Desigualdade de renda no Brasil
Desigualdade de renda no Brasil caiu de 2002 a 2015 [nos governos Lula e Dilma do PT], aponta estudo inédito
Resultado contraria pesquisas que mostravam estabilidade ou aumento da iniquidade neste século.
Érica Fraga - Douglas Gavras - Gustavo Queirola
Folha de São Paulo - 23 de outubro de 2021
Um novo estudo poderá mudar, pela terceira vez em menos de uma década, a interpretação do que tem ocorrido com a desigualdade de renda no Brasil desde o início deste século.
Feito por economistas do Insper, o trabalho inédito, ao qual a Folha teve acesso, mostra que a disparidade na distribuição de recursos no país caiu de forma ininterrupta entre 2002 e 2015, voltando a aumentar em 2016 e 2017, mas para um nível inferior ao da virada do milênio.
Os resultados do novo trabalho indicam que todas as fatias da população adulta brasileira —dividida em cem partes iguais, os chamados centésimos da distribuição— situadas abaixo dos 29% mais ricos tiveram crescimento em suas rendas anuais acima da média nacional de 3%, no período analisado.
Já as parcelas da população distribuídas acima desse corte aferiram crescimento médio anual de suas rendas entre 2,4% e 2,9%, inferior, portanto, à média do país. A exceção foram duas fatias próximas ao topo da pirâmide da riqueza do país.
Essa configuração estaria por trás da queda da desigualdade brasileira medida pelo índice de Gini, métrica que vai de 0 (patamar hipotético que refletiria uma sociedade onde os recursos são igualmente distribuídos) a 1 (nível também conceitual, que indicaria um extremo de iniquidade).
Os cálculos indicam que o Gini do Brasil recuou de 0,583 para 0,547, entre 2002 e 2017. O resultado, segundo os economistas, correspondeu à saída de 16 milhões de pessoas da pobreza no período.
Os resultados obtidos pela equipe do Insper contrariam dois diagnósticos que já haviam mudado a percepção de que a concentração de renda no Brasil diminuía na esteira de fatores como ampliação do acesso à educação e programas de transferência de renda.
Ao obter um melhor retrato dos rendimentos dos mais ricos, o primeiro deles mostrava que a desigualdade brasileira tanto era mais alta do que se imaginava anteriormente, quanto permanecia em um nível de relativa estabilidade, não de queda.
Mais recentemente, uma segunda conclusão ainda mais preocupante surgiu.
Em uma nota técnica publicada em dezembro de 2020, os pesquisadores Mauricio de Rosa, Ignacio Flores e Marc Morgan, do World Inequality Lab, centro fundado e codirigido pelo reputado economista francês Thomas Piketty, apresentaram cálculos novos que indicavam um aumento da concentração de renda brasileira.
Os dados que mostram essa trajetória estão disponíveis no site do grupo, o WID.world, e alarmaram a Cepal (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe), um dos principais centros de diagnóstico sobre problemas econômicos e sociais da região.
"Em alguns casos, como os de Brasil e México, a desigualdade não apenas não caiu, como aumentou, gerando, portanto, um novo alerta para um olhar atento ao processo de distribuição efetiva de renda nos países da região", ressaltou o Panorama de Indicadores Sociais, publicado em março deste ano pela instituição, em referência ao trabalho dos três pesquisadores.
Em uma entrevista por email com a Folha, Morgan disse que esses resultados serão em breve revistos e que as séries de diferentes indicadores da desigualdade de renda brasileira serão substituídos. Segundo ele, os novos números incluem no cálculo da renda do país transferências do setor público para educação e saúde, que, até então, não eram consideradas nas metodologias do centro de Piketty.
Com isso, explica Morgan, o retrato da desigualdade brasileira será de maior estabilidade e, considerando um dos recortes —o da evolução da fatia da renda apropriada pelos 50% mais pobres do país—, ela, inclusive, recuará.
"A análise de impostos e transferências é um novo aspecto do nosso trabalho, que mostra a importância de transferências de renda sociais (como saúde e educação) para reduzir a desigualdade no Brasil", diz o economista.
Foi justamente a percepção de que os trabalhos de anos recentes tanto de Morgan quanto de outros pesquisadores falhavam na mensuração da renda dos brasileiros mais pobres que levou os professores do Insper Ricardo Paes de Barros, Laura Muller Machado e Samir Cury e o diretor da Oppen Social Samuel Franco a construir uma nova metodologia.
O resultado do trabalho que eles desenvolveram nos últimos quatro anos será apresentado publicamente, pela primeira vez, nesta segunda-feira (25), em um webinar promovido pelo Insper.
