Educação como bem público

Educação como bem público

É hora de falar da educação como bem público

por Fernando Cássio e Silvio Carneiro

20 de Maio de 2020

Se este não é o momento de levantar bandeiras de equidade e qualidade na educação, então quando seria?

Na rotina escolar da pandemia não existe aula presencial. Medida excepcional, a suspensão das aulas foi necessária para proteger a saúde e a vida de profissionais da educação, estudantes e suas famílias, mas tem gerado intensas polêmicas sobre as decisões tomadas pelas redes de ensino para administrar essa suspensão e, sobretudo, para lidar com a retomada das atividades presenciais.

Não há quem duvide que as severas desigualdades educacionais existentes no país estão sendo expostas pelo isolamento forçado. As condições de moradia, a falta de acesso à internet e o próprio déficit de aprendizagem acumulado no ensino presencial – que, por sua vez, também depende das condições socioeconômicas dos estudantes – afetam a rotina de estudos de crianças e adolescentes durante o isolamento.

Entre profissionais da educação, há um relativo consenso de que é fundamental manter o contato entre educadores e estudantes nesses tempos, uma outra forma de dizer que a função socializadora da escola é importante, em particular quando as pessoas são obrigadas a ficar longe umas das outras.

Apesar disso, a incerteza sobre os dias futuros também é o reino do dissenso sobre o que será feito do calendário escolar e do ano letivo de 2020, especialmente nas redes públicas de ensino. Utilizar ferramentas tecnológicas para preservar os vínculos intelectuais e emocionais entre estudantes, educadores e escolas é obviamente diferente de achar que um punhado de atividades a distância, realizadas em condições adversas, serão suficientes para suprir aquilo que se espera da educação presencial formal.

Muitas redes de ensino suspenderam calendários escolares, enquanto outras tantas introduziram políticas emergenciais para a realização de atividades remotas, que depois – projetam as secretarias de educação – possam ser validadas como atividades letivas oficiais e mitigar os problemas orçamentários e burocráticos gerados por um longo período de reposição de aulas. O Conselho Nacional de Educação (CNE) avalizou a operação, embora reconheça que a já combalida qualidade do ensino público no Brasil sairá dessa crise ainda pior.

Cinismo e descaso

Em vez de coordenar ações com as redes de ensino do país para garantir o direito à educação aos estudantes, o Ministério da Educação (MEC) do governo Bolsonaro desempenha o seu papel de sempre: apostar no caos. A ansiedade e o medo gerados pela pandemia são inclusive desejáveis para o projeto de poder bolsonarista, que tem o atual ministro da Educação como um de seus maiores entusiastas. É por isso que, a despeito da situação incerta e precária de milhões de estudantes no país, o MEC insiste em manter o calendário do Enem, reverberando o “e daí?” de Jair Bolsonaro em uma propaganda que dissemina a ideia de que cada um precisa se virar com aquilo que tem.

De outra parte, em posição aparentemente mais realista, estão as redes de ensino e conselhos de educação de estados e municípios, além do próprio CNE, engajados em “fazer alguma coisa” diante da crise. Em um webinário promovido pela coalizão empresarial Todos Pela Educação e pelo Banco Mundial (23 abr. 2020), Maria Helena Guimarães de Castro, conselheira do CNE e secretária executiva do MEC durante a controversa reforma do ensino médio do governo Temer, responde à justa preocupação com o aumento das desigualdades educacionais no Brasil assim:

“Não adianta dizer que ‘quero garantir a qualidade e a equidade’. Eu também quero qualidade e equidade para todos. Mas isso nós até hoje não conseguimos! Vamos conseguir agora num momento de pandemia? É brincadeira isso. É não entender o mundo real. Não entender as dificuldades, os limites de uma situação absolutamente extrema (…).”

Se este não é o momento de levantar bandeiras de equidade e qualidade na educação, então quando seria? Rossieli Soares da Silva, ex-ministro da Educação e atual secretário da Educação do estado de São Paulo, vem reforçando que o mais importante agora é fazer alguma coisa. Ele garante que nenhum estudante da maior rede de ensino do país vai ficar para trás. Se isso for mesmo verdade, não há hora melhor do que esta para exigirmos que o Estado cumpra aquilo que lhe cabe com relação à educação.

Embora a indiferença do MEC e a “pró-atividade” de conselhos e secretarias de educação pareçam respostas distintas à pandemia, é preciso ter cautela com o discurso gestor que interdita o debate sobre acesso e qualidade na educação, seja pela crença de que um conjunto de medidas de gabinete permitirá mitigar problemas educacionais históricos agravados pela pandemia, seja pelo cinismo dos que sempre evitaram debater francamente as origens das desigualdades educacionais no Brasil. Mapear desigualdades, sejamos francos, é coisa que até bilionário faz. Outra, muito diferente, é combater as desigualdades pela raiz.

O descaso genocida do governo federal e o cinismo bem-comportado dos tecnocratas têm, para a educação brasileira, o peso equivalente de um sonoro e irresponsável “e daí?”. Na adversidade, cada um se vira com o que (não) tem e depois a gente vê o que é possível fazer. Mas não foi sempre assim?

Tudo está como antes

Passados dois meses da decretação da pandemia pela Organização Mundial da Saúde, hospitais particulares ainda têm leitos disponíveis em cidades brasileiras cujos hospitais públicos já vão à beira do colapso. No universo do ensino público remoto, o precário acesso à internet nos domicílios mais pobres do país define não apenas quem vai poder estudar, mas quem vai ter acesso a informações qualificadas para se proteger do vírus.

