Educação não pode ser privilégio

Educação não pode ser privilégio

Frei David: Acesso à educação não pode ser privilégio de poucos

Por Marcelo Menna Barreto / Publicado em 2 de junho de 2022

 

Mineiro do município de Nanuque, frei franciscano David Raimundo dos Santos, 69 anos, pouco fala de si. Prefere colocar em primeiro plano a Educafro, ONG de atuação nacional com sede em São Paulo, dedicada à inserção de jovens da periferia no ensino superior. Difícil, no entanto, dissociá-lo da entidade criada nos anos 1980 para sistematizar os cursinhos preparatórios ao vestibular que o Frei ministrava para as camadas mais pobres da população, em especial os afrodescendentes. “O acesso à educação não pode ser privilégio de poucos”, sentencia.

A ONG, que já colocou 100 mil jovens na faculdade e atua na inclusão de minorias no mercado de trabalho com cursos preparatórios para concursos públicos, é vanguarda em causas jurídicas pela equidade. Um exemplo é a ação civil pública que resultou na maior indenização coletiva da história do país e da América Latina para a comunidade negra no caso do assassinato de Beto Freitas, em novembro de 2020, por seguranças do Carrefour, em Porto Alegre.

“Nossa ação civil pública colocou o Deus do empresariado na parede”, disse David à época. Na Paróquia Santuário de São Francisco, centro de São Paulo, em meio aos preparativos para uma viagem aos Estados Unidos, ele falou ao Extra Classe sobre sua trajetória e o protagonismo da Educafro nas políticas afirmativas de inclusão racial.

Extra Classe – O senhor começou seu trabalho de inclusão da população negra com os cursos preparatórios para vestibulares e, em paralelo, na luta pela política de cotas. No final, qual é o sentimento de ter ajudado cerca de 100 mil jovens a atingir uma formação universitária?
Frei David Santos – Como sabemos, o Brasil, infelizmente, é perpetuador de práticas que reforçam o racismo estrutural. Estas, por sua vez, interferem no acesso da nossa comunidade afro-brasileira a cargos de poder, impactando na latente desigualdade sofrida pela maior parte da nossa população. Deveria ser de total dever dos órgãos do Estado a responsabilidade de abrir o coração e promover políticas que fornecessem soluções para tais problemas estruturais.

A missão inicial da Educafro Brasil tinha por elemento central a inclusão de nossos irmãos afro-brasileiros no acesso ao ensino superior para que pudéssemos iniciar o processo de erradicação dessas desigualdades. Ouso dizer que nós, enquanto entidade, vibramos com cada vitória alcançada pelo nosso povo.

Mas insisto na luta para que o Brasil compreenda que não só a inserção é necessária, mas também que conservem os frutos dos movimentos que trabalharam até aqui em prol de eliminar essas desigualdades. E ainda que projetem políticas que garantam não só a permanência nesses espaços, mas também promovam outros avanços que reparem os erros da história e garantam oportunidades concretas para nossos irmãos afro-brasileiros.

EC – Como foi o seu caminho?
Frei David – Quando muito tempo atrás eu fiz uma palestra para a juventude negra, na Baixada Fluminense, com mais de 100 jovens, eu pedi: levante a mão quem de vocês vai fazer faculdade. Eu vinha de duas faculdades e, na minha cabeça, fazer faculdade era o normal de todo ser humano.

Não imaginava que era possível uma pessoa jovem, seja ela pobre ou rica, não ter o sonho de fazer faculdade. Mas, só dois jovens levantaram o braço. Ali, caiu a ficha. E eu entendi qual era a minha vocação. Criar o pré-vestibular comunitário para jovens pobres poderem se preparar para disputar o espaço com os ricos e fazerem a sua faculdade. A Educafro, que há mais de 40 anos ajuda jovens pobres, em especial negros, a entrarem em universidades em todo o país não vai abrir mão dessa missão.

