Desafios da regulamentação do Fundeb

Desafios da regulamentação do Fundeb

 

OS DESAFIOS NA REGULAMENTAÇÃO DO NOVO FUNDEB

O fundo foi constitucionalizado, mas ainda precisa ser regulamentado. Tramitação define pontos como fatores de ponderação e vinculação de recursos 

Alunos de escola municipal de Recife dentro de sala de aula, sentados e ouvindo professora.

Após anos de luta e mobilização de organizações, profissionais do campo e membros da  sociedade civil, o Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação (Fundeb) finalmente tornou-se permanente. Desde o dia 26 de agosto, o novo texto consta na Constituição Federal. E  com garantias importantes, como o aumento da complementação da União de 10% para 23% e a inclusão de mecanismos como o Custo Aluno-Qualidade (CAQ) e o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Básica (Sinaeb), conquistas de movimentos sociais e da sociedade civil organizada. 

No entanto, a promulgação da Emenda Constitucional 108/2020 (EC 108) não significa que as discussões acabaram. A etapa de regulamentação, que deve se estender por ao menos dois anos, detalha vários pontos previstos no texto. Além disso, há mecanismos – como o Sinaeb e o Sistema Nacional de Educação (SNE) – que estão no texto da EC 108 mas precisam de leis complementares. 

A deputada Professora Dorinha (DEM-TO) já protocolou o projeto de lei (PL) de regulamentação do Fundo. Isso porque algumas questões precisam de discussão imediata para que o Fundeb seja colocado em funcionamento em 2021. Entre os pontos mais urgentes estão a vinculação do CAQ ao Fundeb, a utilização dos recursos públicos para educação pública, o aprimoramento do controle social e os fatores de ponderação. A vinculação de parte dos recursos a indicadores de aprendizagem e de enfrentamento das desigualdades educacionais será discutida a médio prazo. O CAQ não aparece no PL.

Assim como na tramitação da PEC principal, não faltam pontos de disputa nesta etapa, tanto a curto quanto a médio prazo – já que as leis complementares devem ser discutidas posteriormente. A Campanha Nacional pelo Direito à Educação elencou ao menos 7 pontos de atenção: 

  • CAQ: é preciso delimitar quais os critérios considerados no cálculo do CAQ. Ou seja, quais os fatores imprescindíveis que irão garantir as condições adequadas para a efetivação dos processos de ensino e aprendizagem com qualidade. Embora não conste no primeiro projeto e precise de lei complementar, a Campanha defende que o CAQ seja ao menos mencionado como parâmetro de qualidade e financiamento, já que é previsto pela EC 108; 

  • Fatores de ponderação: Quanto será o investimento por aluno em diferentes etapas e modalidades de ensino (Educação infantil, Ensino Médio urbano, Ensino Médio rural, Educação Escolar Indígena, Educação Quilombola, etc); 

  • Financiamento de escolas privadas: Há instituições privadas que recebem recursos do Fundeb, como entidades filantrópicas ou associações que atendem a Educação Especial. A Campanha defende que os recursos do Fundeb sejam destinados exclusivamente a escolas públicas;

  • Controle social, exigindo maior participação da sociedade nos órgãos de controle correspondentes como, por exemplo, nos Conselhos Municipais de Educação;

  • Distribuição dos recursos e vinculação por resultados: A EC determina que parte dos recursos (2,5% da complementação da União) esteja vinculada a indicadores de aprendizagem que garantam equidade, e é na regulação que se delimita o que se considera nesta avaliação. O texto utiliza o Sinaeb como base, mas este ainda precisa ser regulamentado; 

  • Valorização das e dos profissionais da educação:  será discutida a atualização da regulamentação do Piso Nacional do Magistério a partir de mudanças de critérios no novo Fundeb;

  • Adicionalmente, o Sistema Nacional de Educação também precisa ser regulamentado e implementado em tramitação a parte. Ele organiza o regime de  colaboração entre os diferentes níveis de governo.

CAQ e fator de ponderação

Embora previsto no Plano Nacional de Educação (PNE),  o Custo Aluno-Qualidade (CaQ) não foi consenso na tramitação do Fundeb. Ele traduz quanto custa garantir educação pública de qualidade por etapa, modalidade e localidade. 

