Educação e Covid-19
Educação e Covid-19 (notas)
No Brasil, educação e saúde, desde o autoritário Estado Novo, quando foi implementado o Ministério da Educação e Saúde, criado em 1930, são os campos diletos e prediletos para investimentos e justificativas das chamadas políticas públicas.
Devotos das políticas de Estado para formar o seu “cidadão de bem”, sempre defenderam ser preciso assegurar educação e saúde, investimento que sempre começou pelas crianças e jovens. Assim sendo, as reformas pedagógicas não findaram, incidiram e incidem principalmente na educação básica.
Atualmente, mais de oito décadas depois do início do Estado Novo, vigora o Plano Nacional da Educação (PNE), com suas “20 metas, objetivos e estratégias” e a Base Nacional Comum Curricular (BNCC), com “competências gerais” que dão alicerce “aos direitos de aprendizagem e desenvolvimento”. Na BNCC, “competência” é entendida como “conceitos e procedimentos”; “habilidades” são as chamadas “práticas cognitivas e socioemocionais”; condutas e valores recaem “na complexidade da vida cotidiana, do pleno exercício da cidadania e do mundo do trabalho”.
Para a BNCC, a educação deve estar alinhada à Agenda 2030 da ONU, na qual se se demarcam os 17 objetivos do desenvolvimento sustentável, e à DUDH (Declaração Universal dos Direitos Humanos), e assim se tornar mais humana, justa, transformadora e voltada para preservação da natureza. A BNCC se propõe a ser um documento norteador de ensino e aprendizagem de qualidade, discutido com a sociedade e elaborado por especialistas de diversas áreas, preocupados em instruir o estudante para o futuro, pretendendo formar crianças e jovens ajustados ao diapasão do desenvolvimento sustentável da racionalidade neoliberal.
É um programa voltado para a resiliência, que procura adequar crianças e jovens sem se afastar do objetivo principal da educação estatal. Ou seja, educar para a obediência e para formar o cidadão de bem revestido de empatia, compaixão, amor ao próximo, cuidadoso com a saúde física e mental, respeitoso em relação a si, aos outros e aos direitos humanos, protagonista, cooperativo, mediador, autônomo, flexível, ético, democrático, inclusivo, sustentável, solidário e sem nenhum tipo de preconceito, e que saiba “compreender, utilizar e criar tecnologias digitais de informação e comunicação de forma crítica, significativa, reflexiva e ética nas diversas práticas sociais (incluindo as escolares)”, resiliente. Uma educação que segue como formação moral ajustada segundo a moralidade contemporânea.
O resiliente é o apaziguado solícito, o conformado participativo, o ressentido certificado. O resiliente é a resignação e a mediocridade levadas à apoteose.
A conexão saúde, educação e resiliência atravessa a chamada pandemia gerada pelo novo coronavírus. Mais do que nunca, o que se busca é a superação de uma situação adversa para que se possa retornar ao (novo) normal. A pandemia desencadeia uma série de medidas sanitárias, entre elas o fechamento das escolas, no intuito de evitar a aglomeração por contato e conter a proliferação da Covid-19. Nas escolas públicas e particulares, a alternativa para concluir os 200 dias do ano letivo foi, a princípio, implementar o “ensino remoto” utilizando as tecnologias de informação e comunicação. No entanto, foi preciso estreitar relações com os pais, pois a família é considerada peça fundamental para o ensino e aprendizagem em “meio digital”; eles são os responsáveis em monitorar passo a passo as aulas dos professores, a realização das tarefas, as decisões escolares e seguir as medidas governamentais.
Nas escolas particulares, a adaptação foi ágil, mesmo porque, muitas já utilizavam plataformas de educação à distância como forma de obter maior “interação” entre professores e alunos do ensino fundamental e médio; e enquanto uma medida de escolarização continuada que não se reduz mais ao aluno preso por horas na escola-prédio, mas que se estende por todo o seu dia. Porém, a grande questão está no âmbito da educação infantil. Como crianças tão pequenas podem ter aulas remotas? A pergunta feita pelos pais foi, muitas vezes respondida por gestores e professores citando os preceitos da BNCC: “a educação infantil tem o objetivo de ampliar o universo de experiências, conhecimentos e habilidades dessas crianças, diversificando e consolidando novas aprendizagens, atuando de maneira complementar à educação familiar”. Portanto, cabe à família exercer sua responsabilidade na educação dos seus filhos, um dever em tempos de pandemia.
