Educação Domiciliar: fundamentalismo

Educação Domiciliar: fundamentalismo

Educação Domiciliar: fundamentalismo e business

Capitaneada pela ultradireita cristã e apoiada por setores de classe média, proposta dos anos 90 ganhou força com governo Bolsonaro e está no Congresso. Por trás da “inovação”, o lobby da educação privada, de olho em verbas públicas…

Esse texto é parte de uma tese de doutoramento em desenvolvimento por William Marcos Botelho, denominada “A História da Educação Domiciliar no Brasil”, desenvolvida na Pontifícia Universidade Católica de São Paulo, PEPG-EHPS, sob a orientação da Profa. Dra. Katya Braghini.

A partir do ano de 2018, com a posse do novo governo federal no Brasil, o tema Educação Domiciliar ganha espaço na cena política nacional, pautado como uma das prioridades da administração de Jair Messias Bolsonaro (Sem Partido) no plano educacional. O tema vem movimentando discussões nas redes sociais, na imprensa e entre especialistas.

Embora o assunto tenha conquistado espaço atualmente, a proposta de regulamentação da Educação Domiciliar, no Brasil, como uma ordenação jurídica planejada, remonta à década de 1990, com manifestações de famílias que reivindicavam o direito parental de praticar a Educação Domiciliar sem a intervenção do Estado, ou seja, poder ensinar aos seus filhos sem vínculo, ao menos moral, com o sistema de ensino oficial. E retorna a partir de 2013, com algumas proposições na Câmara Federal dos Deputados e grupos de famílias, aparentemente bem organizados. Mas, antes de ser apontado como uma revolução inovadora, é necessário apontar que um professor da Universidade de Harvard, John Holt (1923-1985), foi o primeiro a defender e implementar uma experiência da desescolarização, sendo crítico das potencialidades da instituição escolar. Entre os anos de 1960-1980, liderou um movimento internacional pela divulgação e legalização do ensino doméstico.1

Em 2019, o debate sobre a Educação Domiciliar ganha visibilidade com o Projeto de Lei (PL) 84/2019 que, num primeiro momento, parecia vindo de um movimento isolado em São Paulo. O PL aparece como parte integrante de um movimento nacional em defesa da Educação Domiciliar. Várias propostas sobre o tema são desarquivadas, audiências públicas são agendadas e manifestações em prol da Educação Domiciliar ganham as páginas da imprensa, com artigos favoráveis e contrários. Especialistas, ou não, pautam os debates. Há, nas redes sociais, páginas com esse conteúdo específico e existe forte engajamento dos seguidores dessa proposta.

Com o apoio do governo de Bolsonaro e seus simpatizantes, além de parte do Congresso favorável, a regulamentação no Congresso Nacional parecia inevitável até meados de março de 2020, quando, por conta da pandemia da covid-19, o debate na Câmara Federal dos Deputados perdeu força. Na cidade de São Paulo, o tema se materializa no PL 84/2019, do vereador Gilberto Nascimento (PSC)2, que foi instruído pela procuradoria da Câmara Municipal de São Paulo (CMSP) no dia 20 de abril de 2019, com a definição das comissões parlamentares.

De acordo com o Regimento Interno da CMSP, o PL segue para avaliação pelos vereadores quanto a sua legalidade e constitucionalidade – Comissão de Constituição, Justiça e Legislação Participativa (CCJ), dos recursos financeiros – Comissão de Finanças e Orçamento (FIN); Administrativos – Comissão de Administração Pública (ADM); e do mérito – Comissão de Educação, Cultura e Esporte (EDUC). Após a tramitação e aprovação do PL por estas comissões e, pelo menos realizadas duas audiências públicas, a propositura estará apta para ser pautada em plenário para o ritual legislativo de leitura, debate e votos favoráveis ou contrários em duas votações com intervalo de, ao menos, uma sessão entre elas. Isso significa que a pauta tem debate, há jogos de forças para que ela seja aceita e recusada, há barganhas políticas e diálogos sociais de diferentes níveis sobre o assunto, mostrando que, na condição de “rito legislativo”, ainda há uma batalha a ser vencida; o que de certa maneira poderia nos dar alento.