“Não é possível ter uma escola que não possa ser identificada como tal. É preciso garantir itens como biblioteca, laboratório, água potável, energia elétrica, quadra de esporte, acessibilidade, a valorização dos professores e demais profissionais da educação (o que inclui formação, remuneração e condições de trabalho). Em suma, condições para que a escola cumpra sua função”, diz Catarina de Almeida Santos, dirigente da Campanha. Ela lembra também da alimentação escolar, material didático e número de alunos adequado por turma. Na avaliação de Catarina, o CAQ foi disputado exatamente porque estabelece o que precisa ser investido – ao invés de ater-se ao que está disponível. 

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Agora, na fase de regulamentação, é necessário atrelar o CAQ ao Fundeb e delimitar quais elementos serão incluídos no cálculo considerando que a complementação da União ao Fundo é, no mínimo, 23% e deve ser adicionada pela complementação necessária para que em cada município e em cada estado o CAQi e depois o CAQ sejam realizados para garantir condição de efetivação do direito à educação. 

Para Andressa Pellanda, Coordenadora-Geral da Campanha, a exclusão do CAQ nesse PL indica uma resistência ao mecanismo. No entanto, como agora ele está previsto na Constituição, deve ser utilizado como parâmetro para o Fundeb e efetivamente posto em prática. “Quais parâmetros são os pontos em disputa”, resume ela.

A regulamentação também vai delimitar os fatores de ponderação, já que diferentes etapas e modalidades de ensino têm demandas – e portanto, custos – distintos. Na Educação Infantil, por exemplo, as áreas de recreação são diferenciadas, há brinquedoteca e o número de estudantes por turma deve ser menor. Na mesma linha, as escolas do campo, indígenas e quilombolas, têm menos alunos por turma e podem demandar materiais didáticos bilíngues. Ou seja, também precisam de mais recursos. Essas especificidades devem ser contempladas na regulamentação. 

Educação escolar indígena e quilombola

Em 2019, um estudo do Capítulo Brasil da Rede Internacional Gulmakai analisou o impacto do novo Fundeb para a educação escolar indígena, quilombola e em territórios de vulnerabilidade social. O documento, apresentado no Congresso, defende um Fundeb com maior participação financeira da União e traz recomendações para que o financiamento aja no sentido de reparar desigualdades estruturais históricas, como as étnico-raciais. Entre as recomendações, a de que os fatores de ponderação destas modalidades sejam de 50%. Ou seja, que o valor por matrícula seja 50% maior do que valor aluno-ano de referência, até ficar compatível com os que é estabelecido pelo CAQ. 

Givânia Silva, liderança quilombola que participou da audiência no Congresso, defende a ideia e justifica: “Não se pode pensar que um CAQ para o aluno da cidade é igual ao de um quilombo em que se chega depois de 8 ou 10 horas de barco”.

Na mesma linha, regiões com grande concentração de populações negras ou indígenas devem ser entendidas como historicamente em desvantagem em termos de acesso à educação. “A regulamentação deve observar desigualdades étnico-raciais. O [fator] 50% parte de uma realidade onde as dificuldades já estão postas”, diz Givânia, fundadora da Coordenação Nacional de Articulação das Comunidades Negras Rurais Quilombolas. Recomendou-se também fortalecer a transparência e o controle social da aplicação destes recursos. 

Garantida a maior participação financeira da União, a etapa de regulamentação é o espaço para pautar essas demandas. Gersen Baniwa, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), enfatiza que aplicar mais recursos e melhorar a infraestrutura é urgente. Muitas escolas indígenas, por exemplo, estão em situação de extrema precariedade, não tendo base própria, com aulas em espaços comunitários ou abertos. Há ainda a urgência de produzir materiais didáticos adequados e que contemplem as realidades indígenas, além de aumentar a oferta do Ensino Médio, hoje um grande gargalo da modalidade. 

No entanto, o mero repasse de recursos da União, ainda que com o fator de ponderação ajustado, não garante que eles de fato vão chegar nestas comunidades. Por isso, fortalecer o controle social e a participação nos conselhos e comitês locais é urgente. Nesse sentido, Gersen lembra a importância de estabelecer um Sistema Nacional de Educação (SNE) que coordene essas ações. “Na área da saúde, temos um bom exemplo, pois a existência de um programa nacional e que assegura conselhos distritais de saúde indígena traz maior controle”, diz. 

Médio Prazo

Para a plena efetivação do novo Fundeb, é preciso que o Sistema Nacional de Educação (SNE) também seja posto em prática. Isso porque o Fundeb é, em termos de financiamento, um “sistema de colaboração”, como definiu Andressa Pellanda, Coordenadora-Geral da Campanha Nacional pelo Direito à Educação. E coordenação entre diferentes níveis de governo é a tarefa central do que deve ser o SNE. O sistema, previsto no Plano Nacional de Educação, ainda não foi regulamentado. “O CAQ se insere dentro do SNE dado seu caráter de redutor de desigualdades interfederativas. É preciso colaboração para isso acontecer”, explica Andressa. 

