Educação integral exige mudança

Educação integral exige mudança

Educação integral exige mudança interna dos educadores e das práticas de gestão

Escola no interior de São Paulo é exemplo de abordagem que se destaca pela proximidade entre educador e aluno que resulta em autonomia e autoconhecimento

por Maria Picarelli ilustração relógio 18 de janeiro de 2021

 

A educação integral tem como objetivo a formação dos estudantes autônomos, criativos, empáticos, entre outras características. Pressupõe, então, uma educação que ultrapasse a fronteira do conteúdo, focada no desenvolvimento cognitivo.

No entanto, para que a educação integral aconteça, não basta um currículo bem estruturado, capaz de traduzir em práticas pedagógicas as disposições da BNCC (Base Nacional Comum Curricular), por exemplo. É preciso ir além. É necessário uma equipe escolar e um corpo de professores alinhados com essa visão de educação, tanto no que diz respeito à formação, quanto na capacidade de materializá-la no dia a dia da escola. Como fazer isso?

Crianças mexem na horta da escola acompanhadas de uma professora
Crédito: Arquivo Pessoal

Além do Ideb, escola também comemora melhora nas relações

A experiência do Centro de Educação Infantil Professora Dulce de Faria Martins Migliorini, localizada em Itirapina, interior de São Paulo, traz boas luzes sobre como tirar a proposta de educação integral do mundo das ideias. A escola municipal atende a cerca de 180 estudantes de educação infantil e do primeiro ciclo do ensino fundamental.

Antes de tudo, é preciso ter clareza que este não é um processo que ocorre da noite para o dia. Este é o primeiro alerta que a Fabiana Costa, diretora que liderou o processo de transformação da escola. “Eu entrei na gestão em 2015, e em 2016 teve início um projeto para fortalecer nossa proposta pedagógica de educação integral”, lembra Fabiana, referindo-se a uma parceria com o Instituto Península.

O foco era melhorar o contraturno, que, segundo Fabiana, se limitava a atividades de reforço escolar. “A primeira decisão que tomamos, depois do processo de sensibilização, foi mudar o foco das atividades com base nas pesquisas sobre o desenvolvimento integral. A gente queria oferecer atividades para desenvolver outras habilidades, além do cognitivo”, relata a gestora.

Equipe toda envolvida
O processo para fazer a transformação foi longo e abrangente. Não se resumiu à substituição do tipo de atividade proposta aos estudantes. O primeiro passo foi envolver toda a equipe escolar, por meio de reuniões com todo o grupo e com os profissionais de áreas específicas. “A primeira descoberta importante foi que não bastava envolver somente os professores. As merendeiras, os monitores, o pessoal da segurança precisavam mudar também”, diz ela. “Afinal, se os professores mudam a maneira como lidam com os estudantes, mas o resto da equipe não, o projeto não iria adiante”.

A gestão também teve que mudar: Fabiana conta que ela própria teve que agir de maneira diferente com os profissionais, implementando reuniões com cada grupo e adotando uma postura mais aberta, de escuta e compartilhamento da tomada de decisão. O movimento, ressalta Fabiana, foi apoiado pela equipe do Instituto Península, que permaneceu na escola entre 2016 e meados de 2018.

Uma das chaves é a escuta, somada à formação. “Nas reuniões, eu ouvia das demandas, abria espaço para as pessoas falarem, se colocarem e aproveitava para passar alguns conceitos”.

Era uma rotina intensa – e exaustiva – de reuniões, que além da equipe escolar envolveu as famílias, a comunidade e outras áreas sociais. Fabiana conta que havia o chamado Grupo da Rede, com participação do Conselho Tutelar e representantes das áreas da saúde e assistência social.

Fabiana considera a articulação com o território outra chave importante para explicar a mudança da escola.

O CEI Dulce está localizado em uma área de vulnerabilidade e atende crianças que são filhas ou parentes de presidiários. Além de carregar um estigma, muitos estudantes tinham como projeto de vida ser presidiário porque consideram que lá é oferecida comida de boa qualidade, relata a gestora. Em Itirapina há duas penitenciárias.

