Democracia ameaçada pela irracionalidade

Democracia ameaçada pela irracionalidade

A democracia ameaçada pela irracionalidade

 

Nossa jovem e frágil democracia está com seus pilares comprometidos. O povo brasileiro precisa sair das bolhas das redes sociais e dar-se conta que muita coisa está em risco. Não só a sobrevivência da democracia, mas a sobrevivência da própria vida.

O ser humano é um animal racional, ao menos essa é a definição clássica defendida pela filosofia e pela ciência. Essa racionalidade historicamente constitui as civilizações, as culturas, os “progressos”, os domínios da natureza. Mulheres e homens por meio de atos racionais produziram conhecimentos, formas de vida, ferramentas, produtos, tecnologias…

A longínqua história civilizacional nos mostra com detalhes quantas invenções tornaram melhor a vida humana por conta de conhecimentos e saberes que possibilitaram enfrentar doenças terríveis, melhorar a produção de alimentos, sofisticar os transportes, possibilitar mais conforto para nossa vida diária.

No Brasil, chegamos ao século XXI com a promissora possibilidade de erradicar certos problemas históricos e constituir uma vida melhor não só para alguns privilegiados mas para todos. A fome, o analfabetismo, a violência, o feminicídio, a homofobia, o racismo e tantos outros males e “doenças” que sempre “ceifaram vidas” poderiam ser uma página virada no século XXI. No entanto, o que vemos é um retrocesso civilizacional, uma volta ao que se teve de pior no passado.

Pode parecer um exagero, mas observamos alguns acontecimentos como ilustração.

Nas últimas três décadas, o Brasil tinha conseguido controlar a inflação, enfrentar o analfabetismo, sair do mapa da fome, constituir um conjunto de políticas públicas, possibilitar o acesso à Educação Superior de jovens e adultos de baixa renda, criar empregos, movimentar a economia, se tornar um país respeitado no cenário internacional, se livrar da dívida externa, melhorar seus índices de desenvolvimento e a lista poderia ser bem longa. Mas todos estes avanços não agradaram a todos.

Uma “elite do atraso”, para usar uma expressão do reconhecido e respeitado Jessé Souza (2017) se sentiu incomodada ou até mesmo ameaçada de perder seus privilégios, sua exclusividade ao bem estar, seu pleno e confortável domínio sobre tudo e sobre todos.

Ver filhas e filhos de trabalhadores chegarem ao ensino superior (na maioria das vezes os primeiros de toda árvore genealógica da família), ver pobre tendo a possibilidade de viajar de avião, ver faxineiras conseguirem abrir seu próprio negócio, ver trabalhadores conseguirem comprar carro zero, ver assalariados adquirir casa própria, ver pequenos empresários criarem seu próprio  negócio sem os impagáveis e absurdos juros bancários, ver pequenos agricultores comprarem maquinários para inovar e ampliar a produção de grãos e tantos outros benefício que vêm da agricultura familiar (e a lista poderiam ser bem grande), desagradou quem sempre dominou e “usou” esse país. Para evitar que o avanço de políticas sociais pudesse sair do controle era necessário um “novo pacto”.

Em seu livro A Elite do Atraso, Jessé Souza (2017) mostra o pacto construído e sedimentado pelos donos do poder para perpetuar uma sociedade excludente e perversa, forjada ainda na escravidão.

Para que tal pacto pudesse ser aceito, tacitamente era necessário criar uma narrativa, um bode expiatório, algo para “diabolizar”. A corrupção canalizada em certas lideranças foi a bola da vez e o “golpe midiático parlamentar” foi o veículo para impedir que um projeto democrático de inclusão social pudesse prosseguir. Sérgio Moro e sua turma de Curitiba se encarregaram de fazer o jogo sujo (agora já desmascarado) de impedir que as urnas de 2018 pudessem trazer de volta a continuidade de um projeto de inclusão.

As redes sociais, as “velhas raposas” da política e as fakes news se encarregaram de fazer a lavagem cerebral até mesmo daqueles que se beneficiaram das políticas sociais.

Não custa lembrar de que um contingente expressivo dos eleitores que deram a vitória a Bolsonaro em 2018 conseguiram seu diploma de ensino superior graças ao Prouni ou Fies, que muitos pequenos empresários conseguiram abrir seu negócio por conta de empréstimos a juros baratos subsidiados por recursos públicos, que muitos trabalhadores conseguiram sua casa própria graças ao projeto “Minha Casa, Minha Vida”, que um enorme contingente de agricultores conseguiram fazer prosperar sua propriedade por conta do “Programa Mais Alimentos”. E a lista poderia ser bem longa.

Bolsonaro se elegeu com uma narrativa de ódio contra as esquerdas, contra as políticas sociais, contra a ideia democrática de inclusão. Seus mais de dois anos de governo mostraram que o Brasil só regrediu em termos de ser um país mais decente para viver. Nossa tão almejada soberania nacional que nos tornaria uma nação forte frente ao mundo está completamente jogada no lixo.

Nossas grandes riquezas (petróleo, minérios, água, madeira etc) estão sendo entregadas de bandeja para grupos internacionais; nosso sistema educacional está sendo entregue aos empresários da educação que o transformaram em um promissor negócio para ganhar dinheiro e com isso a educação deixa de ser “direito” para se transformar “privilégio” de quem pode pagar; as universidades públicas, lugar onde se construiu historicamente as melhores pesquisas, estão sendo sucateadas e perseguidas por supostas “questões ideológicas”; boas universidades comunitárias estão sendo destruídas por conta da concorrência desleal de instituições empresarias que só querem ganhar dinheiro com a educação; questões ambientais de altíssima grandeza estão sendo negligenciadas pelo próprio ministro da meio ambiente e o Brasil corre o risco de perder sua soberania da Amazônia; as forças armadas que deveriam zelar pela soberania nacional e cumprir o que está estabelecido na constituição, estão se tornando cada vez mais coniventes com o governo e alguns de seus generais estão envolvidos em operações suspeitas de corrupção e passam a ameaçar os processos democráticos; a violência aumenta a cada dia que passa, alimentada pela indústria de armamentos que com uma narrativa de proteger o cidadão, arma cada vez mais o mundo do crime; a inflação que tinha sido controlada por mais de duas décadas, volta a se tornar um fantasma na vida de todo brasileiro.

Alguns poderão dizer que isso tudo é consequência da pandemia e de que tudo seria diferente se não tivesse existindo a Covid-19 e suas variantes. No entanto, a forma como foi enfrentada a própria pandemia por parte do governo apresenta evidências de irracionalidade e de destruição da democracia.

Senão vejamos: Primeiro a negação do problema (“é só uma gripezinha); depois o suposto tratamento preventivo ineficiente (uso de cloroquina e derivados) e negacionismo da vacina (“se vacinar vai virar jacaré”); agora o escândalo da corrupção, as negociatas com o Centrão para evitar o impeachment e as cotidianas ameaças de intervenção militar se não tiver voto impresso.

Nossa jovem e frágil democracia está com seus pilares comprometidos. O povo brasileiro precisa sair das bolhas das redes sociais e dar-se conta que muita coisa está em risco. Não só a sobrevivência da democracia, mas a sobrevivência da própria vida.

Conheça outras publicações no site: A mixofobia da cidade; Quanto vale um professor?; O mal-estar na civilização; Educar o educador. https://www.neipies.com/author/altair/

Autor: Dr. Altair Alberto Fávero

Edição: Alex Rosset

 

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