O rebuliço ocorreu nas escolas “públicas”. A suspensão das aulas presenciais trouxe à tona problemas permanentes que são escamoteados: a dependência da alimentação escolar como a principal fonte de nutrição para crianças e jovens. Em nome da segurança alimentar, os governantes cogitaram a “bolsa-merenda” ou a “cesta básica”, mas as famílias paupérrimas alardeiam falta de recebimento.
O “ensino remoto” se tornou um tormento para professores e alunos. Muitos professores da rede pública municipal e estadual sequer conheciam plataformas de ensino à distância, ou tinham acesso à internet; outros não tinham smartphones, planos para celular e computador. O mesmo aconteceu com estudantes. Estados e municípios adotaram plataformas online, providenciaram apostilas para os alunos, aulas pela TV aberta e até programas de rádio. E os professores, como sempre, como tantos outros que foram para home office, tiveram que aceitar e se virar.
Agora, o governo volta a falar no retorno às aulas presenciais nas escolas públicas e particulares. Pais, alunos e professores expressam seus receios e temores. Governantes declaram que a reabertura das escolas a partir de agosto e setembro, ou sabe-se lá quando, será feita por meio de “medidas seguras”, com planejamento e cautela, articulando educação, saúde e prevenção ao contágio. Pesquisa recente mostrou que 76% dos brasileiros são contra a reabertura das escolas; 77% de pessoas que recebem até 2 salários-mínimos querem as escolas fechadas; os com renda superior a 10 salários-mínimos somam 73%. O medo de ser infectado e morrer do novo coronavírus se manifesta em todos os estratos. E, segundo alguns analistas, nos estratos mais pauperizados isso pode ser reflexo, também, da entrada dos filhos no mercado de trabalho informal para complementar a renda das famílias que sofreram redução como um dos efeitos econômicos da chamada pandemia.
A população segue como rebanho, empurrado de um lado ao outro, testando os seus limites e capacidade de adaptação. Ora pressionada a se adaptar à tirania dos meios computo-informacionais, ora empurrada ao novo normal dentro da abertura socioeconômica, mas quase sempre com medo e incapaz de tomar a própria vida nas mãos.
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Cursos online gratuitos , de capacitação, de qualificação profissional e até mesmo para o lazer, estão à disposição de todos os “cidadãos de bem”, destinados aos trabalhadores, desempregados, empreendedores e estudantes confinados, pressionados pela possibilidade de contraírem a Covid-19. O aceno do governo do estado de São Paulo e do Centro Paula Souza, foi com o lançamento de variados cursos à distância para jovens, dentre eles o curso Felicidade. O curso Felicidade aborda os seguintes temas: psicologia positiva, forças e fraquezas, bem-estar, vida plena, socialização e relacionamentos, equilíbrio pessoal e felicidade. Ao término você estará apto a refletir sobre como ter uma vida mais leve e feliz! E tudo isso estudando!
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Em 18 de março de 2020, em decorrência da chamada pandemia, o Ministério da Educação decretou a suspensão das aulas presenciais e as substituiu por aulas em “meios digitais”, em todo o Brasil. As medidas adotas pelos estados e Distrito Federal, alinham-se ao discurso de “enfrentamento” emergencial na saúde pública em decorrência do novo coronavírus. A partir desse momento, do ensino básico ao ensino superior ocorreu uma reconfiguração, para que não houvesse a interrupção das aulas e regulamentou-se o “ensino remoto”.
