Flexibilizar o currículo e oferecer opções que capacitem o aluno tanto para o mercado de trabalho quanto para o Ensino Superior e, além disso, diminuir a distância qualitativa entre o ensino público e o privado. Esses são os principais objetivos das recentes mudanças aprovadas pelo Governo Federal para o Ensino Médio em todo o país, segundo o Ministério da Educação (MEC). A partir do ano que vem, as secretarias de ensino terão que oferecer possibilidades aos alunos, como, por exemplo, utilizar 30% da grade curricular em um curso técnico profissionalizante.
“O Novo Ensino Médio foi regulamentado em 2017. O que houve agora foram algumas adequações e mudanças pontuais nessa reforma de sete anos atrás”, explica Maria Helena de Castro, professora universitária titular da Cátedra Instituto Ayrton Senna de Inovação em Avaliação Educacional, ligada à Universidade de São Paulo (USP) Ribeirão Preto. “Tanto esta como a mudança anterior vieram com o objetivo de responder a esse novo cenário de mudanças abruptas, oferecendo uma educação mais adaptada às necessidades contemporâneas. O que de fato aconteceu é que a rede particular se adaptou, mas a pública, que atende 85% dos estudantes brasileiros, ainda não, principalmente por causa da pandemia”, explica Mozart Neves Ramos, professor universitário titular da Cátedra Sérgio Henrique Ferreira, também da USP.
A lei sancionada recentemente determina que os sistemas de ensino devem começar a implementação do Novo Ensino Médio a partir de 2025, para os estudantes da primeira série do Ensino Médio. Em 2026, as regras começarão a valer também para a segunda série e, em 2027, para a terceira.
Apesar das expectativas positivas, especialistas e gestores educacionais apontam que a implementação da reforma enfrenta desafios significativos, como a capacitação dos professores e a adaptação da infraestrutura escolar, principalmente em locais já carentes, quando o assunto é estrutura escolar e qualidade de ensino, fatores fundamentais para o sucesso da mudança. “Temos muitos desafios que exigem tempo e investimentos reais para que as mudanças de fato se concretizem. Uma das principais dificuldades está na exigência de que as escolas ofereçam múltiplos itinerários formativos (as disciplinas optativas). Na prática, se torna um fardo especialmente para as escolas de municípios menores, que muitas vezes não possuem a infraestrutura, recursos humanos ou financeiros para assim atender a essas demandas”, alerta o diretor da escola estadual Professor Domingos João Baptista Spinelli e do Sindicato dos Professores do Estado de São Paulo, Fábio Sardinha.
O novo formato preserva uma base comum para todos os estudantes. Disciplinas como Português, Matemática, História, Geografia e Ciências continuarão sendo obrigatórias, garantindo que todos os alunos tenham uma formação mínima necessária para sua participação na vida social e profissional. “O que muda é que agora o aluno terá 2.400 horas dessas disciplinas obrigatórias, chamadas de Formação Geral Básica, quando antes a reforma anterior previa 1.800 horas nos três anos de Ensino Médio”, explica Mozart.
“A manutenção dessa base comum é um ponto fundamental, pois, sem ela, corremos o risco de oferecer uma formação muito desigual entre os estudantes, especialmente aqueles de áreas menos favorecidas”, defende Maria Helena.
Contudo, o diferencial do Novo Ensino Médio está na possibilidade de os alunos escolherem parte das disciplinas que irão cursar, permitindo-lhes traçar trajetórias de acordo com seus interesses e aspirações. O currículo é dividido entre a formação geral básica e os chamados itinerários formativos, que oferecem áreas de conhecimento específicas, como Linguagens, Ciências da Natureza, Ciências Humanas e Formação Técnica e Profissional. Trata- -se de uma espécie de aprofundamento de 600 horas na área escolhida. Para Mozart, “essa flexibilidade pode dar mais sentido à vida escolar dos jovens, que muitas vezes sentem que o Ensino Médio não dialoga com suas realidades. Agora, eles poderão moldar sua formação com base nas suas aspirações, seja para o mercado de trabalho ou para o Ensino Superior.”