O Projeto de Lei 84/2019 teve pareceres contrários da Procuradoria da CMSP e da Comissão de Educação, Cultura e Esporte, que apresentaram argumentos da inconstitucionalidade e inviabilidade do Projeto no município de São Paulo. Da mesma forma, houve manifestações contrárias ao Projeto por parte de diversas entidades, por exemplo: do Conselho Municipal de Educação (CME), da Confederação Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB) e da Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação (CNTE). Todavia, a proposta foi aprovada em primeira votação na sessão plenária de 18 de setembro de 2019 e se encontra em discussão para segunda votação, seguindo, como já mencionado, para sanção ou veto do Prefeito.

Mas, afinal, o que é o projeto de Educação Domiciliar propagado pelas proposições apresentadas nos parlamentos e reivindicado por famílias e diferentes associações?

É possível pensar em alguns direcionamentos sobre o tema. A educação patrimonial é resultado dos anseios de famílias de classe média, principalmente estimuladas por setores empresariais que abrem uma discussão sobre a necessidade de liberalização do Estado em matéria de ensino oferecido ao público, passando a agir pela privatização da educação estatal. Na década dos anos 2000, a Educação Domiciliar dá um importante passo no que diz respeito à organização administrativa, econômica e política, enquanto representação de educação destas famílias, quando passa a ser evidenciada como uma necessidade no plano dos costumes. Havendo a pauta das diversidades no plano cultural, não seria impossível que mesmo as famílias pleiteassem o direito de não conduzir os seus filhos a um processo de escolarização oficial. Posteriormente, a partir de meados da década de 2010, é possível visualizar uma rede em defesa da Educação Domiciliar no Brasil, inclusive com suporte jurídico, coordenando e elaborando iniciativas e fundamentando apresentações de projetos de lei, em municípios e estados, e ações judiciais contra o Estado em defesa da Educação Domiciliar, criando uma pauta de discussão nacional.

Destacam-se também os movimentos intervencionistas de projetos como a Escola sem Partido (ESP) que passou à perseguição de professores nas escolas, também associados aos interesses de uma parcela da direita cristã, atualmente posicionados com representação na ação partidária das casas legislativas, com um esforço político de restabelecer um controle parental na formação dos indivíduos, com direcionamento evangelizador, religioso, criacionista. Assumiram a agenda educacional como campo de guerra, em contrariedade às discussões de gênero, orientação sexual e racial.

Esse intervencionismo de ordem moral tem afetado as políticas públicas, a rotina da cultura escolar, o planejamento de materiais didáticos, etc. O Plano Nacional da Educação, o Estatuto da Família, o “Programa Escola sem Homofobia”, todos eles tiveram interferência desses grupos, principalmente visando à ação pró-família tradicional, como reação direta aos movimentos feministas e LGBT+.

A professora Carlota Boto, da Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (USP), indica que, nos Estados Unidos, há mais de 2 milhões de crianças em idade escolar fora da escola. Naquele país, um dos principais motes da prática do homeschooling é religioso. Segundo os dados apontados, ocorreu um crescimento superior a 100% entre 1999 e 2010, e, para o conjunto dos estados norte-americanos, há um contingente de quase 4% de crianças que hoje não frequentam mais a escola. A ampliação das práticas de homeschooling na Rússia, entre 2008 e 2012, teria sido de 900%. A mesma pesquisadora informa que, em contrapartida, na Alemanha, país que proibiu a prática em seu território, há inúmeros casos de casais que foram multados e até presos por não enviarem os filhos à escola.

