Decifrando Bolsonaro
Duas facções compõem o governo: a do porrete e a dos punhos de renda.
Lesam o país e ameaçam a democracia, mas se protegem mutuamente. Só é possível porque esquerda institucional perdeu-se em série de erros táticos e estratégicos
Publicado 24/01/2020
Que o governo Bolsonaro é um raro amálgama entre forças que por muito tempo estiveram em conflito, já sabíamos. Nele convivem, por um lado, personagens precários e regredidos, como o próprio presidente, seus filhos, Damares, Weintraub, o chanceler Araújo. Por outro, figuras que expressam as elites financeiras, em punhos de renda. Pense em Paulo Guedes; mas também nos dirigentes do Banco Itaú, que lançam seguidos relatórios entusiasmados com o governo; ou em economistas como Delfim Netto, que torcem para que contrarreformas reduzam o poder dos trabalhadores e “modernizem” o país.
Já sabemos também que este arranjo esdrúxulo não é uma particularidade brasileira. Veja o apoio de Davos a Trump; a aliança explícita, na Espanha, entre o PP (de centro-direita), o Ciudadanos (de direita “moderna”) e o Vox (abertamente fascista). Ou repare na Itália, no esvaziamento da direita tradicional, que migrou para a Lega de Matteo Salvini e seu assessor especial, Steven Bannon. Sobre esta aliança, se falará adiante.
A novidade, esta semana, é o surgimento de fatos que permitem compreender, com clareza inédita, como estas duas forças – que podemos chamar de “proto fascista” e “ultra capitalista”, convivem, apoiam-se e se protegem mutuamente. Também ficou nítido algo mais delicado. Os ataques desta aliança só são possíveis porque ambos os sócios aproveitam-se de algo raro. A oposição de esquerda desapareceu. Os partidos em que uma importante parcela da população confiava, para expressar uma visão de mundo alternativa às de Bolsonaro ou Paulo Guedes, deixaram de cumprir esta papel. Esta ausência restringe o campo da política visível a uma opção entre o péssimo e o intragável; e dá às duas facções que compõem o governo espaço para nunca saírem da ofensiva; nunca serem obrigadas a se confrontar com propostas contrárias às suas; nunca terem de comparar suas visões de mundo a outras.
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Três acontecimentos dominaram a semana, e é por meio deles que examinaremos o governo Bolsonaro e a ausência de oposição real a ele. Um dos fatos polarizou o debate público, repercutindo inclusive no exterior. Foi o pedido, por um procurador federal já conhecido por seu partidarismo, de indiciamento do jornalista Glenn Greenwald, por suposta colaboração com hackeamento. Ou dois outros fatos tiveram impacto muito menor – mas são muito mais importantes. Prosseguiu a operação que poderá transferir a Embraer – maior empresa brasileira de alta tecnologia – para a Boeing, uma corporação norte-americana que, por sua vez, enfrenta uma crise aguda e pode até sucumbir. Enquanto isso, no Congresso Nacional, avançava a chamada “PEC de Pacto Federativo”, uma proposta de emenda constitucional que pode desobrigar os governos estaduais e municiais de destinar um mínimo de verbas para a Saúde e Educação. Se aprovada, ameaça liquidar tanto o SUS quanto o ensino público. Mas nem este risco, nem a liquidação da Embraer, entraram no foco da mídia e do debate público. Por que?
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Uma primeira resposta está na articulação precisa entre as duas forças principais que compõem o governo. Não se trata de conspiração, mas de defesa recíproca e combinada de interesses distintos. Reveja os lances, para compreender a dinâmica. A pauta proto fascista – a tentativa de calar Glenn Greenwald e de restringir a liberdade de imprensa – ganhou todas as manchetes, entre terça e quarta-feira. Gerou dezenas de matérias, milhares de comentários nas rádios e TVs, milhões de posts nas redes (anti-) sociais. Não produziu maiores consequências: a causa não é popular, o promotor é desqualificado, a repercussão internacional negativa fez com que o próprio Bolsonaro se distanciasse do movimento infeliz, um dia depois de alimentá-lo.