Menino pinta girassol na paredeCrédito: Arquivo Pessoal

A escola Dulce de Faria Martins Migliorini atende 180 alunos da educação infantil e ensino fundamental 1

“A sensibilização do território é fundamental na perspectiva da educação integral. Formação, pesquisa, estudo são necessários, mas cada escola tem um perfil, suas necessidades”, analisa Fabiana. Ou seja, a educação integral, na visão da gestora, não acontece por meio de soluções pré-formatadas. “É essencial olhar e perceber qual é a necessidade dos estudantes, da comunidade e o que os professores podem e querem oferecer”.

Mudança interna
Dois anos depois de iniciado o processo, a escola já tinha outra cara. A mudança do perfil das oficinas de contraturno já havia mudado, com a oferta de atividades selecionadas pelos estudantes e pelos professores, conforme seus desejos e aptidões. Fabiana conta que houve uma fase em que chegaram a ser ofertadas 30 oficinas aos estudantes.

No entanto, para atingir este ponto, a mudança não se limitou ao formato das reuniões, às relações entre os integrantes da equipe escolar e ao conteúdo das atividades ofertadas aos estudantes: esse movimento se alicerçou na mudança interna dos professores e dos demais integrantes da equipe.

A professora Lucileide Sanches Godoy, que dá aulas no Pré 1, para crianças de 4 anos, conta que “foi um processo lento e dolorido”. “É muito difícil quando a gestão abre e cada um passa a expressar o que é e como pensa. Cada pessoa é diferente e é delicado costurar uma linha para que todos se sintam parte”, analisa.

Ela sente que teve que “abrir a cabeça”, revisar crenças e padrões. “É muito difícil, a gente carrega muitas experiências, inclusive aquelas da época em que éramos alunos. Então, quando caímos num ambiente inovador, a gente tenta se proteger. É preciso sair do quadrado”.

Para ela, que leciona há sete anos, o mais difícil foi abrir mão da posição do professor como detentor do saber à medida que o projeto de reformulação do CEI Dulce acontecia. “Tive que sair da posição do professor detentor do saber e me igualar às crianças. Dar voz a elas para que elas pensassem e aprendessem sozinhas”, relata. Nesse novo formato, ensinar é compartilhar aprendizagens, define Lucileide.

Crianças pintando parede da escola
Crédito: Arquivo Pessoal

Crianças pintam parede da escola

Na avaliação da professora, o primeiro ganho de todo esse processo de transformação se deu no plano pessoal, individual, e se propagou na dinâmica da escola e nas relações. Essa mudança se refletiu no contato entre educador e aluno e o aluno ganhou com isso em autonomia e autoconhecimento.

E, para a gestora Fabiana, é a mudança interna dos profissionais que atuam na escola que sustenta a transformação da escola, mesmo depois do encerramento do projeto do Instituto Península.

Diversas práticas, como o acolhimento das necessidades emocionais dos educadores no início das reuniões semanais, foram definitivamente incorporadas e garantem a sustentação do novo projeto pedagógico da escola.

Resultados
Os efeitos dessa mudança se traduziram na melhoria do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb) da escola, que passou da faixa de 3 para 7 no período de quatro anos.

“O Ideb é mensurável e é muito gratificante observar esse aumento, mas a principal mudança, a meu ver foram nas relações, na maneira de olhar para o outro”, avalia a gestora Fabiana.

E, para a professora Lucileide, há muita coisa ainda a fazer – a única barreira, para ela, são as condições materiais, que por vezes, deixam a desejar. Mas ela é otimista e confia plenamente no seu potencial e no da equipe do CEI Dulce. “A gente é capaz de conquistar o mundo”, diz.

 

https://porvir.org/educacao-integral-exige-mudanca-interna-dos-educadores-e-das-praticas-de-gestao/?fbclid=IwAR0FnlR86j26_44MlTHRHkymDQktxm63E2MeVFZucZ9qv7WvM1f4-s0xZJ8 




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