Derrubar a democracia liberal
"O objetivo maior é derrubar a democracia liberal", diz pesquisadora sobre atos da extrema direita
Autora de “Tempestade Ideológica. Bolsonarismo: a Alt Right e o Populismo Iliberal no Brasil”, Michele Prado era militante de direita e se afastou ao notar um crescimento do autoritarismo
15/12/2022 - CARLOS ROLLSING
Por mais de uma década, a baiana Michele Prado foi ativa no ecossistema da extrema direita brasileira. Em 2018, com o presidente Jair Bolsonaro eleito, uma série de acontecimentos dentro dessa bolha radical lhe acendeu um alerta sobre o caráter autoritário e desumanizador do movimento em que estava inserida. Ela decidiu romper com ele e passou a atuar em pesquisas independentes (não acadêmicas) sobre a extrema direita mundial e brasileira. O resultado foi impresso no livro Tempestade Ideológica. Bolsonarismo: a Alt Right e o Populismo Iliberal no Brasil (Lux, 2021), que a alçou à condição de referência para analisar os complexos grupos da direita radical e o que pregam: substituir a democracia liberal, na forma como conhecemos hoje, por um sistema autocrático em que a sociedade volte a ser hierarquizada por gênero, classe e raça. A seguir, Michele alerta para um possível cenário de escalada da violência política, que pode se acentuar após a posse de Luiz Inácio Lula da Silva, em 1º de janeiro.
Como foi sua experiência nos grupos da direita radical?
Desde antes da internet, sempre fui eleitora do PSDB. Quando o PT ganhou, em 2002, eu era uma jovem adulta e já percebia uma rejeição a quem não votava no partido. A esquerda militante categorizava seus opositores como fascistas, nazistas, como extrema direita. Mesmo a oposição democrática. Acompanho isso desde os primeiros fóruns online, antes do Orkut. A partir das comunidades do Orkut, fui entrando nessas esferas do que depois viria a ser chamado de influenciadores. Eu ainda não estava radicalizada. A partir de 2008, passei a consumir muito mais conteúdo desses influenciadores. Vieram o Twitter e o Facebook. E comecei a participar de forma bastante ativa da bolha da direita digital. Era a patrulha dos militantes de esquerda que me levava cada vez mais para a bolha na qual eu não era achincalhada, difamada e encontrava pessoas que tinham as mesmas opiniões que eu em relação ao PT. Foi nessa bolha que acompanhei toda a criação da nova direita que surgiu no Brasil, que, depois, deu origem ao bolsonarismo. Hoje é a extrema direita. Eu rompi com eles no final de 2018, quando me colocaram em um grupo de WhatsApp chamado Internet Livre, no qual estavam todos os influenciadores, principalmente os ligados ao Olavo de Carvalho. Nesse grupo, comecei a ver o que não se falava publicamente. Alguns daqueles influenciadores viraram deputados. Vi posturas e comentários que, fora da bolha deles, não eram aparentes. Fora da bolha, eles tentavam passar a imagem de representantes de uma direita democrática e moderada. Mas entre eles justificavam linchamentos virtuais. Eu comecei a discutir com essas pessoas. Ali, ainda em 2018, um influenciador já dizia que Bolsonaro precisava dar um golpe. E eles conseguiriam manipular a opinião pública, levando a população a apoiá-los. Foi então que rompi com eles e decidi pesquisar sobre essa direita da qual eu fiz parte. Eu vi a radicalização em massa ocorrendo.
Quando houve essa manifestação de golpe no grupo, Bolsonaro já era presidente eleito?
Ele já tinha sido eleito, mas não tinha assumido. Estava na transição. Aquela frase foi o que me fez pensar que havia algo muito errado. Ele tinha acabado de ser eleito, e as pessoas já estavam propondo algo que rompesse com a democracia. Eu já vinha percebendo comportamentos com os quais eu não concordava, como atacar a comunidade LGBTQIA+, atacar mulheres, assediar jornalistas online. A extrema direita existe, ela é real, palpável e está causando danos em vários países. À época da bolha, eu não acreditava que existia. Quando comecei a pesquisar, tive um susto muito grande. Olhei para trás e vi pessoas que eram amigos virtuais que foram agentes desse processo de radicalização. Foram eles que trouxeram os conceitos da alt right, a direita alternativa dos EUA. Foram eles que trouxeram teorias conspiratórias. Tomei um choque quando comecei a estudar. Toda a minha vida social e cibernética estava ligada a eles. Eu tinha duas escolhas. Ser honesta e mostrar as coisas como realmente são ou ficar quieta no meu canto. Escolhi a primeira, mais difícil, e hoje sofro as consequências disso.
