Dificuldade da volta às aulas
Escassez de vacinas e falta de infraestrutura dificultam volta às aulas na América Latina
A região que registra mais dias sem aulas presenciais no mundo retorna pouco a pouco à normalidade, mas com grandes diferenças entre países
EL PAÍS 31 AGO 2021
Escola sem água; salas de aula mal ventiladas ou muito pequenas para garantir a distância social exigida pela pandemia; professores esgotados e mal pagos; falta de vacinas e sistemas de saúde deficientes; grandes extensões selvagens ou montanhosas sem acesso à internet. A lista de desafios que a volta às aulas na América Latina enfrenta é enorme. Em seu relatório regional de abril, o Unicef (fundo da ONU para a infância) dizia que até 31 de março apenas 8 países tinham suas escolas totalmente abertas (Costa Rica, Nicarágua e seis ilhas do Caribe), enquanto outros 10 as mantinham fechadas (entre eles México, Venezuela e Peru) e 18 as tinham parcialmente abertas (Argentina, Chile, Colômbia, Bolívia, Paraguai e Equador, entre outros).
“Três de cada cinco meninos e meninas que perderam um ano escolar no mundo durante a pandemia vivem na América Latina e no Caribe”, alertou o Unicef. Cinco meses depois, a região tenta reverter essa realidade, embora com grandes diferenças entre países.
Demoras na região andina
A Venezuela é o país que mantém há mais tempo as escolas fechadas, em uma região em que também se pode incluir a Colômbia, o Equador e o Peru. O Governo de Nicolás Maduro fechou as salas de aula em 13 de março de 2020 e, a pouco mais de um mês do início de um novo ano letivo, há sete milhões de alunos no limbo. O presidente ordenou a volta às aulas presenciais a partir de outubro, uma promessa que se choca com uma dura realidade sanitária: apenas 4% da população recebeu duas dose de vacina contra a covid-19. Além disso, faltam professores.
A líder sindical Raquel Figueroa adverte que 100.000 docentes emigraram do país ou deixaram a profissão nos últimos cinco anos, expulsos pela crise política e econômica. “Se há um déficit de professores de 40%, como vão abrir mais turnos para reduzir o número de alunos por curso, por exemplo?”, pergunta Figueroa. Na Venezuela, um professor ganha o equivalente a 50 reais.
O Governo da Colômbia, por sua vez, anunciou neste mês o retorno às aulas presenciais no sistema público, depois de um ano e meio de suspensão. A decisão não agradou aos sindicatos, que convocaram protestos. Hoje, apesar da determinação governamental, mais da metade das escolas públicas continuam fechadas, segundo cálculos do Ministério da Educação. Além disso, o sistema tem um grave déficit de infraestrutura, principalmente nas áreas rurais. A realidade é outra em Bogotá, onde vem avançando desde janeiro uma reabertura gradual das escolas: mais de 99% das escolas públicas da capital já retomaram as aulas presenciais. Problemas semelhantes de infraestrutura afetam o Peru.
Segundo dados oficiais, só na região metropolitana de Lima há mais de 14.600 escolas que não têm condições de garantir as medidas de proteção contra a covid-19 ou ficam em bairros com alta transmissão do vírus. O Peru destinou neste ano o equivalente a 640 milhões de reais para que as escolas públicas instalem lavatórios portáteis onde faltam banheiros, “mas muitas não têm acesso direto à água”, diz José Carlos Vera, diretor de Gestão Descentralizada do Ministério da Educação. Para compensar a falta de aulas, assinala Vera, o ministério criou o
o programa Aprendo na Comunidade, com 185 locais para atividades recreativas, esportivas e de socialização. No entanto, a volta total às salas de aula não ocorrerá antes do final do ano, quando o Governo espera ter vacinado os 675.022 professores do sistema público. Até agora, apenas 50% dos professores receberam a vacina.
Grupo de crianças assiste a uma aula na casa da professora Milagros Agreda em Caracas, Venezuela, neste mês.
Desde junho, o vizinho Equador também avança para a volta às aulas presenciais, por enquanto de forma voluntária. Na abertura do ano letivo, o Governo do conservador Guillermo Lasso anunciou que as escolas primárias e secundárias poderiam iniciar voluntariamente o retorno às salas de aula se cumprissem os protocolos sanitários. O projeto começou com 1.301 centros públicos e privados de ensino fundamental e médio. Mais de mil deles eram estabelecimentos públicos e em áreas rurais, onde o acesso à internet é mais limitado. “Os filhos cujos pais decidirem não enviá-los à escola continuarão seus estudos em casa”, anunciou na ocasião o Ministério da Educação. Quase três meses depois, há 2.691 escolas primárias e secundárias autorizadas a oferecer aulas presenciais. Apenas 270.000 alunos, de um total de 4,4 milhões, têm ensino totalmente presencial.
No Brasil, duas velocidades
O Brasil ficou 13 meses com as salas de aulas fechadas. Desde o início de agosto, finalmente, as escolas públicas começaram a ser reabertas em quase todos os Estados; os que faltam esperam fazer isso em setembro. Não existe, no entanto, uma regra única para a volta, em um país enorme onde os Estados têm muita autonomia. Algumas capitais, como Manaus, retomaram totalmente o ensino presencial, enquanto outras, como Fortaleza, têm um modelo híbrido, com os alunos se revezando e fazendo parte das atividades a distância. De qualquer forma, as aulas presenciais ainda não são obrigatórias para os estudantes, e vários governadores optaram por estabelecer capacidades máximas para garantir a distância entre os alunos. Na cidade mais populosa do país, São Paulo, 64% dos estudantes já frequentam aulas presenciais, enquanto 36% ainda estão em atividades online.