Na avaliação do presidente e fundador da XP, Guilherme Benchimol, “o Brasil está indo bem no controle do coronavírus e o pico da doença nas classes altas já passou”. Com efeito, à medida que a doença se alastra pelo país, atingindo os pequenos e médios municípios, reproduz-se um novo padrão de desigualdade: o das mortes por Covid-19. Isso demonstra que – não! – o Brasil não está indo bem no controle da doença.

A pandemia evidencia não apenas a vulnerabilidade existencial das vidas humanas, mas a nossa obscena e naturalizada desigualdade de acesso a bens públicos. Bens públicos são, por definição, não rivais e não excluíveis. Isso quer dizer que quando um bem público é consumido, a sua quantidade disponível para as outras pessoas não diminui. Saúde e educação são bens públicos por excelência. Ou, pelo menos, deveriam ser.

A Covid-19, por sua vez, só poderia ser considerada um “mal público” – ou “democrático”, como muitos se apressaram a dizer – se todas as pessoas tivessem as mesmas condições para fruir dos bens públicos a que têm direito. Nesse caso, a proposta de uma “fila única” para o acesso a UTIs durante a pandemia, na mesma lógica da fila dos transplantes, não geraria qualquer polêmica quanto à “justiça” do método. No entanto, a existência de um comércio ilegal de órgãos para transplante mostra como alguns sempre se sentem mais merecedores do que outros. Seja de um rim, de um leito de UTI ou de uma escola de qualidade.

Momentaneamente perturbada pela pandemia, nossa crise de bens públicos se reacomodou e tudo está como antes. É por isso que os pragmáticos da educação querem, mais uma vez, interditar o debate da educação como direito e como bem público.

Desaprendificar a educação

A trágica situação da saúde pública durante a pandemia, e a insistência em tratá-la como bem privado quando milhares de pessoas pobres são sepultadas em valas coletivas, deveria nos ensinar que o debate sobre a educação como bem público não pode continuar sendo um entrave no Brasil. Priorizar a garantia do direito à educação neste momento não é, como os tecnocratas insistem em proclamar, um espasmo de ingenuidade ou de pieguice. É a opção por um realismo radical que eles – também por opção – nunca tiveram.

É que a defesa do direito à educação contraria o horizonte deliberadamente reduzido do “direito à aprendizagem”, termo que contaminou as políticas educacionais e as redes de ensino do país nos últimos anos.

Gert Biesta, filósofo da educação, adverte há algum tempo sobre a crescente “aprendificação” da linguagem educacional, que, segundo ele, contribui para desgastar uma discussão aberta e democrática sobre o conteúdo e os objetivos da educação. Para ele, educar não é o mesmo que aprender habilidades que valorizam o capital humano do indivíduo. Não é formar pessoas “resilientes”, bem adaptadas ao cinismo dos tomadores de decisão. O filósofo defende uma educação que promova encontros com a alteridade, que faça de nós sujeitos responsáveis com o bem comum.

Mas segundo os nossos tecnocratas, são os “direitos de aprendizagem” que devem ser preservados durante e após o isolamento. Mais do que uma mera inovação na linguagem educacional, a aprendificação é um deslocamento político: de um projeto coletivo (a educação, um bem público) para um projeto individual (a aprendizagem, tratada como um bem tipicamente privado). Assim, ela também insinua uma transferência de deveres: do Estado, responsável no Brasil por garantir o direito à educação, para os educadores, passíveis de responsabilização individual pelos “fracassos” dos estudantes nos testes padronizados.

Pensar a educação como bem público serve para mostrar que nada está bem quando apenas uma minoria das crianças consegue preservar uma rotina de estudos durante o isolamento e as secretarias de educação, em nome do “direito à aprendizagem”, planejam manter seus calendários de avaliações assim como o MEC deseja manter o Enem.

É também o incômodo lembrete de que o Brasil poderia enfrentar melhor a suspensão das aulas nas redes públicas se não fosse coalhado por desigualdades e se a ampliação do financiamento da educação pública no país não fosse diuturnamente bombardeada pelo pragmatismo fiscalista. O mesmo que, em 2016, aprovou a Emenda Constitucional n. 95/2016 e deu de ombros quando se dizia que as políticas de austeridade econômica eram políticas da morte que levariam ao caos social. O mesmo que, em sua vertente educacional, aprendificou o direito à educação para não debater aquilo que realmente importa.

Mas e daí? Daí que é hora de parar de confiar que essa pandemia será a última crise humanitária deste século e que a naturalizada captura dos bens públicos no Brasil não terá maiores consequências entre nós. Daí que é hora de falarmos de direitos sociais e de bens públicos. E começando pela saúde e pela educação, que estão sempre na linha de frente quando o mundo parece ruir.

Fernando Cássio é doutor em Ciências e professor da UFABC, participa da Campanha Nacional pelo Direito à Educação e organizou o livro Educação contra a barbárie: por escolas democráticas e pela liberdade de ensinar (Boitempo, 2019).

Silvio Carneiro, doutor em Filosofia e professor da UFABC, coordena o grupo “Extimidades: Teoria Crítica desde o Sul Global” e participa do Grupo de Trabalho “Filosofar e Ensinar a Filosofar”, da Associação Nacional de Pós-Graduação em Filosofia.

Os autores integram a Rede Escola Pública e Universidade e o grupo de pesquisa “Direito à Educação, Políticas Educacionais e Escola” (DiEPEE) da UFABC.

 

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