Dar voz às juventudes no campo
“Ainda é muito complicado dar voz às juventudes no campo”, afirma jovem do Ceará
O debate sobre as necessidades da juventude no campo não vem de hoje. Existem muitos coletivos em todo o Brasil para discutir o tema, e estão mobilizados neste momento para a votação do Projeto de Lei (PL) 9.273/2017, que propõe instituir a Política e o Plano Nacional de Juventude e Sucessão Rural. Houve uma audiência pública no último dia 30 de abril para discutir a pauta, que é uma das principais bandeiras levantadas pelos coletivos de jovens no meio rural.
Conversamos com Regilane Alves, de 26 anos, moradora da comunidade do Sítio Coqueiro, assentamento Maceió de reforma agrária, próximo ao litoral do Ceará. Integrante do coletivo cultural Balanço do Coqueiro Juventudes, que envolve pessoas do Território Vales do Curu e Aracatiaçú, Regilane também participa da Pastoral da Juventude e do GT Juventude da Articulação Nacional de Agroecologia (ANA). Na entrevista, fala sobre os principais desafios debatidos nos movimentos, ressalta a necessidade de uma educação contextualizada com a realidade rural e destaca a importância do acesso a políticas públicas para a produção, além do acesso à terra. Este é mais um assunto abordado na iniciativa Agroecologia nos Municípios, desenvolvida pela ANA.
Como se deu a história de lutas na sua região e a sua atuação nos movimentos?
Minha família é assessorada pela ONG Centro de Estudos do Trabalho e de Assessoria ao Trabalhador (Cetra), que presta assistência técnica agroecológica. Antes prestavam assessoria jurídica na luta pela terra, hoje apoiam projetos de quintais produtivos e sem perder a ideia da organização social. Ajudaram a criar a Associação Comunitária do Imóvel Maceió (ASCIMA) e diversificar a produção. A luta pela terra começa pelas Comunidades Eclesiais de Base (CEB) por volta de 1981, quando uma pessoa rica se dizendo dona das terras as vendeu para uma empresa de produção de coco na região litorânea de Itapipoca (CE). Os (as) agricultores (as) tinham que dar parte da produção a essas pessoas até a chegada da empresa, meio que escravizados (as), até a Diocesese começar um processo de formação e conscientização dos agricultores (as). Foram realizados vários encontros e o povo começou a se organizar em mutirão, fizeram várias resistências, até que a empresa vendeu a terra. Isso era na época da ditadura, os policiais derrubavam as casas e os cercados coletivos dos roçados que todos se responsabilizavam e eram comunitários. Aconteciam outras resistências também na região, e só em 2000 o MST chegou ao assentamento. Até hoje não estamos totalmente livres, porque a faixa litorânea ainda é muito cobiçada. Há uma forte resistência na parte da praia com a empresa Nova Atlântica, que diz ser dona das dunas. O Sítio Coqueiro fica na terra mais escura pós praia, onde tem mais caatinga que mata atlântica e trabalhamos mais agricultura que pesca. Produção do feijão, jerimum, entre outros, além dos quintais, com vinte e oito famílias. Nosso cultivo é também coletivo, tem várias Casas de Farinha comunitárias, uma delas mais estruturada. A cultura dominante é a mandioca consorciada com outras produções, nossa farinha é comercializada na feira agroecológica pois não usamos agrotóxicos.
E como você se inseriu nos coletivos e o que é discutido nestes espaços?
Os jovens estão inseridos nessas experiências de trabalho coletivo na comunidade, tanto no campo experimental como no beneficiamento de alimentos. Mas, não temos protagonismo, só no grupo de beneficiamento do óleo de coco, farinha de coco e cocada, que é específico para jovens e se funde com o coletivo de arte e cultura, que faz apresentações e oficinas. Algumas mulheres também participam do grupo de beneficiamento. Antes, eram elas que estavam à frente, mas com suas tarefas domésticas acabaram passando aos filhos e filhas. Hoje, comercializamos o óleo de coco extra virgem ou cozido em um ponto fixo da feira agroecológica de Itapipoca, que existe há 15 anos e também é assessorado pelo Cetra. Com a pandemia, a feira parou. Então, nos organizamos e passamos a vender pelo whatsapp e instagram e fazemos a entrega. A organização deste grupo de jovens e beneficiamento participa da Rede de Agricultores do Território, por meio da qual comercializamos e temos um projeto com uma feira que garantiu barracas e outras questões de comercialização justa.
Não tínhamos protagonismo, então o Cetra começou um projeto, em 2011, direcionado aos jovens filhos dos agricultores. Foi quando passamos a entender nosso papel dentro da comunidade. Há quatro anos criamos um GT de Juventude, onde debatemos temas do nosso interesse. Falávamos muito sobre se reconhecer jovem na comunidade rural, entender a necessidade da educação contextualizada e a permanência no campo. Pensar no direito de decidir ficar ou não comunidade. Fazíamos estes debates sobre empoderamento com o grupo de arte, composto pelos jovens, e acaba repercutindo nos territórios. Todos que iam às atividades, quando voltavam passavam as informações. Participávamos dos encontros, mas não tínhamos espaço para os nossos debates. Criamos reuniões paralelas só com os jovens, na parte da tarde da programação, porque não tinha recurso específico para eventos nossos; Então, fizemos formações para o beneficiamento da produção e oficinas de fotografia com o olhar para dentro da comunidade. Muitos viam no processo o quão bela era a sua comunidade, através da fotografia. Fizemos exposições em várias comunidades, cidades e eventos nacionais. Levei para a Cúpula dos Povos, no Rio de Janeiro, em 2012, e foi muito marcante.
