Dia da Consciência Negra
DIA DA CONSCIÊNCIA NEGRA: MUDANÇA É LENTA E TRABALHADORES NEGROS GANHAM 30% MENOS QUE BRANCOS
Mulheres e negros são mais da metade da população brasileira, mas seguem sub-representados particularmente nos núcleos de decisão das grandes companhias, onde estão os melhores salários
O Globo, 20/11/22
Dois profissionais com a mesma idade e perfil. Um negro e um branco. Um homem e uma mulher. Na disputa por uma vaga ou promoção, quem tem mais chances no Brasil? Não é preciso recorrer às estatísticas para responder a essa pergunta, mas o economista Gustavo Gonzaga, da PUC-Rio, foi aos números. Cruzou dados e concluiu que um trabalhador negro ganha cerca de 30% menos que um branco na mesma faixa etária, com igual qualificação e moradia na mesma região.
O estudo usa dados de 2019 e exclui a deterioração do mercado de trabalho na pandemia. Para uma mulher negra, a barreira é dupla: elas eram apenas 10,6% do quadro funcional das 500 maiores empresas do país em 2015, segundo pesquisa do Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC).
Mulheres e negros são mais da metade da população brasileira, mas seguem sub-representados no mercado de trabalho, particularmente nos núcleos de decisão das grandes companhias, onde estão os melhores salários. Nos últimos anos, essas duas maiorias minorizadas no Brasil vêm conquistando uma ascensão lenta. Em 2012, somente 4,1% dos pretos ocupavam postos de gerência, segundo o IBGE. Em 2021, o quadro não era muito diferente: 4,2%. A proporção de mulheres subiu de 9% para 13,6%, entre 2003 e 2015, de acordo com o IBGC.
Os números não mentem: ainda há um longo caminho rumo à igualdade de oportunidades no trabalho. As mulheres já são, em quase todas as faixas etárias, mais escolarizadas que os homens. As cotas ampliaram o acesso de pretos e pardos às universidades públicas, mas esses avanços ainda não se refletem nas empresas. O baixo crescimento da economia na última década, agravado pela pandemia, dificulta ainda mais a redução do fosso estrutural do Brasil. Por outro lado, pressionadas por ativistas, trabalhadores, investidores e consumidores, mais empresas assumem compromissos com a diversidade e descobrem seu valor nos negócios.
RENDA É TERMÔMETRO
A renda é o principal termômetro da distância entre brancos e negros no país. Em 2021, o rendimento médio por hora dos ocupados brancos (de R$ 19) era quase o dobro do de pretos (R$ 10,90) e pardos (R$ 11,30), de acordo com o IBGE. Apesar de somarem 56% da população, pretos e pardos ocupam 29,5% dos cargos gerenciais. O cenário era praticamente o mesmo há dez anos, quando brancos tinham 69,6% dos postos de liderança média. Pretos e pardos, 29,1%.
— É quase uma década perdida. As minorias continuaram a ter dificuldade de se inserir no mercado de trabalho — diz Gonzaga, para quem o passado escravocrata e o acesso desigual à educação formaram uma barreira estrutural difícil de ser rompida. — As cotas são bem-vindas, mas a questão é a qualidade da escola pública básica e fundamental, onde está a maior parte dos estudantes negros, que já têm pais com menos escolaridade.
Na radiografia feita pelo IBGC em 2015, apenas 12% das empresas disseram ter alguma política de promoção de igualdade de oportunidades entre etnias, tema ainda mais negligenciado que a equidade de gênero, para a qual 28% tinham alguma iniciativa.
CEO da Gestão Kairós, Liliane Rocha pertence ao grupo restrito de mulheres negras no topo. Elas comandam hoje só 2,6% das empresas no Brasil, pelas estimativas da consultoria que Liliane dirige e que ajuda grandes companhias a traçar estratégias para aumentar a diversidade em seus quadros. Única no mestrado, exceção na sala do MBA, ela também sempre foi uma das poucas mulheres negras nas organizações em que trabalhou. Para a consultora, o avanço é lento porque as empresas não têm metas, orçamento, gestão e equipes dedicadas ao que deveria ser uma prioridade:
— No melhor dos casos, (as empresas) acham que é um tema orgânico: “não preciso de ação afirmativa, nem fazer gestão porque esse tema caminha naturalmente”. Mas, no Brasil, sabemos que não.
Apesar do que falta, Liliane vê as empresas como o principal motor da remoção de barreiras sociais no país, com maior capacidade de acelerar resultados hoje que poder público e movimentos sociais.
— As empresas trazem velocidade e ritmo para as mudanças. Quando tivermos proporcionalidade e representatividade, e, portanto, acesso ao mercado, à renda e à tomada de decisão, a estrutura da sociedade muda — acredita.