Mas a polarização produzida serviu de fogo de barragem para que avançassem, à sombra, sem debate algum, as agendas muito mais relevantes da banda ultra capitalista do governo. Nesta semana, foi o caso da entrega da Embraer e da emenda constitucional que devasta o SUS e o Ensino Público. Ao longo de um ano de Bolsonaro, será possível encontrar dezenas de casos em que o mesmo lance se repetiu. Pense, por exemplo, para ficar em alguns casos recentes, na fala nazista do patético Roberto Alvin; na associação, por Bolsonaro, de Leonardo di Caprio às queimadas na Amazônia ou na nomeação, para a presidência da Fundação Palmares, de Sérgio Camargo, que nega haver racismo no Brasil. Sob o guarda-chuva de “controvérsias” como estas, o governo promover uma segunda contrarreforma trabalhista, devastou a Previdência pública, está dizimando a Petrobras, ameaça o BNDES, apequenou o Banco do Brasil e a caixa, quer minerar terras indígenas, atrelou a diplomacia brasileira aos EUA – entre muitos outros atos semelhantes.
Examine agora como a associação é mutuamente vantajosa para as duas facções que dividem o governo. Bolsonaro é a cortina de fumaça perfeita para o projeto ultra capitalista. Se o presidente fosse Geraldo Alckmin, toda a agenda do ataque aos direitos sociais, da devastação dos serviços públicos e da renúncia à soberania nacional estaria sendo igualmente implementada – talvez, inclusive, por agentes de maior competência técnica. Porém, todas estas políticas impopulares estariam no centro do debate nacional, submetidas a escrutínio público, produzindo o desgaste de seus defensores. Bolsonaro poupa-os de tudo isso. Ele é o palhaço que distrai a plateia, enquanto as tenebrosas transações se fazem nos bastidores.
Mas os proto fascistas também ganham com a parceria. Porque o grande poder econômico compreende, e recompensa, os serviços prestados. O presidente, por seus atos e falas – da defesa da tortura à dissolução da política externa independente – já cometeu dezenas de crimes de responsabilidade. Cada um deles provocaria enorme escândalo e poderia gerar um pedido de impeachment, se o ocupante do Palácio do Planalto fosse outro. Mas não espere por isso, nem imagine que, em dado momento, Bolsonaro ultrapassará uma linha vermelha e será processado. Seus ataques à democracia e suas palermices serão perdoados, esquecidos ou minimizados pelo grande poder econômico, pela mídia tradicional e pelos políticos conservadores supostamente “civilizados” – enquanto ele continuar cumprindo o papel atual…
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Isso nos remete ao segundo elemento central do cenário político: a quase completa inexistência de oposição. A devastação que o governo produziu em pouco tempo (e que deseja ampliar indefinidamente) não é obra de um dream team – mas de um elenco indigente. Sobre Bolsonaro, seus filhos e os ministros patetas, nada é preciso dizer. Mas tome Sérgio Moro, seu provincianismo, sua ignorância mesmo em matéria jurídica. Ou Paulo Guedes, um contemporâneo medíocre dos economistas que gestaram os planos econômicos dos anos 1980 e 90, jamais convocado por eles para nada; um ministro que dá sinais seguidos de desconhecer os mecanismos essenciais tanto do serviço público quanto da economia brasileira. Esta equipe de baixíssimo nível só brilha no cenário brasileiro porque encontra, no campo oposto, um vazio.
A paralisa da oposição tem dois aspectos: a incapacidade de resistir à agenda de Bolsonaro e a inapetência, ainda maior, para retomar a imaginação rebelde e anti sistêmica – que já renasce em diversas partes do mundo. Examine, primeiro, os principais acontecimentos desta semana e as oportunidades de ação que eles oferecem. Na Embraer, 16 mil trabalhadores foram colocados em férias compulsórias, entre 6 e 21/1. Diante das incertezas provocadas pela crise aguda da Boeing, a direção da empresa ainda não sabe qual será seu destino. Bastaria este fato para que qualquer personagem público da oposição se dirigisse a São José dos Campos, articulasse com o sindicato uma visita às fábricas tomadas pela angústia, dialogasse com os trabalhadores. A repercussão seria certa – inclusive porque há, além das mídias tradicionais, uma rede importante de publicações alternativas. Já a PEC do “Pacto Federativo” permitiria, por exemplo, abrir diálogo com os estudantes (responsáveis por uma importante onda de manifestações contra o corte de verbas em 2019), com a vasta rede dos defensores do SUS (presente em todo o país), com os usuários de serviços de saúde, em processo de sucateamento.
