Divergir não é odiar

Divergir não é odiar

Divergir não é odiar

 

“A convocação às ruas pela extrema direita ontem, disposta a defender até o Centrão para segurar Bolsonaro no poder, me fez lembrar um argumento usado por um primo no nosso rompimento antes das eleições de 2018.

Esse familiar foi quase um irmão, de modo que só seria possível nossa separação por um argumento que afastasse nossas concepções de vida ao extremo. Esse extremo chegou quando ele argumentou nas redes sociais que contra o PT tudo valia, até o fascismo, se preciso fosse.

Fiquei por dias tentando entender o ódio às administrações petistas, completamente diferente das divergências que eu tinha e mantenho a Lula e ao petismo. Descobria ali que as minhas divergências, pela esquerda criticando a política de conciliação e a tibieza no enfrentamento da luta de classes e seus desdobramentos, assim como a condenação do petismo deixar-se corromper e não ser diferente dos partidos de direita que os antecedera, era de natureza completamente diferente no espectro político e com sinais trocados.

Divergir não é odiar. O ódio que dali se desprendia, e contaminou como um rastilho de pólvora os eleitores que tornaram possível a eleição de Bolsonaro, tinha raízes muito mais profundas na nossa história, no nosso inconsciente coletivo enquanto nação. Meu primo fora apenas contaminado por essa avalanche inconsciente que dominou a maioria de nossos votantes. Mas também foram contaminados os que se abstiveram naquela eleição.

Claro que houve as “fake News”, as redes sociais tentando mudar o rumo das eleições e a torcida da mídia que sempre defende os interesse financeiros dessa elite perversa. Mas elas só foram possíveis pelo terreno fértil encontrado nesse inconsciente coletivo que defendia com todas as forças a permanente história que sustenta a coluna vertebral dessa nação que se enganava como se fosse cordial e hospitaleira.

A nação se assenta sobre o escravismo. Jessé de Souza chamou muita atenção para isso nos seus livros. E esse escravismo, que nos fundou como nação, não foi superado e resolvido. O jeitinho brasileiro é dado quando nos passamos para o lado do opressor como se amigo dele fossemos. É preciso subornar o guarda da esquina para não sermos multados. Não é vergonhoso comprar a prova do concurso. O que não se suporta é pagar a multa e conviver com cotistas porque somos desiguais e a lei é só para os inferiores. Todos almejam a proteção do senhor de escravo e odeiam dormir na senzala. Se obrigados à pobreza pela vida, odiamos o companheiro de infortúnio e almejamos a diferença mesmo quando ela não é possível.

Construímos elevadores de serviço com a desculpa da praia, mas na verdade o desejamos para que a empregada não transitasse no espaço do patrão (a não ser que ele esteja de sunga). As leis que tentaram destruir essa discriminação nunca pegaram ou foram cumpridas. O porteiro naturalmente sai de suas funções para levar as compras ou lavar os carros dos moradores. As ciclovias são lindas em Amsterdam, mas não para aqui para quem não tem carro. O trabalho braçal não é valorizado e ainda é obrigação que se ordenava aos escravos. O “sabe com quem está falando” empurra o interlocutor de volta à escravidão.

Somos uma nação que não tolera a igualdade porque isso tiraria a submissão do escravo da nossa construção. E o dia a dia mostra isso até entre os mais desiguais. O mulato que faz piada racista como se branco fosse. A mulher que acha natural ganhar menos que o homem. A família que enaltece o machismo. O homossexual homofóbico. O religioso que deprecia as religiões de matriz africanas. Porque no inconsciente da nação somos brancos, misóginos, machistas, heterossexuais e cristãos. E deveríamos ter escravos para afirmar essa aspiração absurda. Foi aqui que escravos alforriados compravam escravos.

Esse eixo, absurdamente sustentado, é ameaçado por políticas públicas que tendam a minorar por pouco que seja a situação dos mais pobres. As reclamações que se ouvem quando o salário-mínimo subiu mais que a inflação são ensurdecedoras na boca de uma classe média remediada que não pode deixar de ter empregada. No protesto do dono de uma venda que se acha empresário. No dono do pequeno restaurante que não paga os 10% do garçom. Os cotistas são descriminados por colegas que se sentem mais merecedores do nível universitário como um direito natural. A recusa de assinar a carteira da doméstica como obrigava a lei foi uma resistência quase geral.

A mudança das linhas de ônibus para que a favela não frequente a praia dos bacanas já foi uma reação às políticas afirmativas petistas. Assim como o ataque as ciclovias do Haddad e o aumento das velocidades nas marginais em São Paulo.

Enfim, o bolsonarismo é o resultado dessa resistência para que nada se mude nessa nação aferrolhada ao escravismo que não superamos. Assim como não superamos a ditadura de 64 e o medo de um comunismo que nunca existiu.

Por tudo isso é compreensível que ainda um quarto da população defenda Bolsonaro. Não foi Bolsonaro quem criou seus súditos, mas uma aspiração escravocrata que ascendeu um completo idiota em mito. Não uma liderança, mas uma mitologia representativa da nossa gênese escravocrata. O simbolismo de um escravo que ninguém quer ser. Nem o negro, nem o pobre, que buscam identidade no opressor.

Voltando a história do rompimento com meu primo, essa ruptura já se dava antes de que tomássemos consciência de que éramos diferentes. Somos descendentes de uma baixa classe média nordestina que há gerações lutava para sair da pobreza e se afirmar como se estivesse ao lado da elite dominante. Enquanto eu achava que a minha formação universitária era fruto do acaso de oportunidades que se apresentaram e podia ter acontecido ou não; ele afirmava que a dele era fruto do mérito de sua luta por “subir na vida”. Enquanto eu lutava para estar junto com os iguais a mim que não tiveram a sorte de estudar; ele tinha a certeza de que só o seu empenho o diferenciava dos iguais. Se eu sempre tentei sair da minha formação para entender a história e a política; ele tinha pavor de saber algo que ameaçasse suas concepções arraigadas. É que a construção do inconsciente coletivo, produto da matriz escravocrata de nossa formação enquanto nação, é muito resistente.

Só agora percebo que o “tudo, até o fascismo” apenas representava uma resistência inconsciente de ver desabar as crenças simbólicas de que precisamos do escravo para sermos o opressor vitorioso. E é a meritocracia que nos transforma no vitorioso diferente dos iguais que éramos. Esse desejo inconsciente precisa de enorme trabalho político para sua superação.”

EDMAR OLIVEIRA

Psiquiatra, blogueiro, aprendiz de escritor, leitor contumaz, comunista utópico, socialista desejante.

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