Homeschooling é mais um dos movimentos de caráter privatista que invade o mundo da educação com verve de “inovação educacional”. Como já dissemos, há uma relação imediata com os discursos voltados à Escola sem Partido, que esbraveja pela boa vontade de se educar os filhos com os seus próprios valores, de maneira a evitar a tal “ideologia de gênero”, mas apaga-se a ligação do homeschooling com os processos de terceirização privada do ensino. O ensino domiciliar é resultado de claros interesses de grupos cristãos que incluem pastores, padres, empresários e militares que seriam os beneficiados por projetos de repasses públicos para a administração privada desse tipo de empreendimento educativo.

O que aparece como um discurso livre é o principal catalisador para processos de concessão de créditos fiscais para empresas e famílias, viabilizadas por recursos públicos. Depois, porque o tal movimento de ensino domiciliar se apresenta setorizado, local onde se pode vender todo tipo de produto: livros didáticos, cursos de formação, fornecimento de tutoriais, plataformas digitais, orientação educacional às famílias, startups de formação, ensino, desenvolvedores de produtos, sistemas de ensino, etc…

No sentido de conglomerado de produtos, ou melhor dizendo, de materiais didáticos, imaginem a força do lobby que procura fazer passar as pautas nos tais ritos legislativos e o esforço para a constituição de um ordenamento jurídico favorável aos interesses desses sujeitos, grupos e empresas. Um exemplo dessa pressão que surge como movimento da “sociedade civil” em nome da liberdade de ensino vem da Pearson PLC, empresa inglesa, liderança mundial para o fornecimento de materiais educacionais, que está presente em 70 países e tem atividades no Brasil, com interesses no ensino público. De acordo com o site da empresa, o Núcleo de Apoio a Municípios e Estados (NAME) está, desde 1999, trabalhando em “parcerias pedagógicas com o ensino público”, iniciando pelo estado de São Paulo, para depois se estender por 140 municípios brasileiros, para pregar que:

Contribui para que o Brasil atinja suas metas na educação com o compromisso de levar aos estudantes das escolas parceiras os mais modernos recursos pedagógicos, tecnológicos e administrativos, buscando sempre oferecer educação pública de qualidade e resultados de aprendizado com eficácia.3

Educação pública como local de instalação de serviços educacionais privados em busca de “eficácia” em nome da inovação pedagógica por vias tecnológicas… Como se vê não estão escondendo o processo de privatização no plano discursivo, em movimentos ligados à escola pública. O que seria, então, a possibilidade de fazer o mesmo para esse nicho amplificado e sem o corporativismo dos professores, que é a família?

Com o advento da pandemia de covid-19 no Brasil, e a necessidade de estabelecer condições de acesso para milhares de estudantes, possibilitando que eles continuassem seus estudos em casa, diversos estados implantaram o “ensino remoto” com aulas em rede aberta na TV ou via internet; com aplicativos e com redes tecnológicas de acompanhamento das escolas. Essa situação de pandemia, além de revelar ainda mais as mazelas sociais, com número significativo de estudantes e professores que não participam desse mundo tecnológico, deu reforço para a amplificação de uma grande sorte de inovações pedagógicas de fundo tecnológico. Ao mesmo tempo, o isolamento social também trouxe questões importantes sobre os rumos e a pertinência do ensino domiciliar no país.

A ansiedade, as alterações no comportamento dos pais e dos filhos, a real experiência de convívio diário ininterrupto entre as partes, deram importância à escola, neste momento, ao menos no sentido de hospedaria de estudantes. O despreparo de muitas famílias com a convivência ininterrupta com os filhos, o aumento da violência doméstica entre os familiares, traz a voz da experiência para o debate e, de certa maneira, enfraquece a ideia de que as famílias têm mesmo o poder de ensinar, em situação real, as crianças dentro de casa. E se alguém de uma família de classe média lê esse parágrafo e se ofende, há de se pensar que existem milhões de famílias brasileiras sem as comodidades de uma casa burguesa. Além disso, há a ampla discussão sobre a perda de um espaço de sociabilização e de pertencimento de um universo para além do ambiente privado da família, para o mundo público, para o local da política.