Você defende que a extrema direita se opõe, na realidade, à democracia liberal, na forma como a conhecemos hoje. E que questões culturais, para esse grupo, estão acima de pautas econômicas. O objetivo é fazer guerra cultural e eliminar a democracia liberal?
Exatamente isso. Muita gente se perde quando está analisando o bolsonarismo e a extrema direita no Brasil. As pessoas têm uma fixação em relacionar a extrema direita ao neoliberalismo. As questões econômicas são irrelevantes no contexto maior. O que importa realmente, o fio condutor, é rejeitar a ordem liberal e democrática do pós-guerra. É uma rejeição à democracia liberal e seus princípios básicos, principalmente aqueles relacionados a avanços nos direitos civis, direitos humanos, proteção de minorias e separação dos poderes. O objetivo maior é derrubar o sistema da democracia liberal.
Muita gente se perde quando está analisando o bolsonarismo e a extrema direita no Brasil. As pessoas têm uma fixação em relacionar a extrema direita ao neoliberalismo. As questões econômicas são irrelevantes no contexto maior. O que importa realmente, é rejeitar a ordem liberal e democrática.
As manifestações em frente a quartéis são um exemplo dessa tentativa?
As pessoas que estão na frente de quartéis, na maior parte, foram radicalizadas online. A maior parte delas consome conteúdo de teorias conspiratórias dos influenciadores da extrema direita brasileira. Eles dominam uma rede alternativa de influência que é muito maior, em acesso e tráfego online, do que a imprensa tradicional. Os agentes de radicalização raramente aparecem nesses espaços. Eles produzem a narrativa, disseminam as teorias conspiratórias, alguns estão nos EUA, outros, aqui no Brasil, mesmo. Existem indivíduos nessas manifestações que, de fato, têm uma crença extremista. Isso vai ser aproveitado para angariar mais pessoas. Grupos violentos da extrema direita, como neonazistas e aceleracionistas, aproveitam para irromper com a violência como se fosse uma solução legítima.
Estamos chegando ao momento em que a violência será justificada como método de atuação política?
Não é de agora. Já tivemos mais de um caso de extremismo violento no Brasil. Já tivemos terrorismo doméstico e vamos ter mais casos. A radicalização segue em curso. Vai chegar o momento em que essas pessoas vão entender que a violência é a única saída para questões políticas. A tendência é escalar. Mas elas são minoria.
A motivação e a radicalização podem aumentar a partir do momento em que Lula tomar posse e Bolsonaro deixar a Presidência?
Com certeza. Alguns deles podem ter a crença de que o Bolsonaro não foi extremista o suficiente. Que o líder não chegou ao extremo que eles gostariam. O desencanto com o líder é um dos vetores que fazem a chave virar nos grupos extremistas. Quando ocorre um desencanto com o líder, ou a pessoa sai do grupo extremista ou passa a acreditar que o líder foi fraco e não atendeu às demandas esperadas.
O bolsonarismo é muito maior do que o Bolsonaro. Bolsonaro é um avatar desse movimento que surge no começo dos anos 2000, de forma online e, depois, chega no ambiente físico. Ele vai continuar sendo inferior a essa extrema direita que é muito mais ampla, reúne muitos grupos e correntes diferentes. Bolsonaro não tem controle nenhum. Com certeza, ele será substituído.
Hoje o bolsonarismo é maior do que Bolsonaro ou ele é o grande líder incontestável?
O bolsonarismo é muito maior do que o Bolsonaro. Bolsonaro é um avatar desse movimento que surge no começo dos anos 2000, de forma online e, depois, chega no ambiente físico. Ele vai continuar sendo inferior a essa extrema direita que é muito mais ampla, reúne muitos grupos e correntes diferentes. Algumas vertentes até são antagônicas, mas, no final das contas, o que une todas elas é a preferência por um modelo autocrático, a rejeição à democracia, a uma ordem social hierarquizada por raça e gênero. Bolsonaro não tem controle nenhum.
Sendo um avatar, Bolsonaro pode ser substituído?
Com certeza, ele será substituído. A direita radical é muito maior do que se estimava. Eu vinha alertando que estavam equivocadas as previsões de que eram 15% ou 20% da população na radicalização. É mais de 40%. As facções que eventualmente romperam, especialmente durante a pandemia, vão se reagrupar para fazer oposição ao governo Lula.
Você tem defendido a necessidade de serem criados programas de desradicalização. Como eles seriam e quem estaria à frente? Os governos ou a sociedade civil?