Rapidamente as multinacionais de software e serviços online, como a Microsoft, Zoom e a Google, entraram em cena, oferecendo acesso gratuito às suas plataformas de ferramentas e aplicativos. Enquanto a Microsoft investiu no Office 365 Education com sua “sala de aula colaborativa” Microsoft Teams e suas “políticas para educação” e “suporte aos pais”; a Google For Education, com apoio do Instituto UNESCO para Tecnologias da Informação na Educação, lançou o programa “Ensine em Casa”, amplificando as ferramentas do G Suite Education; a Zoom ofereceu seus serviços gratuitamente para muitos países e disponibilizou o Outschool sob o lema “where kids love learning”, comercializando e disponibilizando cursos gratuitos a pais e filhos, e passou a prestar serviço a inúmeras escolas por todo o planeta. Além das novidades para as instituições de ensino, voltou-se também para as famílias, ao introduzir uma orientação sobre “cidadania digital e segurança online”, dentro do aplicativo “Family Link”. Professores, alunos, educadores, familiares, empresários da educação e governantes de plantão aplaudiram a iniciativa benevolente das gigantes… mas nada é por acaso!
A benevolência tem seu preço, juros e dividendos. Google e Microsoft tem hoje um imenso banco de dados planetário dos seus usuários. Os perfis estão recheados de informações, detalhe do detalhe de vidas e corpos que alimentam o ininterrupto monitoramento computo-informacional. A vida só se transforma em dados quando há adesão e confiança nos protocolos. E não custa lembrar que o business dessas empresas nunca foram os aplicativos e sim a gestão, distribuição e comercialização das modulações desses dados, ou seja, quanto mais dados, mais lucro para os negócios.
Ferramentas e aplicativos continuarão disponíveis gratuitamente para instituições de ensino e usuários desde que filiados numa ou noutra plataforma até o fim de setembro. No caso do ensino superior, há quem diga, que o acesso se estenderá até dezembro, alinhados à Portaria 544 do MEC, que autoriza aulas remotas “por meios digitais enquanto durar a situação de pandemia”.
O mercado educacional também transborda em benevolências. Cheios de boas intenções e pautados por uma “legislação consistente”, que incentiva a educação à distância, as corporações educativas viram uma oportunidade para novos empreendimentos. Há pelo menos cinco anos, corporações e empresários do setor educacional voltaram-se, de forma mais acentuada, para cursos de graduação e lato sensu à distância, principalmente na área das Ciências Humanas, em nome da democratização do acesso ao ensino superior. Baixo custo e altos lucros.
O Censo EAD de 2019, realizado pela Associação Brasileira de Educação à Distância, afirmou haver “9 milhões de alunos matriculados em cursos universitários e livres”, e um investimento tecnológico em expansão, que inclui, entre outras coisas, o uso de inteligência artificial para identificar palavras-chave, dispensando o trabalho do professor. Assim, os investimentos em educação à distância continuam, e falam que será a responsável pela não falência de muitas instituições: os cursos são de baixo custo, contrata-se professores conteudistas para elaboração do material a preço módico e tutores de disciplinas que atendem centenas de alunos; além de programadores e designers que, em pensamento binário, devem dizer a cada professor/tutor se o que fazem está modulado corretamente ou não ao formato EAD. Pouco importa o conteúdo. A maioria dos professores e tutores são mestres e doutores conforme o figurino de exigências do MEC. Em geral os cursos são modulares, as matrículas ocorrem o tempo todo; os materiais desenvolvidos por um professor podem ser usados nos mais variados cursos, indo desde a graduação, até o mestrado, ou cursos de educação executiva, mudando-se somente a capa do arquivo. O processo seletivo é um truque, e o aluno-cliente tem sempre razão. Negócio é negócio.
A proliferação de diplomas e certificados é apenas um eixo desse grande negócio chamado educação. Já faz tempo que ter um diploma de ensino superior significa para muitos meta de ascensão social. Ser diplomado é sinônimo de almejar melhorar de vida, estar empregado ou empreender, e ter uma carreira promissora. Nessa sobrevivência escolarizada, os (as) que já chegaram lá também devem continuar a estudar em seus cursos de educação executiva e especializações, em busca de um aperfeiçoamento profissional contínuo e incessante: a escola nunca acaba. E mesmo que não se tenha tempo, não há problema. É possível comprar um curso de férias ou aproveitar o momento em que se vai de um lugar a outro; no trajeto no transporte público entre o trabalho a casa; quando vai ao banheiro; durante o banho entre outros momentos. Basta apenas assistir as aulas que tendem a não ser mais síncronas e depois assinalar alguns xis em um teste para ter o certificado.