A lei determina que os sistemas de ensino devem garantir que todas as escolas ofereçam, no mínimo, dois itinerários formativos.
ENSINO TÉCNICO
Os alunos deverão ter a opção também de formação profissional técnica no lugar dos itinerários formativos. Nesses casos, os cursos voltados para o mercado de trabalho devem ocupar até 900 horas dos três anos de Ensino Médio, diminuindo a carga horária das disciplinas obrigatórias para 2.100 horas. Segundo o MEC, as 300 horas que poderão ser destinadas aos conteúdos da formação geral deverão tratar de componentes que tiverem estrita relação com a área do curso técnico ofertado. Ou seja, pelo projeto, haverá um aproveitamento de disciplinas que forem compatíveis com o curso de formação profissional. Por exemplo, em um curso de mecatrônica, poderão ser aproveitadas disciplinas como Matemática, Física e Química na organização do currículo.
As secretarias poderão firmar parcerias com iniciativa privada ou outras instituições públicas profissionalizantes para garantir a oferta de cursos técnicos aos alunos.
Ainda de acordo com o MEC, de cada 100 alunos que terminam o Ensino Médio, 22 ingressam no Ensino Superior no Brasil. “Ou seja, os outros 78 precisam estar aptos para o mercado de trabalho, por isso essa formação técnica pode ser crucial para evitarmos desemprego e que esse jovem vá para o caminho da criminalidade”, afirma Mozart.
“Ainda há pontos a serem aperfeiçoados nesse sentido. Percebemos que a maioria dos principais cursos técnicos oferecidos por entidades já consolidadas, como o Centro Paula Souza ou o Senai, tem carga horária superior a 900 horas. Como o aluno fará para conseguir se profissionalizar em uma área mais interessante se o programa não oferece essa disponibilidade? Vamos observar”, pondera Maria Helena.
Outra questão é quais cursos serão ofertados, onde e em com que estrutura. “É preciso padronizar o máximo possível o ensino, levando em conta as diferenças culturais que temos no país”, diz Mozart. Nesse sentido, Sardinha crítica o projeto. “Acreditamos que investimentos no ensino técnico público serão desencorajados com a possibilidade de parcerias com a iniciativa privada”, afirma.
Maria Helena enfatiza que qualquer reforma deve começar com a integração dos professores e diretores, garantindo que os profissionais estejam preparados para conduzir as transformações necessárias.
Apesar do potencial positivo dessa flexibilização, a viabilidade de sua implementação em todas as escolas do Brasil é questionada. Um item chama a atenção na lei, que permite às secretarias implementar o Ensino à Distância (EaD), em casos de “excepcionalidade”. Sobre este ponto, o secretário-executivo adjunto do MEC, Gregório Grisa, explica que “o fenômeno da mediação por tecnologia já é utilizado em várias realidades, principalmente na Região Norte do Brasil, como no Amazonas, em função da peculiaridade geográfica”. “Então, são essas exceções de que trata o texto. Nós temos que regulamentar isso, ouvindo as experiências das redes, mas não se está autorizando, absolutamente, a introdução de EaD no Ensino Médio”, explica Grisa.
“Eu não sou a favor do ensino 100% remoto, mas também não sou contra novas tecnologias para diminuir distâncias. É preciso esperar um pouco para avaliar como essas carências serão atendidas, mas é mais importante ainda que o futuro da Educação seja pensado sem conservadorismo, buscando novas formas de engajamento e qualidade no ensino”, acredita Maria Helena. Já Sardinha afirma que é preciso cuidado, pois o projeto aprovado abre brechas para a inclusão do EaD, mesmo no ensino regular.