Radicalização é uma palavra nova no Brasil, mas existe um campo de estudo acadêmico em outros países, chamado prevenção e combate ao extremismo violento, que já promove políticas públicas. Especialmente na Europa. A desradicalização não é um programa que possa ser feito em massa. A própria radicalização vem de um processo que reúne fatores individuais, sobretudo no caso do extremismo violento. A desradicalização precisa de abordagem setorial. Não adianta só criar programas para extremistas. Precisa ter primeiro a prevenção à radicalização. Vai precisar do envolvimento da sociedade civil, de professores, de líderes comunitários, de religiosos, de esportistas. Depois, trabalhar em contra-narrativas que sejam persuasivas o suficiente para retirar as pessoas dos sistemas extremistas. Em outros países, existem programas de desradicalização focados em extremistas violentos. A Alemanha é um dos pioneiros. A Noruega tem programas. O Reino Unido e os EUA têm programas, tanto governamentais quanto não governamentais. Aqui a gente não tem ainda nada parecido, nem em termos de prevenção da radicalização, que seria o primeiro passo. Para depois fazer a desradicalização. Ou seja, desligar e desengajar pessoas desse sistema de mentalidade conspiratória e crenças extremistas.
Como fazer programas de desradicalização sem que isso seja apontado como censura ideológica?
A primeira coisa é formular contra-narrativas persuasivas. Aos poucos, mostrar que essa narrativa dos extremistas, de que eles defendem a liberdade de expressão, é frequente para eles conseguirem disseminar ódio e radicalizar mais pessoas. A partir do momento em que as pessoas começam a perceber que a ideia da liberdade de expressão, para eles, está diretamente ligada à defesa de falar coisas absurdas e mover a Janela de Overton (teoria sobre as ideias toleradas no discurso público), a gente consegue criar uma resiliência na sociedade. Esse argumento da extrema direita não é novo. Ele é usado desde o pós-guerra. Desde os negacionistas do Holocausto no pós-guerra, neonazistas, neofascistas, até hoje se ancoram no argumento de que estão apenas querendo a liberdade de expressão. A população precisa entender que, na verdade, querem mover a Janela de Overton e levar a mais extremismo.
Esse argumento da extrema direita não é novo. Ele é usado desde o pós-guerra. Desde os negacionistas do Holocausto no pós-guerra, neonazistas, neofascistas, até hoje se ancoram no argumento de que estão apenas querendo a liberdade de expressão. Eles vão tornando naturais certos absurdos no discurso público.
A estratégia é apelar à liberdade de expressão para falar coisas chocantes e normalizá-las?
Eles vão tornando naturais certos absurdos no discurso público. Coisas que seriam inaceitáveis anteriormente, para depois ir movimentando essa janela (de Overton) e anestesiando as pessoas. Um comentarista de TV dizer que deveriam descriminalizar o partido nazista era inaceitável há alguns anos e décadas. Hoje, streamers e youtubers já começam a falar que tudo bem, que é tudo em nome da liberdade de expressão. E as pessoas que estão presas nas câmaras de eco começam a discutir se pode ou não. A partir do momento em que elas discutem se pode, já foi colocado na pauta que o partido nazista poderia ser pensado ou legalizado.
Você defende que não foi nos protestos de 2013 que a direita radical tomou forma. sua tese aponta que isso ocorreu nos primórdios do Orkut. O que você aponta é que o caldo começou a ferver lá atrás, e que 2013 teria sido apenas o marco?
O ano de 2013 só foi um marco para quem estava fora da bolha da direita. Quem estava dentro do ecossistema sabe que havia uma movimentação muito anterior, de quase 10 anos antes. O movimento já estava se formando. Em 2013, na verdade, essa bolha da extrema direita condenou as manifestações porque houve black blocs e violência. Não eram manifestações que traziam pautas da direita online. A partir do momento em que a esquerda foi para as ruas para cobrar um governo de esquerda, isso abala a base, obviamente. Mas não foi fundamental como as pessoas acham que foi. Não foi o marco zero.
Você aponta que o pensador Olavo de Carvalho é o grande nome da extrema direita. Em 2014, Bolsonaro sai da eleição como o deputado federal mais votado do Rio de Janeiro e, naquele momento, ele já declarava que seria candidato à Presidência em 2018. Foi Bolsonaro que se colocou como líder ou Olavo apontou para ele dentro do ecossistema?