Como é a questão da política pública para o jovem para viabilizar essas ideias?
Ainda é muito complicado dar voz a essas juventudes. Sempre debatemos nos encontros nacionais o nosso Estatuto da Juventude, que sempre foi uma luta nossa. Infelizmente, a questão do acesso às políticas públicas é muito complicada, a própria aquisição da Declaração de Aptidão ao Pronaf (DAP), que é necessária para formalizar qualquer empreendimento, não conseguimos, porque precisa apresentar uma renda específica. Tivemos alguns avanços, mas ainda somos muito dependentes da produção familiar. Os jovens da minha comunidade têm o grupo do beneficiamento como se fosse uma renda à parte, mas ainda está no início e não conseguimos vender muito. Quando a venda é maior, fica um pouco melhor, mas em geral dá cerca de R$ 50,00 para cada por feira, que acontecia semanalmente antes da pandemia e agora é quinzenal virtualmente. Não é muito, mas já dá uma animada, ainda mais com a crise atual. Temos mostrado que a nossa organização pode dar certo. Trabalhamos na casa de uma pessoa do grupo que faz beneficiamento, mas esperamos neste ano construir nossa casa e ter um espaço para podermos produzir com mais autonomia.
Como é a questão da divisão do trabalho dentro da própria família para a mulher?
É notório que, mesmo trabalhando dentro do quintal da família, o homem consegue tirar uma parte para sua própria produção. Na nossa comunidade, tem esse debate de gênero, mas ainda não temos essa autonomia. As jovens ainda não conseguem fazer um trabalho fora do quintal de casa, que não seja com o plantio das flores etc. Tem um rapaz que participa de todos os grupos e das redes, participa da feira agroecológica e dentro do quintal da família tem sua área própria para suas experiências. Nenhuma mulher tem esse tipo de espaço, a gente tenta se organizar, mas não consegue. Dentro do GT Juventude conseguimos, através do Cetra, um Fundo Rotativo Agroecológico e Solidário (FRAS) específico para juventude. São R$ 15 mil para financiar projetos. Começou neste ano e cada jovem pega R$ 1 mil, de acordo com a sua aptidão de trabalho que foi apresentada, como criação de galinha, irrigação etc.
Tudo vem pelas ONGs ou pela família? É muito difícil o acesso sem assessoria?
Não temos quase acesso às políticas públicas, por isso lutamos para que o Projeto de Lei 9.273/2017 seja aprovado. Esse PL tem a questão do financiamento, da obrigatoriedade do governo de dar subsídios a esses jovens fazerem a sua produção e comercialização dos seus produtos. Essa coisa de manter o jovem no campo não é tão simples. Como nossa comunidade é pequena e tudo é construído coletivamente, acaba que o grupo de jovens local debate esses processos. Em 2010, conseguimos um projeto cultural com formação de danças, canto, flauta, violão, teclado e percussão. Essas oficinas foram feitas pelos jovens e dali perceberam seu protagonismo. Começamos a nos organizar mais, mas não foi fácil, porque muita gente tentava nos desmotivar. Mas o grupo de arte já existe há 10 anos e o de beneficiamento tem cinco anos. Compramos o coco local para beneficiar, então gira a economia e os (as) agricultores (as) começam a ver que pode dar certo. Muitos nem queriam vender, até porque pegávamos consignado, mas já nos procuram.
Sempre tivemos a ideia de permanecer na comunidade, mas para isso precisávamos de garantias. Muitos jovens da geração anterior foram para as cidades, inclusive estou na casa de uma irmã mais velha que está na cidade. A gente sempre conversava sobre isso nessas reuniões e capacitações. Tínhamos a ideia de ter terra para produção, mesmo que seja no quintal, e condições de escoar esses produtos. Nosso desejo é que, a partir de uma casa de beneficiamento, onde além do óleo de coco possamos beneficiar outros produtos, os adolescentes tenham mais tarde seu próprio dinheiro. Podem aparecer outras necessidades e subprodutos, na perspectiva que o jovem tenha o sentimento de pertencimento ao local com mais qualidade de vida. Já temos ali a Escola Nazaré Flor, por exemplo, com a educação contextualizada. É importante porque estudamos perto do assentamento com uma educação valorizando o trabalho do agricultor, agricultora, pescador e pescadora. Fala sobre o seu espaço de produção com autonomia. Precisamos garantir essa formação e o espaço para produzir, por isso lutamos com a empresa Ducoco, que queria transformar nosso território em uma fazenda de coqueiros, para garantir nossa produção dentro da comunidade.
É importante destacar que o jovem tem que ter a opção de ficar ou não, e isso já é debatido na própria educação. Não é para ir à cidade de qualquer jeito, sempre falamos sobre buscar uma formação. Tem gente que fez pedagogia ou administração, como no caso da pessoa que gerencia o nosso espaço de beneficiamento. Sou técnica agropecuária e estou na faculdade de ciências sociais. É imporatnte ter um diploma, nada de dizer que o jovem é burro ou desinsteresado. Todos esses estigmas são ainda piores no campo, onde temos que provar que podemos sim cursar uma faculdade. Ter uma carteira de identificação do Crea, por exemplo,. Eu decidi ficar na comunidade e não por falta de opção, e essa formação contribui. Muitos aplicam esses conhecimentos na comunidade.