Do terraplanismo ao cloroquinismo
Do terraplanismo ao cloroquinismo
Imaginários da catástrofe
Tudo se encadeia. Durante muito tempo o positivismo garantiu que verdade era verdade e não se discutia. Como se sabia que era verdade? Porque os donos da verdade assim o diziam. Como essas verdades nem sempre eram convincentes, embora cheias de convicção, sobreveio uma onda de relativismo. Aos poucos, não havia mais qualquer verdade e toda verdade dependia do ponto de vista. Havia uma verdade para cada habitante do planeta. E outras tantas nos mundos paralelos descritos como verdadeiros. Reapareceram os terraplanistas. Eles foram contestados duramente:
– É o nosso ponto de vista – disseram.
Apareceram os cloroquinistas. Foram refutados por especialistas. Alegaram que também eram especialistas. Ficou especialista contra “especialista”. Os anticloroquinistas declararam-se maioria e amparados pelas mais importantes entidades da área. Os outros responderam que essas entidades haviam errado no passado e podiam estar erradas novamente. Uns desqualificavam os outros. A população pedia evidências. Não as haveria claramente. Então os antigos relativistas tiveram de combater em nome da verdade científica baseada em evidências externas objetivas e não dependentes da percepção do observador. Passou-se a relativizar o relativismo. A Terra não é plana. Isso não depende do ponto de vista. A cloroquina não cura da covid. Verdades existem. Elas precisam apenas ser provadas no tribunal da razão ou da demonstração. Se digo que apertando o botão haverá luz e isso acontece, salvo defeito no mecanismo, há verdade.
As verdades, porém, seriam simplórias. Nos casos complexos não seria possível encontrá-las. O relativismo ingênuo, tão bom para o ego de cada um, criou espaço para o charlatanismo. A primeira ferida narcísica foi saber que a Terra não é o centro do universo; a segunda, que o homem se insere numa cadeia evolutiva como qualquer outra espécie; a terceira, que existe um inconsciente mais poderoso que nossa razão; a quarta talvez seja saber que nem tudo depende do nosso ponto de vista. Dotados de aparelho perceptivo equivalente e formatados com mesmos parâmetros pela educação, será que percebemos o mundo cada um do seu jeito ou conforme um pacote compartilhado com os outros? É tão agradável pensar que ninguém vê o mundo como eu, que sou único, irredutível, singular, subjetivo ao extremo.
Tenho falado bastante disso. Aprecio os questionamentos. Sempre quero saber, como Agripa, o que prova que uma prova é boa prova. Mesmo assim não acho que o mundo externo seja uma projeção do meu olhar. Mais de dois mil anos de filosofia ainda não resolveram essas questões. Os mesmos que acreditavam no superfaturamento da objetividade apostam na força das estruturas, num determinismo estrutural pelo qual nos tornamos marionetes do que nos foi incutido. Como então alguém percebe e se liberta? Há mistérios ainda não decifrados. Se sou o que a educação fez de mim, como me revolto contra essa educação e faço outra coisa de mim? Se sou o produto da ideologia que me formou, como me torno inimigo dessa ideologia? Resposta possível: porque há o outro com o qual me comparo. E porque vivo.