Você certamente não viu nenhuma dessas iniciativas, ao longo da semana. E a lacuna não foi aberta agora. Desde o início do governo, a oposição omitiu-se da crítica aos atos de devastação. Preferiu concentrar-se numa pauta única – a liberdade de Lula – que, apesar de sua evidente justiça, jamais foi capaz de dialogar com os dramas quotidianos das maiorias. A partir de novembro, quando Lula foi solto, a pauta única transformou-se em pauta nenhuma. Pelo menos até o momento, aliás, Lula livre produz muito menos fatos políticos que produzia Lula preso…
O cenário é ainda pior quando se examina a disposição da esquerda institucional para projetar futuros alternativos ao ultra capitalismo e ao proto fascismo. Esse passo é indispensável para tirar o país do labirinto, porque não basta denunciar os retrocessos vividos. Para reconstruir um movimento pela transformação da sociedade, é preciso acenar com a possibilidade de outras lógicas, políticas, modos de estar no mundo.
A crise do sistema tem aberto, em distintos países, espaço para reconstruir um imaginário pós-capitalista. Observe o caso do Chile. Em torno da busca do comum, de serviços públicos de excelência, teceu-se, ao longo dos últimos anos, uma alternativa às privatizações e a transformação da vida em mercadoria barata. Em setembro do ano passado, uma revolta estudantil contra o aumento das passagens de metrô serviu como estopim de uma revolta que abalou a “vitrine do neoliberalismo” na América Latina, desaguando na convocação de uma Constituinte. Nos Estados Unidos, Bernie Sanders sacode as eleições presidenciais e polariza em especial a juventude ao propor, entre outros projetos de enorme impacto, um Green New Deal. A proposta combina a conversão para a economia limpa com um gigantesco plano de investimentos em infraestrutura (usinas solares, ferrovias, transporte público urbano, banda larga gratuita) e com a garantia de ocupação formal, com salário digno, a todos os trabalhadores que as reivindicarem. Na França, uma greve geral prolongada, em combinação com formas de luta inovadoras e irreverentes, obrigou o governo a abrir mão do ponto principal de sua contrarreforma da Previdência – a elevação da idade mínima para aposentadoria.
No Brasil, a esquerda institucional permanece surda a este burburinho e fermentação de ideias. O projeto de governo que animou Lula e Dilma esgotou-se em 2014 e, moribundo, levou em 2015 a um “ajuste fiscal” que rompeu os laços com as maiorias e abriu caminho para o golpe. Mas não há reflexão nem sobre o colapso deste projeto, nem sobre as alternativas para substituí-lo. Predominam duas posturas mórbidas: ou o lamento melancólico pelo fim dos “bons tempos” do passado, ou a adaptação silenciosa aos retrocessos: a maioria dos governadores de oposição está implementando, em seus estados, contrarreformas da Previdência de sentido similar à de Bolsonaro. Quem é capaz de se empolgar, ou mobilizar, diante de atitude como estas?
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Na política não há vácuo duradouro, mas alguns dos piores desastres se produzem quando os sujeitos que já não cumprem seu antigo papel permanecem no antigo lugar, como fantasmas do que foram um dia. Como se viu, vencer a coalizão entre proto fascistas e ultra capitalistas, armada em torno de Bolsonaro, não é simples, nem fácil. Tampouco é impossível. O apoio ao governo é minoritário entre a sociedade. Uma ampla maioria não está de acordo nem com o ataque aos direitos e aos serviços públicos, nem com a tentativa de restringir, e quem sabe liquidar, a democracia. Há, sobretudo, imensa energia represada: milhões de pessoas – críticas, bem formadas, criativas – que se mobilizaram, nos últimos anos, em episódios como as manifestações contra o golpe, as revoltas de secundaristas, as greves gerais no governo Temer, o #elenão, os protestos contra o assassinato de Marielle Franco, a luta para defender a Educação, a Universidade e a Ciência dos cortes de Weintraub.
Estas pessoas, que conhecem as ameaças expressas por Bolsonaro e estão dispostas a enfrentá-las, esperam que alguém as informe, articule, convoque. Porém, deparam com uma esquerda fantasmática. Em outros países, em tempos recentes, esta contradição foi resolvida por duas vias distintas. Ou abre-se, no interior da própria esquerda, uma brecha para a renovação – como ocorreu nos Estados Unidos e na Inglaterra, com Bernie Sanders e Jeremy Corbyn –, ou surgem, em resposta a partidos que teimam em morrer, alternativas. É o caso dos Indignados e do Podemos na Espanha; ou, no Chile, da Frente Ampla e, mais recentemente, da Plataforma Unidade Social.
Às voltas com fantasmas, o Brasil precisa viver, em breve, um destes dois processos. Percebê-lo é essencial para não seguirmos prisioneiros de uma coalizão que ameaça os direitos, a democracia e a própria ideia de país
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