AVALIAÇÃO VAI MUDAR
Uma das inovações mais celebradas do Novo Ensino Médio é o foco no desenvolvimento de competências e habilidades. O novo currículo pretende ir além da memorização de conteúdos e promover o desenvolvimento de habilidades práticas, como pensamento crítico, resolução de problemas e competências socioemocionais. Esse enfoque, segundo o MEC, vai preparar os alunos para uma vida em sociedade mais complexa e para um mercado de trabalho que valoriza essas habilidades. “O mercado de trabalho não precisa apenas de técnicos que saibam operar máquinas ou realizar tarefas específicas. Ele busca profissionais com capacidade de resolver problemas, trabalhar em equipe e se adaptar a mudanças rápidas. O novo Ensino Médio parece reconhecer essa realidade”, afirma Carolina Silva, especialista em educação e mercado de trabalho.
Outro aspecto a ser considerado é a mudança na forma de avaliação dos alunos. O objetivo é que a avaliação deixe de ser apenas uma ferramenta punitiva, centrada em provas e notas, e passe a ser um processo mais formativo, acompanhando o desenvolvimento contínuo dos alunos. “Precisamos ver os alunos como seres em constante evolução. O foco em provas e exames muitas vezes deixa de lado o aprendizado em si. Com uma avaliação mais formativa, podemos incentivar o crescimento intelectual e emocional dos estudantes”, afirma Maria Helena. Na prática, as avaliações deverão ser feitas a partir de raciocínio lógico e diálogo entre alunos e professores.
Apesar do otimismo em torno de muitas dessas mudanças, a implementação do Novo Ensino Médio ainda enfrenta obstáculos concretos, principalmente no que diz respeito à preparação dos professores e à adaptação das escolas. A formação continuada dos docentes é um dos pontos mais críticos, já que muitos professores ainda não estão prontos para lidar com as novas demandas, como os itinerários formativos e as novas formas de avaliação. “Formar os professores é essencial. Não podemos exigir que eles implementem essas mudanças sem oferecer a capacitação adequada. Muitos ainda estão presos a métodos tradicionais de ensino e avaliação, mas esse é um problema na formação do professor, vem de como ele foi qualificado, e mudar isso requer tempo, investimento e acompanhamento contínuo”, aponta o professor Mozart. “Além de capacitação, o professor precisa ser valorizado, com melhores condições de trabalho e salários melhores”, complementa Sardinha.
ENEM GERA DEBATE
Um dos pontos que ainda é alvo de críticas de especialistas é a manutenção do Exame Nacional do Ensino Nacional (Enem) com o mesmo formato de conteúdo atual. Na proposta original aprovada pela Câmara de Deputados, a principal prova que qualifica estudantes para o Ensino Superior passaria por mudanças a partir de 2027, quando os primeiros alunos formados a partir do ciclo completo do Novo Ensino Médio estarão na reta final de formação. Pelo projeto original, o Enem também avaliaria as disciplinas optativas, mas o presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) vetou a mudança antes de sancionar o projeto. Ao vetar o trecho, o governo argumentou que a cobrança do conteúdo flexível “poderia comprometer a equivalência das provas, afetar as condições de isonomia na participação dos processos seletivos e aprofundar as desigualdades de acesso ao Ensino Superior”.
Para o professor Mozart Neves Ramos, “seria essencial também que o Enem acompanhasse as mudanças na grade curricular. No fim das contas, corre-se o risco de mantermos o velho ensino focando apenas nas mesmas matérias na preparação para a prova”. A professora Maria Helena reforça o ponto de vista e lembra que “os alunos que optarem pelo curso profissionalizante terão menos horas na Formação Geral Básica, então é provável que terão desvantagem no Enem, já que o conteúdo técnico ficará de fora”.
Fábio Sardinha vai na contramão e reforça que a Base Nacional Comum Curricular deve ser abordada na Formação Geral Básica e que o Enem abranger essa base é a forma mais justa de avaliação. Para o sucesso do ensino público no Brasil “vai ser necessário um aumento significativo nos investimentos, mas que será benéfico para sociedade no médio e longo prazo”, conclui Sardinha. A Diretoria Regional de Ensino não quis comentar as mudanças recém aprovadas para o Ensino Médio.