Assim como Piketty e seus colegas, os quatro especialistas brasileiros usaram uma combinação entre dados da Receita Federal, das contas nacionais e de entrevistas domiciliares.
Mas, além de detalhes metodológicos diferentes na apuração e análise dessas informações, a grande novidade do novo trabalho é o uso da POF (Pesquisa de Orçamentos Familiares) e não da Pnad (Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios) como o ponto de partida e a espinha dorsal no cálculo de construção da distribuição de renda do país.
Piketty inovou ao usar os dados de declarações tributárias para recalcular séries históricas, primeiro de países desenvolvidos e depois de emergentes, argumentando que eles capturam melhor os rendimentos dos mais ricos.
Esse diagnóstico é, hoje, praticamente consensual. Mas faltava corrigir uma nova distorção possivelmente causada pelo uso dos dados tributários: a subestimação da renda dos pobres.
Além de contabilizar como renda transferências como acesso à educação pública —o que Morgan explicou que está fazendo agora em seu trabalho—, o estudo do Insper e da Oppen Social também captura fontes não monetárias de recursos, como doações de cesta básica ou até extração de lenha para geração de energia.
"A POF oferece um ponto de partida melhor, porque parte importante da renda dos mais pobres é não monetária", afirma Paes de Barros, também conhecido como PB e considerado um dos expoentes brasileiros na pesquisa sobre pobreza, gastos sociais e educação e um dos idealizadores do Bolsa Família.
Autor de vários estudos respeitados sobre distribuição de renda, o pesquisador Rodolfo Hoffmann, da USP (Universidade de São Paulo), será um dos debatedores no seminário que PB, Cury e Machado farão nesta segunda. Em setembro, ele já tinha assistido uma apresentação dos economistas sobre o trabalho.
"A metodologia é, sem dúvida, inovadora", afirma Hoffmann.
Ele também ressalta que o estudo é importante por "mostrar que correções com base nos dados do Imposto de Renda e Contas Nacionais não levam, necessariamente, a mudanças radicais no que se refere ao sentido da variação da desigualdade da distribuição da renda no Brasil".
Segundo Hoffmann, a subestimação da desigualdade em pesquisas feitas apenas com base na Pnad já era reconhecida por ele próprio e outros economistas há muitos anos.
"Mas levando em consideração outras informações (sobre consumo de diversos tipos de bens, por exemplo), me convenci de que houve queda da desigualdade no Brasil de 2001 a 2014".
Os achados de PB e seus coautores tendem a esquentar o debate público sobre o tema a um ano da eleição presidencial, em que a desigualdade certamente ocupará grande parte das discussões.
A crise causada nesta semana pela tentativa do governo de alterar as regras fiscais a fim de aumentar o benefício que será pago pelo Auxílio Brasil, programa que substituirá o Bolsa Família, já é um sinal disso.
Evidências recentes são de que, na esteira da crise econômica gerada pela pandemia e por ruídos políticos, a pobreza tem aumentado.
Para Cláudia Costin, diretora do Ceipe/FGV (Centro de Excelência e Inovação em Políticas Educacionais), a população antes das crises recentes podia perceber em seu cotidiano as melhoras na redução da desigualdade e no acesso à educação.
Ela, que também é colunista da Folha, ressalta, no entanto, que a desigualdade, que já vinha aumentando nos anos mais recentes, deve ficar ainda mais grave depois da pandemia. "A janela de saída, que o investimento em educação representa, vem ficando mais estreita."
"A educação como vetor para a redução da desigualdade não perdeu importância, apesar de tudo. Talvez essa perspectiva ruim se deva mais aos efeitos da pandemia e à falta de coordenação de uma política nacional para a educação", diz.
O impacto positivo da educação que os economistas medem em seus estudos é percebido por Rosely Mendes Couto, 55, na prática. Apesar de todas as dificuldades, ela se move pelo futuro do neto John Lorenzo, de cinco anos, que ela ajuda a criar.
"Meus filhos não quiseram continuar estudando depois do ensino médio. Acho que eles estariam em condição melhor hoje se tivessem continuado, que é o que desejo para meu neto", diz ela, que já trabalhou como enfermeira, foi dona de pizzaria e, hoje, atua em eventos.
O filho de Rosely tem 31 anos e é tatuador, já a filha, de 28, que é mãe de Lorenzo, está desempregada.
A crença na importância da educação faz com que Rosely cite o acesso à creche pública do neto como uma das melhorias que percebeu no país nas últimas duas décadas.
"Ele agora está na escolinha, mas nunca faltou vaga para ele na creche. Na época dos meus filhos pequenos, não foi assim", diz.