Descaso para dois meses de aula
'Olhar com tanto descaso para dois meses de aula é desvalorizar a educação pública', diz especialista sobre considerar o ano perdido
Claudia Costin, diretora-geral do Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais da Fundação Getulio Vargas (FGV) e ex-secretária municipal de Educação, defende a volta imediata ao ensino presencial para crianças e adolescentes e teme a volta do trabalho infantil.
A rede pública de ensino sofreu muito com a evasão escolar durante a pandemia: cerca de 25 mil alunos abandonaram as escolas do município no último bimestre deste ano; fora outros 80 mil na rede estadual. Como atrair essas crianças de volta para a sala de aula?
Tivemos um grave retorno do trabalho infantil na pandemia. Ou seja, parte das crianças que antes estavam na escola, hoje estão trabalhando na informalidade para ajudar os pais. Na crise econômica que se seguiu, muitos pais não gostariam que eles parassem de trabalhar. Mas, se isso se estabelece, teremos um retrocesso de mais de 20 anos no combate ao trabalho infantil. O fato de o ensino presencial ter se tornado obrigatório já ajuda a atrair essas crianças de volta para a escola, uma vez que esse é um dos requisitos para concessão do Bolsa Família, por exemplo. Além disso, a Unicef tem liderado uma busca ativa por essas crianças em todo o país, envolvendo assistentes sociais, associações comunitárias e até os próprios colegas desses alunos. Isso tem funcionado razoavelmente bem.
E como recuperar esse tempo perdido de quase dois anos sem estudar, já que, na rede pública, as aulas via internet eram extremamente limitadas?
Nada substitui o professor. Nessa volta às aulas, que se iniciou em sistema de rodízio, já foi feita uma primeira avaliação diagnóstica da aprendizagem perdida. Infelizmente, no caso da alfabetização, a situação é dramática: as crianças de terceiro e até de quarto ano não só deixaram de se alfabetizar, como esqueceram uma parte do que tinham aprendido. Vamos ter que alfabetizá-las novamente e criar um sistema de aceleração de aprendizagem para essas crianças e jovens. A pandemia expôs e, ao mesmo tempo, aprofundou a desigualdade educacional. No retorno às aulas, a pandemia deve ser um objeto de estudo, pois esses alunos sentiram na pele esse momento histórico. Construir uma narrativa com tudo o que aconteceu, integrando diversas disciplinas, pode ajudar a engajar mais esses alunos: o que é média móvel, o que é um vírus, o que é uma mutação? Isso tudo pode estar integrado.
Os alunos das escolas privadas, em geral, tiveram muito mais condições de ter esse conteúdo remoto. Isso não cria um abismo ainda maior entre esses dois grupos?
Certamente. Alunos de classe média, em boa parte, tiveram seus pais em casa, por teletrabalho. Não foi o que aconteceu com muitos adolescentes da escola pública, que se desengajaram do aprendizado: eles ficaram sem os pais em casa, sem um ambiente adequado para aprender, sem conectividade, e sem equipamentos para aprender. Depois de muito tempo sem contato com o estudo, é quase natural que esses jovens se afastem dele. Por isso, é muito importante que a gente se prepare para, já em 2022, ampliarmos o número de escolas públicas em tempo integral e o uso da tecnologia.
Muitos alegam que falta pouco para o ano letivo acabar, então não é preciso pressa para retornar agora em 2021. Como você enxerga essa ideia?
Esse discurso que muitos pais propagam não faz sentido. Primeiro, se dizia que não deveria voltar sem todos os professores plenamente vacinados. Quando isso finalmente aconteceu, muitos disseram que já estava no fim do ano e por isso não precisaria ter pressa. O que é preciso se lembrar é que, para uma criança e um adolescente, dois meses é bastante tempo. Dois meses a menos de aprendizagem vão gerar ainda mais desengajamento. Olhar com tanto descaso para dois meses de aula é desvalorizar a educação pública.
Unidades federais de ensino, por exemplo, já reclamavam bastante de cortes de verbas por parte do governo federal nos últimos anos. Então as aulas remotas se traduziram numa sobrevida ao orçamento dessas instituições, visto que houve redução de contratos e serviços. Essas instituições já deveriam ter voltado às aulas presenciais?
No Ensino Superior, a urgência para voltar às aulas presenciais não é tão grande, pois todos já têm autonomia para aprender. Hoje, temos bibliotecas digitalizadas, artigos de revistas consolidados em repositórios digitais. Então, temos mecanismos, em algumas áreas, para aprender, mesmo longe da universidade, durante certo tempo. Ainda assim, a área de pesquisa e os laboratórios, por exemplo, funcionaram na pandemia. Para se voltar ao presencial, precisa-se de investimento em infraestrutura: na manutenção dos prédios e na ventilação das salas, por exemplo. Com toda essa verba cortada das universidades federais, como organizar um retorno seguro? É bastante desafiador. Por outro lado, todos são adultos e estão vacinados. Elas podem até voltar ao presencial, mas precisam de orçamento para fazer as manutenções prediais necessárias.
Na sua avaliação, qual foi a faixa etária mais prejudicada com o distanciamento da escola?
Sem dúvidas, foram as crianças e adolescentes, porque elas não têm autonomia plena para aprender. E também porque, para a socialização além dos muros da própria casa, elas dependem da escola. A escola é uma instituição em que consigo inserir a criança e o adolescente numa sociedade um pouco maior, mas de forma protegida.