Dar aula em comunidades remotas
Sem eletricidade ou cama para dormir: a rotina da professora que dá aula em comunidades remotas
Ionny Barbosa, 38 anos, professora de português
Imagine ter que encarar uma viagem de carro ou barco que pode durar até dois dias para chegar ao seu local de trabalho e ficar em um alojamento sem geladeira ou cama por pelo menos 50 dias.
É esta a rotina de muitos professores/as do Amapá da equipe do Sistema de Organização Modular de Ensino (Some), que atende comunidades ribeirinhas, quilombolas, indígenas e escolas de 14 municípios do interior do Estado.
Ionny Barbosa é mãe de três filhos, sendo dois deles gêmeos, e viaja pelo Amapá “inteiro”para dar aulas de português. Ela mora na cidade de Santana, região metropolitana da capital, Macapá.
Há mais de dez anos trabalhando nesta modalidade, Ionny faz parte de um grupo de 400 professores do Estado que se revezam em diferentes comunidades para lecionar.
“Os quartos do alojamento não têm mobília. Temos que trazer nossas redes, nossos mosquiteiros e ficar em quartos compartilhados. A proteína que comemos pode ser ovo ou enlatado, pois não tem onde conservar”, descreve Ionny.
Artigo da Universidade Federal do Ceará intitulado "Manifestações de Adoecimento de Educadores em Áreas Rurais" cita que a maioria das comunidades atendidas pelo Some não tem água potável. "Às vezes, as aulas acontecem em barracões, sem divisórias".
Este mês de junho, Ionny dá aula na Escola Municipal de Francisco Xavier dos Santos, na comunidade Primeiro do Cassiporé, Oiapoque (AP), às margens da rodovia BR156. “Se tivermos como ir à capital, nos fins de semana, todo o custo das viagens é por nossa conta. O Estado só paga os alojamentos, não paga alimentação”, revela a professora.
Cada educador/a percorre em média 4.388 km a trabalho por ano e a duração de cada viagem pode variar de 3 horas a até dois dias de percurso, segundo informações da Secretaria Estadual de Educação do Amapá publicadas no estudo “Vivências e Relatos de Adoecimentos de Professores do Sistema de Organização Modular de Ensino (SOME) do Estado do Amapá”, de 2021.
São quatro tipos de localidades por educador/a em um ano: duas fáceis e duas difíceis, de acordo com o tipo de acesso. "O Sistema contribui com o desenvolvimento das comunidades ao ofertar trabalho pedagógico itinerante, que fortalece e combate ao êxodo rural”, cita o estudo.
Além disso, "permite aos educadores/as atuar diretamente no local de origem dos estudantes, mantendo as raízes do seio familiar”. O documento informa que pelo menos 5 mil crianças e adolescentes são atendidos pelo programa.
MOTIVAÇÕES
Enquanto respondia às perguntas para a produção desse texto, Ionny enviou um vídeo que mostrava muita chuva e alagamento no local onde estava. "Consertaram o motor da vila. Estamos tendo algumas horas de energia, mas somente das 17h à meia noite”, disse. Acesso à internet também é raro de conseguir em Cassiporé.
Por que ela escolheu dar aulas nesse formato? Ela diz que, apesar das dificuldades, a gratificação financeira ainda é um atrativo, além da oportunidade de conhecer várias realidades e territórios em pouco tempo.
Outra docente, em entrevista ao estudo “Vivências”, também conta que a primeira motivação é o dinheiro: “louca para entrar no módulo porque eu tinha que construir uma casa, mas aí a gente não sai mais porque fica difícil ficar sem o salário”, afirmou.
Assim como Ionny, muitos trabalhadores do Some reclamam das condições dos locais onde atuam, segundo o estudo. “A precariedade das escolas prejudica o trabalho pedagógico e até a saúde dos alunos e professores devido à estrutura física comprometida ou por estarem em instalações inadequadas à aprendizagem. Os locais já tiveram incidentes e há muitos relatos de abuso de álcool ocasionados por depressão e isolamento social”, cita a pesquisa.
Alunos chegam à escola depois de três ou quatro horas de transporte, cansados. "Por mais que tentamos motivá-los em sala, ao vermos o seu semblante, não podemos exigir muito de sua dedicação. Eles voltam para casa e alguns não conseguem fazer as tarefas porque não têm energia elétrica”, diz.
A professora sabe que, se não fosse sua decisão de pertencer ao Some, muitas crianças e jovens talvez ficariam sem instrução e teriam menos oportunidades no futuro.
"O que me move é a certeza de que a educação transforma vidas. Alguns lugares podem não ter profissional nenhum para amparar as comunidades mas sempre vai ter um professor. E quando vejo que eu sou uma delas é isso que me faz seguir em frente: poder conversar com o aluno, mostrar as oportunidades que ele tem e dizer que ele pode chegar longe. Mesmo sabendo que estou plantando uma sementinha pequena, lá na frente posso ver uma árvore frondosa dando muitos frutos bons”, diz, esperançosa.
OUTRO LADO
A CNTE entrou em contato com a Secretaria Estadual de Educação do Amapá para pedir providências e se manifestar a respeito das condicões de trabalho da professora, mas não obteve resposta.
A Secretária Geral da CNTE, Fátima Silva, visitou a escola em Primeiro de Cassiporé,
Oiapoque (AP), onde Ionny leciona