Foi Olavo. Em 2014, os filhos do Bolsonaro, o Eduardo e o Carlos, já eram alunos do Olavo no curso online de filosofia. O Olavo já fazia em 2014 lives, hangouts, como chamávamos, com a família Bolsonaro, introduzindo o nome de Bolsonaro como representante da direita. Não foi orgânico. Os militares, até o começo de 2018, apoiavam o general (Hamilton) Mourão, que vinha fazendo há anos palestras e encontros. No começo de 2018, quando Bolsonaro estava escolhendo a chapa entre a Janaina Paschoal e o Luiz Philippe de Orleans e Bragança, foi nessa época que decidiram pelo Mourão (para vice). E aí os militares embarcaram na candidatura do Bolsonaro. Os alunos do Olavo fizeram o trabalho de disseminar, de mobilizar seguidores para abafar vozes contrárias. Foram muitos assédios sistemáticos dentro da própria direita para viabilizar o nome do Bolsonaro como candidato. Depois, virou uma coisa orgânica. Saiu das redes sociais e foi para o físico. Como Olavo e discípulos dominavam a rede social, isso veio como se fosse uma cachoeira.
Foi por influência do Olavo que os grupos do que viria a se tornar a direita radical deixaram de pautar apenas o antipetismo e passaram a adotar teorias da extrema direita internacional, como o “globalismo” e o “gayzismo”?
Todas as teorias conspiratórias foram introduzidas pelo Olavo e seus alunos. Foi isso que radicalizou a direita no Brasil. Significou tudo isso que estamos vendo hoje. Significou 700 mil mortes na pandemia. Ataques sistemáticos à ordem democrática, ameaças de golpe o tempo inteiro. Significou famílias destruídas porque temos pessoas totalmente radicalizadas pelo pensamento conspiratório. Significou laços sendo rompidos e o extremismo violento. E, acima de tudo, significou o estabelecimento da extrema direita no debate público, como se fosse um agente que poderia estar no debate democrático, sendo que esse agente rejeita a democracia.
No seu livro, você aborda os tradicionalistas, uma corrente que seria relacionada ao Steve Bannon, ex-estrategista de Donald Trump. A questão de fundo da extrema direita, dentro do conceito de guerra cultural, é a racial?
Em mais de 90%, a questão é racial e de gênero. A ideia é, realmente, uma rejeição à ordem social que não é mais hierarquizada por gênero e raça. É uma nostalgia de tempos sem a democracia liberal, nos quais existia uma ordem hierárquica, autocrática, em que você tinha diferenças de classe e gênero muito estabelecidas. Mulher é inferior ao homem. Mulher é submissa ao homem. E determinadas populações são inferiores em QI e em habilidades aos brancos. O que eles querem é uma ordem social hierarquizada.
Há setores da esquerda brasileira que não conseguiram ainda admitir que o comportamento público deles auxiliava a formação do bolsonarismo. Eles promovem assédios online até hoje, coordenados, e não admitem que são agentes que jogam pessoas no colo da extrema direita.
Você citou que, no início do primeiro governo Lula, em 2003, quem criticava o PT recebia carimbos. O quanto esse comportamento e o radicalismo identitário de setores da esquerda ajudaram a formar essa extrema direita?
Ajudaram, sem dúvida. Há setores da esquerda brasileira que não conseguiram ainda admitir que o comportamento público deles auxiliava a formação do bolsonarismo. Eles promovem assédios online até hoje, coordenados, e não admitem que são agentes que jogam pessoas no colo da extrema direita. Eu ainda hoje sofro assédios coordenados. Hoje não vou para o colo da extrema direita porque sei exatamente o que é a extrema direita, mas é fácil cair lá. Quando um indivíduo depara com assédio online, ele vai encontrar acolhimento onde? No outro lado. Lá ele vai encontrar a sensação de pertencimento, uma necessidade inerente ao ser humano. Nos últimos dois anos, a esquerda democrática abriu a retaguarda para aceitar pessoas não alinhadas ao PT. Se não tivesse ocorrido essa abertura, dificilmente Lula teria conseguido se eleger. A esquerda democrata está fazendo a abertura, mas existe ainda a extrema esquerda que atua nas redes. São poucos, porém barulhentos e cruéis.
Uma melhora na situação econômica do país ajudaria a desradicalizar setores?
Não é mais suficiente. Não são questões econômicas que estão em jogo para essas pessoas. O debate está muito mais relacionado a questões culturais, de ordem social. Claro que você consegue angariar uma parcela da sociedade que vai sentir no bolso uma melhoria econômica. Mas o discurso que mobiliza essas pessoas está dentro da mentalidade conspiratória, de questões culturais de que a esquerda e os liberais querem escravizar a população, destruir famílias, fechar igrejas. Já saíram da questão econômica há algum tempo.