EC – Hoje, a Educafro oferece cursos preparatórios para concursos do Ministério Público Federal (MPF), da Defensoria, de cartórios, de magistratura, entre outros. Como se deu essa evolução?
Frei David – Para responder a essa pergunta, vou lembrar uma situação vivenciada pelas nossas irmãs e irmãos advogados negros, em novembro de 2022, em um concurso com cotas raciais que visava preencher vagas de administração de cartórios.

A Educafro questionou judicialmente uma norma que teria sido discriminatória contra os candidatos pobres e negros. Aqueles que não poderiam pagar integralmente a taxa de R$ 199,00 cobrada para inscrição tiveram menos de 48 horas para se inscrever. Os que possuíam recursos para tal, no entanto, contaram com longos 30 dias para efetuar o mesmo procedimento.

O juiz do caso, em caráter liminar, determinou que as inscrições fossem reabertas de maneira que aqueles considerados hipossuficientes tivessem 10 dias corridos para preencher o formulário de participação no concurso e solicitar a isenção, apresentando a documentação que comprovasse a condição financeira prejudicada.

Cenas como essa evidenciam a importância dos preparatórios para diversos concursos, atendendo às pessoas já assistidas da Educafro para o preenchimento das cotas na graduação e que agora precisam de reforço, via curso, para ingressar em vagas de alta demanda em que não se têm negros. A Educafro vai investir muito em atitudes que ampliem o acesso do negro em todos os concursos nacionais, estaduais e municipais, garantindo esse direito.

“O Estado deve reformular suas leis para garantir a equidade e empoderar o povo afro-brasileiro, que é a maioria”  Foto: Educafro/ Divulgação

 

EC – O senhor já disse uma vez que o povo negro, com seu crescente ingresso nas universidades e nos altos postos do mercado de trabalho, através das cotas nos concursos públicos, tem um grande papel na construção do novo Brasil que estaria sendo desenhado. Que Brasil é esse?

Frei David – Em uma sociedade estruturalmente racista, a Educafro busca novos mecanismos para combater essa violência direcionada à população negra.

Os preparatórios para concursos do Ministério Público Federal, Defensoria Pública e Cartórios são mecanismos de capacitação para a população afro-brasileira alcançar vagas de alta demanda no cenário brasileiro para modificar a conjuntura de exclusão social existente.

Acredito que essas ferramentas são formas de modificar a estrutura de um Brasil excludente. Esse Brasil precisa ser fundamentalmente um Estado que reformule suas leis em função de garantir não a igualdade e, sim, a equidade. Assim acontecendo, estaremos mexendo com a economia da nação e colocando-a com a responsabilidade de empoderar o povo afro-brasileiro.

EC – A população negra foi a que menos se inscreveu no último Enem, em especial devido às dificuldades com o estudo remoto na pandemia.
Frei David – Não podemos esquecer que, nas provas do Enem de todos os outros anos, grande parte do povo afro-brasileiro, por ser obrigado a migrar do ensino médio para o trabalho, não se inscreveu na porcentagem que deveria para disputar esta ferramenta de empoderamento que é a educação. Mas, realmente, esse contexto avassalador que nos trouxe uma pandemia mundial veio para refazer muitas formas de interações humanas e sociais. Tivemos que aprender a lidar com o novo normal.

EC – Como se deu?
Frei David – A Educafro, que já estava passando por um momento de refundação, teve que se adequar a essa situação para que nossa comunidade não ficasse para trás mais uma vez quando se fala em acesso e inclusão.

É extremamente necessário que haja uma empatia de todas as instâncias, pois a população pobre e negra, além de ser a que mais sofre as consequências da covid-19, também é a mais afetada quando falamos em novos moldes de ensino.

Por exemplo, a mobilização e cobrança de organizações como a Educafro, que solicitou judicialmente a reaplicação das provas do Enem 2021, foi uma conquista importante para que nosso povo tivesse a oportunidade de fazer a prova e adentrar o mundo universitário.

