Diálogo virótico

Diálogo virótico

Personagem de desenho animado de coronavírus | Foto Grátis

I

E agora?

Agora o quê, com­pa­nheiro?

Es­tamos fritos. Esse povo con­se­guiu deter o nosso avanço em pouco tempo.

Ora, Co­rona, você sabe como os chi­neses são dis­ci­pli­nados. Fun­ci­onam como um exér­cito. Quem li­bertou um país deste ta­manho do co­lo­ni­a­lismo eu­ro­nipô­nico, ha­veria de nos en­frentar com agi­li­dade. E ainda mais agora, que contam com avan­çadas tec­no­lo­gias que per­mi­tiram de­tectar com ra­pidez cada pessoa que con­se­guimos in­fectar.

Fe­liz­mente, caro Covid, lo­gramos ul­tra­passar a mu­ralha da China. Bem que você teve a bri­lhante ideia de nos in­tro­duzir nas equipes de res­gate de es­tran­geiros que pou­saram em Wuhan para levar de volta ame­ri­canos, fran­ceses e in­gleses.

Mal sa­biam eles que, ao pe­ne­trarmos na cé­lula hu­mana, em menos de vinte e quatro horas nos re­pro­du­zimos em cem mil có­pias! Os hu­manos são a nossa sal­vação, Co­rona. Fora deles nosso prazo de va­li­dade é muito curto.

Sim, Covid. Se­gundo nosso Ma­nual de So­bre­vi­vência, po­demos ter bre­vís­sima vida útil em su­per­fí­cies plás­ticas e me­tá­licas. Mas fora da cé­lula não temos sal­vação.

Nossa saída, agora, é emi­grar. Vamos acertar o se­guinte: eu viajo pelo mundo e você fica aqui mo­ni­to­rando, com­bi­nado?

Com­bi­nado, Co­rona.

II

Olá, Covid, como vão as coisas aí na Itália?

Ma­ra­vi­lhosas! Giu­seppe Sala, pre­feito de Milão, de­clarou que não re­pre­sen­tamos ne­nhuma ameaça. Em poucos dias, nossos re­pli­cantes já fi­zeram um enorme es­trago na Lom­bardia. São cen­tenas de mortos a cada vinte e quatro horas e mi­lhares de in­fec­tados.

Pa­ra­béns, Covid! E as ou­tras re­giões do país?

To­maram pre­cau­ções. A partir da ex­pe­ri­ência dos chi­neses, ado­taram me­didas pre­ven­tivas ri­go­rosas, o que di­fi­culta a nossa dis­se­mi­nação. Todo mundo fica em casa, as ruas estão va­zias e o co­mércio fe­chado. Todos usam más­caras e lavam as mãos di­versas vezes ao dia.

Não é uma boa no­tícia, con­fesso. Em­bora se­jamos re­sis­tentes aos mais po­tentes an­ti­bió­ticos, des­co­briram o nosso cal­ca­nhar de Aquiles – o sabão. Im­pos­sível su­portar uma bolha de sabão. Es­toura a nossa pele e nos leva ime­di­a­ta­mente a óbito.

As más­caras, Co­rona, retêm as go­tí­culas que nos trans­portam. Fe­liz­mente en­contro aqui gente que não faz o uso cor­reto delas e a todo o mo­mento leva as mãos ao rosto.

Esses são os nossos ali­ados, Covid, con­si­de­rando que temos apenas três portas de en­trada no corpo hu­mano – olhos, na­rinas e boca. Quanto mais co­lo­carem as mãos no rosto, mais nos li­beram o trân­sito.

Avan­çamos também no Reino Unido, cujo pri­meiro-mi­nistro andou nos des­de­nhando. Então, de­cidi in­fectá-lo. Foi parar num hos­pital pú­blico, onde es­teve aos cui­dados de uma en­fer­meira fi­li­pina e um en­fer­meiro por­tu­guês. Logo ele, o homem do Brexit, que de­fendia a pri­va­ti­zação do sis­tema de saúde e a ex­pulsão de imi­grantes e re­fu­gi­ados do país!

Bem feito, amigo! Assim ele abaixa aquele to­pete des­pen­teado. Quais seus planos agora?

Vi­ajar a dois países cujos pre­si­dentes são nossos ali­ados – Es­tados Unidos e Brasil.

Ex­ce­lente ideia, com­pa­nheiro! Vá em frente!

III

Aqui nos Es­tados Unidos, caro Co­rona, nosso avanço colhe o maior su­cesso! Co­mecei por Nova York, a fim de dar uma ras­teira na pe­tu­lância da ci­dade. Ela se julga o um­bigo do mundo.

Então en­con­trou con­di­ções fa­vo­rá­veis?

