer sabiam do que se tratava.

Movido pela curiosidade, o professor perguntou pelo caminho: ninguém sabia dizer. Acabou por esquecê-la, já que o mês arremetia-se contra as expectativas de quem quer que fosse.

Na metade do primeiro mês do segundo semestre, a campainha da escola soou um toque curto.

_ Tia… tem biscoito?

Um menino esquálido e uma menininha esfarrapada espiavam por entre as sujeiras e as feridas do rosto.

_ Vocês voltaram? Onde está a outra menina?

_ …

_ Ela se escondeu? Onde está?

_…

_ Ah! Já sei…deve estar com vergonha. Hoje não sobrou nada.

_…

_ Cadê a outra menina?

Os olhos das duas crianças mergulharam em breve vazio. Breve era a dor e breve era a vontade de explicar. Nada disseram. Permaneceram no silêncio desprovido de sonhos. Sonhos são amuletos de sorte e aquelas crianças desconheciam ambos. O abandono e a indiferença matam, mas para elas, a morte surgia com a mesma naturalidade da fome na barriga murcha.

A funcionária da escola desejou não ter perguntado. Também não desejou sentir o súbito lampejo que lhe chegou em forma de certeza: o mês de agosto era cruel.

 

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