EC – Como a Educafro auxiliou essas minorias?
Frei David – Oferecendo cursos preparatórios on-line, empréstimo de computadores e notebooks e o fornecimento de chips com internet para que as pessoas pobres tivessem a oportunidade de estudar e se preparar. Foram ações importantes, mas a nossa luta é para que essas ações e iniciativas sejam de responsabilidade do Estado, a partir de políticas que correspondam a esses problemas, fornecendo acesso e educação de qualidade.

“As ações afirmativas são um dos direitos mais sólidos que a comunidade negra conquistou”
Foto: José Antonio Oliveira/ Educafro/ Divulgação

 

EC – O senhor afirma que há resistências às cotas raciais e que as conquistas não têm visibilidade na imprensa. Quais são esses avanços?

Frei David – A Educafro não abre mão do acesso ao sistema de cotas, como política pública nacional, não apenas nas universidades, mas em todos os concursos públicos de nível estadual, municipal e federal.

A Câmara Federal e o Senado já votaram a lei. Além disso, alguns partidos de direita entraram no Supremo Tribunal Federal (STF) questionando a constitucionalidade das cotas e foram derrotados por 11 a zero. As ações afirmativas são um dos direitos mais sólidos que a comunidade negra conquistou e a Lei de cotas amplia isso em todas as áreas possíveis.

Exemplo: por três anos, lutamos no Conselho Nacional de Justiça contra os presidentes de 27 Tribunais de Justiça no Brasil que não queriam adotar cotas nos concursos públicos para tabelião/cartórios. No início de 2021, conquistamos, por unanimidade, a obrigação de todos os tribunais adotarem cotas.

A nossa tristeza é que a grande imprensa não está divulgando esta vitória, e, assim, poucos advogados negros e negras estão se preparando para esse que é considerado o concurso mais rentável do cenário nacional.

EC – Há quem o acuse de fazer muito barulho. Como reage?
Frei David – Estamos “fazendo barulho” para sinalizar que as cotas raciais são mecanismos essencialmente importantes para pensar em pluralizar as esferas de poder. No início dos anos 2000, quando as ações afirmativas começaram a ser pensadas no Brasil, fizemos barulho potente em prol da população negra e presença constante nos debates e na imprensa.

As primeiras experiências de cotas raciais começaram a ser implantadas na Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) e Universidade do Estado da Bahia (Uneb), em 2003, e na Universidade de Brasília (UnB), em 2004. Portanto, o “barulho” somado à nossa organização foi e continua sendo fundamental para as nossas conquistas.

EC – Enquanto esteve à frente da Fundação Palmares, Sérgio Camargo impôs retrocessos e disseminou a ideia de vitimismo do povo negro. Como o senhor avalia condutas como essa?
Frei David – No mundo inteiro, a direita acordou, não é diferente do Brasil. Então esse rapaz, que era presidente da Fundação Palmares e que fez grandes estragos para o povo negro, fez isso de maneira calculada. Sabe que os apoiadores financeiros da campanha dele e que vão votar nele são todos de direita e, também, são contra o direito da comunidade afro-brasileira em ter acesso às oportunidades.

Portanto, ele está jogando de maneira prevista, uma vez que só quer voto da direita por não estar disputando o voto da esquerda. Isso, bem como o lançamento da campanha em São Paulo, é uma maneira estratégica baseada em dados estatísticos. A direita sabe que o público que tende a votar nele está organizado de forma mais concentrada nesse território.

EC – O senhor seguiu a vida religiosa porque queria ajudar os pobres sem ser classificado pela ditadura como comunista. Mas hoje, nem o Papa escapa desse rótulo quando defende os pobres…
Frei David – Não imaginava que seria possível uma pessoa jovem negra, pobre não sonhar em cursar uma universidade, mas numa palestra que fiz na Baixada Fluminense, compreendi que a educação no Brasil é privilégio.