FALTA ‘QUEM INDICA’
A pandemia afetou, em particular, o trabalho das mulheres. No terceiro trimestre de 2020, a fatia que participava do mercado de trabalho (ocupadas ou desempregadas) caiu a 47,3%, a menor taxa trimestral em dez anos. Com maior escolarização que os homens, ao participar menos do mercado de trabalho, elas são um potencial produtivo desperdiçado. A taxa de desemprego feminina bateu 18,5% no primeiro trimestre de 2021, a maior desde 2012. A dos homens ficou em 12,9%.
— A pandemia foi um choque para os menos qualificados e não sabemos onde vai dar a rearrumação do mercado de trabalho — diz a economista Sonia Rocha, especialista em pobreza, que vê com preocupação a precarização do trabalho em ocupações substitutas, como a venda de comida pronta.
Sonia ressalta que, apesar do aumento dos anos de estudo, a conquista dos melhores empregos envolve mais qualidade da educação. Passa também, diz ela, por melhorar a inserção hoje desvantajosa de minorias que não contam com o “quem indica” numa seleção. Luana Génot, diretora-executiva do Instituto Identidades do Brasil (ID_BR), concorda:
— A contratação das 500 maiores empresas ainda é muito balizada na pessoa que estudou com a outra, geralmente outra pessoa branca.
Para Luana, as empresas precisam mudar o olhar na hora de recrutar para não perderem talentos. Ela sugere que profissionais negros direcionem suas carreiras para companhias mais proativas em diversidade, e aponta as de tecnologia como mais atentas e transparentes nessa área.
Um dos maiores desafios da diversidade no ambiente corporativo é chegar ao andar de cima. A liderança média, em geral branca, ainda tem dificuldade de ver a conexão do assunto com resultados para o negócio. Especialista sênior da Organização Internacional do Trabalho (OIT) para diversidade, Stefan Tromel é cauteloso ao comparar o estágio atual do Brasil ao de outros países. Autor de um estudo sobre o tema, ele considera que empresas de todo o mundo carecem de indicadores de monitoramento nessa área:
— Pode-se mensurar diversidade em termos de composição de staff, mas a inclusão é mais desafiadora. É preciso avançar em indicadores de qualidade da diversidade e inclusão e medir o progresso.
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Ministério da Igualdade Racial é prioridade para lideranças negras em grupo de transição
População é a mais afetada por falta de políticas públicas, avaliam integrantes do grupo técnico de igualdade racial nomeados para a equipe de transição de Lula.
Por Nayara Fernandes, do G1, e Thaiza Pauluze, da Globonews
Da esquerda para a direita, Preta Ferreira; Thiago Thobias; Iêda Leal; Martvs Chagas; Nilma Lino Gomes; Yuri Silva; Givânia Maria Silva e Douglas Belchior — Foto: Reprodução
Em reuniões online diárias, o grupo de transição de igualdade racial do novo governo Lula (PT) tem a missão de indicar nomes de referências negras para compor todas as pastas da gestão petista. Além de fazer um raio-x da área, que teve seu orçamento reduzido a zero, os integrantes têm como prioridade colocar o combate ao racismo no centro das pautas, da economia às mudanças climáticas, e pleiteiam a criação de um ministério para tal.
“Essa é a nossa grande tarefa”, afirma Nilma Lino Gomes, convidada pela coordenação da equipe de transição do novo governo para liderar o grupo, que é formado por mais sete integrantes.
Nilma foi ministra da Secretaria de Políticas de Promoção da Igualdade Racial, em 2015, e do Ministério das Mulheres, da Igualdade Racial, da Juventude e dos Direitos Humanos, entre 2015 e 2016, durante o governo da ex-presidente Dilma Rousseff (PT). Também foi a primeira reitora negra de uma universidade pública federal, a Universidade da Integração Internacional da Lusofonia Afro-brasileira (UNILAB).
“Reconstruir o ministério significa o retorno e a reconstrução das políticas de igualdade racial que foram desmontadas pelo governo Bolsonaro.”
A equipe de transição é responsável por identificar riscos, fazer alertas, apontar ilegalidades e necessidades de apuração por parte dos órgãos de controle.
Na última quinta-feira (17), o vice-presidente eleito Geraldo Alckmin, coordenador do gabinete de transição, oficializou os oito nomes que integrarão o grupo técnico de igualdade racial.
Eles devem entregar até o dia 30 de novembro um diagnóstico preliminar, com análise do que está sendo feito hoje na área, os programas das gestões do PT que foram descontinuados, e uma lista com sugestões de atos normativos que devem ser revogados pelo presidente eleito, Luiz Inácio Lula da Silva.
Até 11 de dezembro, os GTs devem apresentar um relatório final, incluindo as medidas prioritárias para os primeiros 100 dias de governo. Esse documento será entregue ao ministro da área, que será escolhido por Lula.
Sem verba
O atual governo, de Jair Bolsonaro (PL), não alocou nenhum recurso para a promoção da igualdade racial na PLOA (Projeto de Lei Orçamentária Anual) 2023. Hoje, essa é uma política pública de responsabilidade do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos.