Muito. O pre­si­dente Trump me deu o green card no mesmo dia em que che­guei. Fa­vo­receu-nos muito ao mi­ni­mizar o nosso po­ten­cial de le­ta­li­dade. Pelo jeito, aqui te­remos mais êxito. Mi­lhares e mi­lhares de mortos! Di­ante do de­ses­pero da po­pu­lação, Trump su­geriu que os in­fec­tados se cu­rassem com in­je­ções de de­sin­fe­tante. No pri­meiro dia, após o anúncio, apenas em Nova York mor­reram trinta pes­soas que deram ou­vidos à Casa Branca.

E o Brasil?

Também o pre­si­dente pre­parou um ter­reno muito pro­pício à nossa ex­pansão. De­clarou que o nosso efeito na saúde hu­mana não passa de uma “gri­pe­zinha”, e todo fim de se­mana ele dá o exemplo de que não se deve guardar qua­ren­tena. Assim, cir­cula pelas ruas sem más­cara, põe as mãos no rosto, cum­pri­menta e abraça as pes­soas. Um grande aliado!

Tive no­tí­cias aqui, Covid, de que o SARS e o MERS, ge­ra­ções vi­ró­ticas que nos an­te­ce­deram, estão com muita in­veja de nosso su­cesso. Não con­se­guiram se dis­se­minar tanto como nós e foram logo con­tidos por efi­cazes va­cinas.

Vai ser di­fícil os hu­manos nos de­terem, Co­rona. Os la­bo­ra­tó­rios atuam na ló­gica ca­pi­ta­lista, de acir­rada con­cor­rência. Os da Ale­manha não com­par­ti­lham suas pes­quisas com os dos Es­tados Unidos e nem os deste país com os da França. É a nossa sorte. Hou­vesse co­o­pe­ração entre eles, uma va­cina já teria sido criada para nos ex­ter­minar.

Que belo es­trago cau­samos, amigo! O sis­tema ca­pi­ta­lista ficou de jo­e­lhos. Agora as Bolsas de Va­lores de­ve­riam ser cha­madas de Bolsas de Des­va­lo­ri­zação, tão pro­funda foi a queda do valor das ações. Com a re­dução dos trans­portes ter­res­tres, aé­reos e ma­rí­timos em todo o pla­neta, o preço do barril de pe­tróleo des­pencou e as em­presas pe­tro­leiras já não dis­põem de tan­ques para es­tocar com­bus­tível. O de­sem­prego au­mentou em todo o mundo. Nos Es­tados Unidos subiu, em duas se­manas, de 16 mi­lhões de de­so­cu­pados para mais de 35 mi­lhões. O rombo na eco­nomia global será maior do que o cau­sado pela crise de 1929, a grande de­pressão.

Quem manda essa gente não in­vestir em sis­tema pú­blico de saúde! Trans­for­maram a me­di­cina em mer­ca­doria e has­te­aram, como pa­na­ceia para todos os males, a ban­deira da pri­va­ti­zação. Re­sul­tado: falta o bá­sico nos hos­pi­tais, como pes­soal qua­li­fi­cado, res­pi­ra­dores, equi­pa­mentos de pro­teção in­di­vi­dual, e até ál­cool em gel, essa ge­la­tina que nos faz es­cor­regar para o cor­redor da morte.

Não sou in­gênuo, Covid. Sei que um dia se­remos con­tidos por uma va­cina. O que me con­sola é a cer­teza de que te­remos des­cen­dentes, assim como somos o nono galho de nossa ár­vore ge­ne­a­ló­gica viral.

Por que diz isso com se­gu­rança, Co­rona?

Porque os hu­manos con­ti­nu­arão a criar con­di­ções para novos co­ro­na­vírus en­quanto de­vas­tarem o pla­neta, al­te­rarem seu equi­lí­brio am­bi­ental e au­men­tarem o aque­ci­mento global. Apesar da ras­teira que le­varam agora com a nossa ofen­siva global, os hu­manos vol­tarão a ser in­di­fe­rentes à de­si­gual­dade so­cial, e bi­lhões deles não terão como so­bre­viver senão em lo­cais des­pro­vidos de sa­ne­a­mento bá­sico e, por­tanto, pro­pí­cios ao sur­gi­mento de nossos des­cen­dentes.

⃰ Conto in­se­rido na co­le­tânea “20 contos sobre a pan­demia de 2020”, or­ga­ni­zado por Ro­gério Faria Ta­vares, Belo Ho­ri­zonte, Au­tên­tica, 2020.

 

Frei Betto

As­sessor de mo­vi­mentos so­ciais. Autor de 53 li­vros, edi­tados no Brasil e no ex­te­rior, ga­nhou por duas vezes o prêmio Ja­buti (1982, com "Ba­tismo de Sangue", e 2005, com "Tí­picos Tipos")

 

https://www.correiocidadania.com.br/2-uncategorised/14477-dialogo-virotico 

 




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