Nesse sentido, pensar a educação para todos é um direito inalienável, que não pode ser classificado como pensamento comunista ou socialista, mas sim como norma fundamental da Constituição Federal para todos, sem distinção de qualquer natureza. Essas garantias são bases também do modo de vida franciscano.

EC – O atual presidente da República sinalizou que a próxima eleição será disputada entre “o bem e o mal”, ou seja, entre “cristãos” e “comunistas”. Como vê simplificações como essa?
Frei David – É uma das maiores propostas de falsidade ideológica; ele (Bolsonaro) diz ser cristão, mas 99% das suas atitudes são anticristãs. Jesus Cristo estaria e está extremamente tremendo de dor e sofrimento ao ver pessoas usando o nome dele em vão para defender teses que ele não defendia.

Jesus não defendeu a tese da matança, de roubar terras dos indígenas, de tirar a bolsa-moradia e alimentação dos quilombolas e indígenas que entraram nas universidades públicas pelas cotas.

Então, grande parte das propostas do governo Bolsonaro, como atacar a natureza da Floresta Amazônica, estragar o território e ampliar garimpos, explorando minerais, tudo isso são atitudes que ferem profundamente a essência do cristianismo, que é respeitar a natureza, ter bondade, partilhar e dar oportunidade aos mais fracos. Eu acredito que as propostas dele, da direita, não formam um ser humano consciente e não correspondem aos valores cristãos.

“A missão inicial da Educafro Brasil tinha por elemento central a inclusão de nossos irmãos afro-brasileiros no acesso ao ensino superior para que pudéssemos iniciar o processo de erradicação dessas desigualdades” Foto: Educafro/ Divulgação

 

EC – Qual é o objetivo da sua viagem aos Estados Unidos?

Frei David – Está inserida em um programa maior de solidariedade entre o negro brasileiro e o negro norte-americano, voltado para as ações jurídicas. Queremos, então, partilhar as várias inovações e teses jurídicas que a Educafro abriu.

Teses que nem nos Estados Unidos, nem na América Latina foram trabalhadas como nós trabalhamos. São teses que estão operando vitórias para a população afro-brasileira. Queremos discutir e ampliar com os norte-americanos essas possibilidades.

Também abrimos no Brasil ações contra empresas transnacionais e estamos construindo um diálogo com o objetivo de acelerar a equidade, a diversidade, o empoderamento e a oportunidade para a população afro-brasileira.

EC – Que teses?
Frei David – A morte de um só negro, vítima de racismo, não constitui um dano jurídico apenas para aqueles que dele dependiam, mas um abalo jurídico para toda a sociedade.

Foi assim que construímos um acordo histórico com o Carrefour – a ação civil pública que resultou na maior indenização coletiva da história do país e da América Latina para a comunidade negra em decorrência do assassinato de Beto Freitas, em novembro de 2020, por seguranças do Carrefour, em Porto Alegre.

O MPF homologou um Termo de Ajuste de Conduta com a empresa no valor de R$ 15 milhões. Uma empresa pode ser responsabilizada por instituir um ambiente de trabalho racista, tal como afirmamos contra o Atakarejo, supermercado da Bahia que entregou para grupos criminosos, milicianos, em mais de uma ocasião, jovens negros acusados de tentar praticar furtos naquele estabelecimento comercial.

Outra questão central para nós, a responsabilização civil por danos coletivos decorrentes do racismo é imprescritível. Estamos nos preparando para apresentar essa tese pela primeira vez perante o Poder Judiciário.

EC – Teve uma ação contra a Ável Investimentos, credenciada da XP, por apresentar uma foto de seus funcionários, em sua maioria homens brancos, poucas mulheres e nenhuma pessoa negra.
Frei David – Sim. A livre iniciativa não dá aos empregadores o direito de fazer contratações excludentes, que não levem em conta a diversidade brasileira. Foi o que afirmamos nos processos contra a Ável e a XP. A Ável, após uma primeira audiência de conciliação sem acordo, mudou de postura e apresentou ao processo um plano de diversidade para 2022.

 

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