Voltar a investir na área é uma das mudanças que serão propostas pelos integrantes do GT. A criação de um ministério, segundo Yuri Silva, garante o monitoramento de políticas públicas voltadas para a igualdade racial em todas as pastas do governo.
“A população pobre das periferias, sobretudo as mulheres e homens negros, é o público mais afetado pela ausência de políticas públicas”, diz Yuri, que é coordenador nacional do Coletivo de Entidades Negras (CEN) e coordenador de Direitos Humanos do Instituto para Reforma das Relações entre Estado e Empresa (IREE).
O ativista foi indicado ao cargo pelo Operativo Nacional da Convergência Negra, fórum de unidade do movimento negro brasileiro que reúne 14 organizações históricas.
Para Yuri, trata-se de um “erro técnico” tratar como setorial uma pauta que diz respeito a 56% da população, especialmente após a pandemia, que “ajudou a descortinar a profundidade da desigualdade social no Brasil”.
Douglas Belchior, uma das principais lideranças negras dentro do PT, defende um acerto de contas dos desmontes na gestão Bolsonaro.
“O governo Bolsonaro destruiu todos os espaços institucionais, principalmente na área ambiental, de igualdade de gênero e racial, dos direitos humanos. Agora vamos ter que reconstruir isso e denunciar à sociedade o que for sendo descoberto, os vários crimes que foram cometidos”, diz ele, que concorreu a uma cadeira na Câmara dos Deputados este ano, mas não conseguiu se eleger.
Violência e racismo ambiental
Belchior é historiador, fundador da Uneafro e integrante da Coalizão Negra por Direitos. Para ele, o grande objetivo do novo governo deve ser o “fim da matança de pessoas negras pelo aparato armado do estado brasileiro”.
Preta Ferreira, líder do MSTC (Movimento Sem Teto do Centro) concorda que é prioritário discutir a violência policial contra pessoas negras.
“Eu fui uma das vítimas dessa criminalização. Fui presa de forma arbitrária e injusta por 108 dias”, relembra. Em 2019 foi acusada de extorsão e associação criminosa por supostamente coagir moradores a pagarem taxas nas ocupações da capital paulista.
“A gente não pode ver o Brasil ser o terceiro país com mais presos no mundo e achar que isso é normal. O meu enfrentamento é contra a necropolítica e o encarceramento em massa da população preta. Eu senti na minha pele o que é ser uma presa injustiçada no país que mata a cada 23 minutos um jovem negro”
Outras metas são a ampliação das oportunidades de estudo, acesso à cultura e trabalho para a juventude negra, além da titulação e garantia de investimentos nos territórios quilombolas.
Em carta entregue por Belchior na COP 27, no Egito, a Lula a Coalizão Negra Por Direitos cobra que o novo governo dê prioridade à discussão sobre o racismo ambiental -- termo que descreve o impacto dos eventos climáticos em populações vulneráveis devido às condições de moradia, alimentação, saúde e acesso à terra.
“Não haverá justiça climática sem justiça racial”, diz o texto da Coalização, que é a principal aliança nacional de movimentos negros, reunindo 340 organizações, desde 2019.
A co-fundadora da Coordenação Nacional dos Quilombos (CONAQ) Givânia Maria da Silva destaca a urgência no recenseamento da população quilombola. Esta é a primeira vez na história do Censo Demográfico que a comunidade poderá se identificar.
"As políticas para as comunidades [quilombolas] são novas – não porque somos novos – porque o Estado tem dificuldade de nos reconhecer como sujeitos."
Aliança por representatividade
“Todas as pastas terão negros, principalmente mulheres e nordestinas, com muita experiência. Não tem como refazer o Brasil sem a mão das pessoas pretas”, declara Preta Ferreira. Nas gestões anteriores, o governo Lula foi cobrado pelas lideranças do movimento negro por mais representatividade em cargos de gestão.
A expectativa é de que o novo governo reconheça a necessidade de um ministério voltado para a formação da igualdade racial, afirma Givânia Maria da Silva, da CONAQ. "É para isso que nós estamos trabalhando."
Yuri Silva atribui ao avanço mundial da extrema direita o reconhecimento da pauta racial pela agenda de oposição. "Os democratas do mundo precisaram de respostas", diz.
O que o grupo pretende propor é um processo de reparação histórica, diz Iêda Leal, pedagoga e Coordenadora Nacional do MNU (Movimento Negro Unificado). “Acabar com a miséria, garantir emprego, renda e dignidade humana é lutar contra o racismo”, diz.
Além de Nilma Lino Gomes, Douglas Belchior, Preta Ferreira, Yuri Silva e Gilvânia Maria Silva, também fazem parte do GT de igualdade racial outros dois nomes: Martvs das Chagas e Thiago Thobias.
Martvs é sociólogo e secretário da Prefeitura de Juiz de Fora. Ele foi ministro-chefe interino da Secretaria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial durante o governo Lula. Já Thiago Thobias é advogado da Coalizão Negra por Direitos.