O SNE, portanto, é essencial para destinar os recursos adequadamente e com eficiência. Luis Miguel Martins Garcia, presidente da União dos Dirigentes Municipais de Educação (Undime), lembra que esse mecanismo, aliado à constitucionalização do Fundeb (que assegura a permanência do repasse), auxilia imensamente na implementação de planos regionais ou municipais de Educação e permite pensar a longo prazo. Especialmente para aumentar a oferta de Educação Infantil, um grande desafio do Brasil e que fica a cargo dos municípios. 

A preocupação do presidente da Undime é construir uma regulamentação – incluindo o SNE – efetiva, mas sem demora. “Inclusive porque a pandemia deixou muito explícita a falta que um sistema coordenado faz. Não podemos abrir mão de  colaboração efetiva e horizontal, um sistema que ouça os municípios e delimite papéis claros para cada nível. Se tivéssemos tido isso, teríamos oferecido alternativas mais eficazes e em menos tempo”, justificou o dirigente. 

Sinaeb e a vinculação por resultados

O novo Fundeb estabelece também que 2,5% da complementação da União deve ser distribuída de acordo com o resultado escolar assegurando equidade, mas os indicadores deste resultado ainda não estão definidos. A distribuição deverá ser feita conforme indicadores de aprendizagem e de enfrentamento das desigualdades articulados à regulamentação do Sinaeb até 2023. 

Esse Sistema amplia o conceito de qualidade na educação para além das avaliações externas de larga escala (como o Ideb), que tendem a marginalizar ainda mais algumas redes, como as indígenas e quilombolas. “Os sistemas de avaliação são pensados baseando-se em uma falsa igualdade de acesso à educação. Chega a ser contraditório, pois reforçamos que nossos conhecimentos [quilombolas e indígenas] devem estar presentes na educação, mas avaliações como o Ideb nos ignoram completamente”, diz Givânia Silva. 

Assim como o CAQ, o Sinaeb está previsto no PNE, mas não foi implementado. Em 2016, a Portaria que o estabelecia foi revogada sem consulta prévia. Ela previa processos avaliativos mais amplos, participativos e diversificados. Eram 5 as diretrizes que baseavam a avaliação: universalização do atendimento escolar; melhoria da qualidade do aprendizado; valorização dos profissionais de educação; gestão democrática e superação das desigualdades educacionais. O modelo considerava também a comunidade escolar nos processos de avaliação e autoavaliação participativa da escola. 

No texto constitucionalizado a distribuição dos 2,5% e a ponderação sobre o cumprimento dos indicadores não estão definidos. Por isso, a EC 108 adia por dois anos a implementação deste mecanismo adicional de complementação, que só passa a valer em 2023 quando uma nova lei de regulamentação terá que ser editada. Andressa Pellanda, da Campanha Nacional pelo Direito à Educação, lembra que a preocupação não deve ser apenas com o resultado obtido em avaliações de larga escala, mas sim em garantir equidade e a melhoria de condições de ensino e aprendizagem. 

Alexandre André dos Santos, pesquisador do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (INEP) classifica o Sinaeb como um avanço justamente por ampliar as dimensões consideradas. Para ele, a autoavaliação participativa da escola deve ser mantida. A Portaria que tratava do Sinaeb e que foi revogada em 2016, citava os Indicadores da Qualidade na Educação como um exemplo de instrumento metodológico para este processo. Desenvolvidos por iniciativa da Ação Educativa, a construção da proposta dos Indicadores contou com a colaboração de diversos órgãos e profissionais da educação. 

Na regulamentação do Sinaeb, Alexandre preocupa-se com a governança do sistema. Para ele, criar espaços de controle social é crucial para dar mais legitimidade às decisões – inclusive, o pesquisador defende que a lei complementar não precisa delimitar todos os aspectos técnicos do processo, mas sim estabelecer marcos gerais e gestão democrática. 

Nesse sentido, debates não faltarão durante, ao menos, os próximos dois anos. Não apenas a regulamentação da EC 108, como leis complementares que a tangenciam e posteriores leis estaduais e municipais vão exigir discussões e muita mobilização para garantir que o debate de anos que culminou na EC 108 não tenha sido em vão.

Reportagem: Nana Soares | Edição: Claudia Bandeira

 

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