Desde o início da pandemia, os estudantes mais pobres são os que têm tido menos acesso à educação a distância no Brasil. Muitos até pararam de estudar por não ter celular nem acesso à internet. No ano passado, 172.000 crianças entre 6 e 17 anos abandonaram a escola no país, segundo uma estimativa do Banco Mundial. Já as escolas privadas abriram as portas no ano passado em grande parte do país, depois de uma intensa pressão das empresas, que afirmaram estar mais bem preparadas para seguir as medidas sanitárias. Em São Paulo, por exemplo, elas estão autorizadas a funcionar com 100% de sua capacidade.
México retorna às salas de aula
O México é um dos países do mundo que manteve as salas de aula fechadas por mais tempo, 17 meses, e a intenção do Governo é reabri-las já nesta segunda-feira de forma universal. Para isso estão convocados todos os alunos e professores de todos os níveis de ensino. O retorno às aulas presenciais tem enfrentado grandes resistência por parte dos docentes, alguns insatisfeitos pela falta de pagamento de seu salário, outros porque não acreditam que as escolas tenham condições sanitárias suficientes para voltar à normalidade. Muitas escolas no México não têm nem mesmo água encanada e foram saqueadas durante o período de fechamento.
As famílias também não estão convencidas quanto à presença das crianças nas salas de aula. Temem que seus filhos se contagiem nas escolas, embora milhões de crianças já estejam nas ruas, nas lojas, em qualquer lugar, porque toda a economia está aberta. Uma pesquisa feita por uma associação de nome eloquente, AbreMiEscuela (“abra minha escola”), certificou 97 contágios em 23.108 escolas que estiveram mais de um mês abertas nos últimos tempos em diferentes Estados. “A vida em primeiro lugar”, diz a central sindical CNTE, cujos professores rejeitaram a ideia de voltar às aulas presenciais e preferem continuar dando aulas remotamente. Os docentes, no entanto, já foram vacinados, embora tenha sido com a chinesa CanSino, que despertou algumas dúvidas quanto à sua proteção. Alguns professores optaram por receber mais uma dose de um laboratório diferente.
Cone Sul avança no ritmo das vacinas
Argentina, Uruguai e Chile avançam, com restrições, para a normalização do ensino. O primeiro retomará o “ensino presencial pleno” na quarta-feira, depois de um ano e meio de medidas excepcionais. O ano letivo de 2020 foi desenvolvido, exceto pelas duas semanas iniciais, de forma virtual, com as salas de aula fechadas. Em 2021, os professores foram incluídos entre os grupos prioritários para receber a vacina e cada província organizou o cronograma de retorno ao ensino presencial. Primeiro, com as salas divididas em “bolhas” dispersas pelo horário escolar. A partir da próxima
semana, com o mesmo número de alunos de antes da pandemia, mas mantendo as medidas de prevenção tradicionais.
O Uruguai, por sua vez, foi o país da América do Sul que manteve as escolas fechadas por menos dias. Em junho de 2020, quando grande parte do continente lutava por conter a expansão do coronavírus e evitar o colapso de seus sistemas hospitalares, o número de casos no país era muito baixo e o Executivo liderado por Luis Lacalle Pou anunciou a volta das aulas presenciais. Foi um caso único e a decisão foi mantida pelo resto do ano, mas o panorama mudou nos primeiros meses de 2021, quando o Uruguai atingiu seu pico de infecções. No final de março, o Governo decidiu fechar todas as escolas, e o retorno foi escalonado. A volta foi acompanhada pelo anúncio de que os jovens de 12 a 18 anos seriam incluídos na campanha de vacinação.
Outro país com altas taxas de vacinação é o Chile. O país reabriu 74% das escolas, segundo dados do Ministério da Educação. O número coincide com a melhor situação sanitária de toda a pandemia e com a vacinação em massa. Enquanto a taxa diária de casos novos de covid-19 está em 1,1%, 84,4% da população-alvo (15.200.000 pessoas) completou seu esquema de imunização contra a covid-19. De qualquer forma, a volta às aulas presenciais tem dependido em grande medida do sistema de gestão das escolas, com mais percentagem entre as particulares e menos entre as públicas e mistas.
No centro de Santiago, onde ficam muitas das escolas particulares mais emblemáticas, nenhuma das 44 municipais foi reaberta. No sul da capital, Patricia Herrera, por exemplo, é responsável pelos netos de 7 e 8 anos. “Eles não pisam na escola desde os primeiros dias de março de 2020, no início da pandemia”, diz ela por telefone da comuna de La Cisterna. Os netos estão matriculados em uma escola de La Pintana, uma área popular da cidade, que não abre as portas há 16 meses. “Em dezembro terminam as aulas, acho que [as crianças] não vão voltar até 2022”, lamenta.
Com textos de Carmen Morán Breña (Cidade do México); Mar Centenera (Buenos Aires); Beatriz Jucá (São Paulo); Santiago Torrado (Bogotá); Florantonia Singer (Caracas); Jacqueline Fowks (Lima); Sara España (Quito); Federico Rivas Molina (Buenos Aires).