O tema Educação Domiciliar retorna ao debate nacional neste primeiro semestre de 2021, com o envio da PL 2.401/ 2019, pelo governo federal, para a regulamentação da Educação Domiciliar no país. Movimentando as bases sociais de seus defensores, fazendo proselitismo para agradar a sua militância, vê-se o tema sendo encaminhado à aprovação pelo Senado Federal, onde o governo Bolsonaro possui maioria entre os senadores, enquanto base do governo. Soma-se a isso, o fato de que o governo federal joga suas forças ao controle de conteúdo dos materiais didáticos, a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), e passou a controlar o Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (IDEB), que foi retirado das mãos do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais (INEP) e passa a uma secretaria-executiva no Ministério da Educação (MEC) que está sob vigilância do pastor Milton Ribeiro e seguidores de Olavo de Carvalho.

Com isso, é difícil pensar que os diferentes projetos sobre o homeschooling são inovações necessárias à educação em benefício das famílias, que poderiam possuir o direito de conduzir a vida de seus filhos em relação à pauta do ensino. Primeiro, vemos um movimento social que procura enfraquecer o direito à educação estatal, pública, gratuita como modo ilustrado de educação, com o discurso de que a centralização do ensino no governo federal é “coisa de comunista”. Depois, porque não se trata apenas de pensar a educação domiciliar como uma alternativa a outro tipo de ensino, pois a questão, por si só, questiona o direito universal de todos os cidadãos terem acesso à escola. Além disso, o que vemos dentro da pauta do ensino domiciliar é um aglomerado de interesses contrários aos movimentos sociais, contrários às diversidades, ambiente de enriquecimento de empresários, conglomerados educacionais.

As famílias? De quais famílias eles falam? Dentro de quais casas? Muito embora as famílias estejam encapando todo esse discurso, bem se vê que, o que elas querem, pensam, sentem e experienciam não está fazendo a menor diferença para este plano sórdido.

 


 

1 BOTO, Carlota. Homeschooling: A prática de educar em casa. Disponível em: https://jornal.usp.br/artigos/homeschooling-a-pratica-de-educar-em-casa/ Acessado em 07/04/2021. A autora mostra o rol de lamentações que os defensores do homeschooling têm com relação à escolarização oficial e uma delas é considerar a escola “obsoleta” diante de todas as possibilidades modernas de escolarização tecnologizada diante do acesso, nem tão universal, dos alunos à internet e ao uso de um universo de dispositivos educacionais à disposição de alguns sujeitos.

2 Gilberto Nascimento Jr – Formado no Colégio da Polícia Militar e graduado em Relações Internacionais com especializações em Desenvolvimento de Projetos e Gestão Pública, mandatos como vereador de São Paulo período de 01/01/2017 a 31/12/2020 e o 2º mandato em curso de 01/01/2021 a 31/12/2024, ambos pelo Partido Social Cristão (PSC).

3 Adrião e Garcia (2007) já fizeram uma análise sobre a atuação da Pearson PLC em relação ao homeschooling. Disponível em http://retratosdaescola.emnuvens.com.br/rde/article/view/783 Acessado em 07/04/2021. O site da Pearson anunciando o NAME está disponível em: https://br.pearson.com/educacao-basica/name.html#:~:text=O%20NAME%20(N%C3%BAcleo%20de%20Apoio,estende%20por%20140%20munic%
C3%ADpios%20brasileiros
 Acessado em 07/04/2021.

 

WILLIAM MARCOS BOTELHO E KATYA BRAGHINI

Katya Braghini - Professora e pesquisadora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo no PEPG em Educação: História, Política, Sociedade (EHPS).

William Marcos Botelho - Professor de História e doutorando pela PUC/SP

 

https://outraspalavras.net/author/botelhobraghini/ 




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