Desde a década de 2000, as instituições de ensino superior particulares (ou privadas), entenderam que para prosperar precisavam, além de muitos alunos pagando mensalidades para adquirir seu diploma de ensino superior, ter professores qualificados como mestres e doutores para afiançar o discurso de “qualidade, inclusão social, inovação e empregabilidade”.
Algumas instituições, para se tornarem centros universitários ou universidades, em concordância com as políticas regulatórias do MEC, supostamente investiram em ensino e pesquisa ao implementar o stricto sensu: mestrado e doutorado. Paralelamente, ocorria a disseminação da educação à distância nos cursos de graduação e pós-graduação. É a consolidação da educação chamada de contínua, acessível e democrática.
Para garantir a procura pela formação constante, passaram a investir na oferta a bacharéis e licenciados, apresentada como necessidade, cursos de pós-graduação lato sensu, especialização, extensão e MBAs, o que fez surgir outro eixo de negócio rentável. Na carteira de clientes, um dos alvos preferenciais são os servidores públicos, principalmente policiais e professores que buscam uma “progressão funcional”. Para subirem de cargos e aumentarem seus salários, é preciso apresentar diplomas e certificados.
A certificação opera num duplo indissociável: no ensino e aprendizagem contínuos, os lucros são exorbitantes para as corporações educacionais. E se escancara como as universidades “públicas” foram capturadas ao incorporar não só o discurso das particulares, mas a ofertar cursos de especialização em conjunto com o Sistema UAB – Universidade Aberta Brasil, para fomentar o ensino a distância de “qualidade” pautado em “metodologias inovadoras” com respaldo tecnológico e científico, redimensionando o que era a extensão universitária que compunha com ensino e pesquisa a tríade da formação acadêmica.
A chamada pandemia mostrou-se como uma grande oportunidade para acelerar o que já se insinuava no mercado acadêmico. As pesquisas passaram a ser quase que restritas às demandas econômicas, em especial da saúde, e as instituições educacionais passam a servir ao negócio das certificações. E só.
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Em meio à chamada pandemia, as universidades estatais procuram definir seus rearranjos. Umas suspenderam as aulas, outras adotaram o “ensino remoto emergencial”. Algumas também utilizam o mesmo aparato de aplicativos e ferramentas, no entanto, do alto da sua autoridade acadêmica científica, calam-se diante do mercado e do governo. O medo e a conformação se instalaram.
Para “capacitar” docentes que nunca imaginaram dar aulas à distância, cursos de extensão são promovidos a toque de caixa: a ideia é fazer crer na materialização de programas que compõem um caminho sem volta. Cabe a cada professor aprender o fantástico mundo da educação tecnológica digital. Poucos são os que questionam e criticam a imposição da “educação remota”, que num piscar de olhos se transmutará em “educação híbrida”, quiçá totalmente a distância para os cursos de humanidades, como defendido em muitos momentos pelo atual governo do Estado.
Maria Lacerda de Moura, nos anos 1930, foi uma das mais expressivas resistentes à Educação como política estatal. Participou de associações de combate ao analfabetismo, defendeu a “auto-educação” como uma prática libertária, escreveu livros como “Ferrer, o Clero Romano e Educação Laica” e concluiu: “A educação libertária não prepara a revolução, ela é em si mesma a revolução’. Hoje em dia, há uma escola municipal com seu nome, na Vila Dalila, na zona leste da cidade de São Paulo.
*Fonte: hypomnemata 236. Boletim eletrônico mensal do Nu-Sol – Núcleo de Sociabilidade Libertária do Programa de Estudos Pós-Graduados em Ciências Sociais da PUC-SP, n. 236, julho de 2020.
https://espacoacademico.wordpress.com/2020/07/31/educacao-e-covid-19-notas/